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315 estórias

Tuesday, March 12, 2024

O Lâmpada Fundida




Camarada Choco

Série Colégio Militar


Há todo um mundo escondido dentro dos Meninos da Luz que tem de ser decifrado, por isso existem estórias curtas que até parecem intermináveis. O 73 não era da Classe Especial mas tinha queda para o sagrado, uma vez que neste estabelecimento educativo, que  tentou educar futuros reis mas desistiu, e tudo graças ao Agapito, uma espécie de Estratopel, o 289, mas com uma coroa em vez de um penico, os alunos só se “descaminhavam”, e foi numa excursão à capela dos claustros, faminto, que se abarbatou dum saco cheio de “Deus-Homem”, usado no ritual cristão de comer alguém na missa. Juntaram o produto desviado às galinhas do pai da Rosa, e fizeram uns inéditos “ovos mexidos sagrados”. Mas não é destes anjinhos de que iremos falar, mas de outros seres voadores exclusivos da Luz.

-  O Dario é o Einstein da ginástica, consegue transformar merda em matéria, - disse o professor Reis Pinto.

E todos aqueles meninos da classe 1, a elite da Educação Física, disciplina dividida em quatro níveis, cujo quarto estava reservado aos gordos e aos coxos, sabiam que não poderiam chegar atrasados à aula do Lâmpada Fundida.

- Este rapaz merece um 20 a Educação Física, - fora o único elogio que o Cebola recebera, não do Conselho Pedagógico, mas sim no Conselho de Guerra.

O 360 fora o responsável por um fim-de-semana alucinante, que mostrou a capacidade de coletivamente os Meninos da Luz conseguirem o que não era fácil nem provável e, para alguns, conseguirem o impossível, mostrando ao batalhão colegial a força da juventude e da ousadia quando lutavam por um ideal, neste caso um maço de tabaco “Kart” (Camarada Choco & Comandante Guélas: Cebolada).

- Saia da aula, pela porta ou pela janela, - reagiu o Falcão, perante o pedido de explicações do 157, que tinha apanhado a única positiva da turma no teste de matemática, um “suficiente”.

- Vou pela janela, - disse o discente correndo para ela e atirando-se.

Não sabia era que o aluno em questão pertencia à elite da ginástica, um Top Gun dos “Gafanhotos” e por isso agarrou-se à borda do parapeito após sobrevoar a vidraça, tendo provocado o maior cagaço ao docente que, por momentos, endireitou a marreca, que iria ser agredida pelo dicionário do Cão, arremessado pelo 136, o seu melhor amigo, para ver o que acontecera à gazela. As noites do Colégio Militar eram uma espécie de Ibiza da Luz, porque os meninos tinham uma visão abrangente da vida, aplicavam as novas tendências e ideias, descentralizando-se. A importância desta educação selvagem foi um dos pilares em que assentou a intervenção pedagógica dos jovens dos anos 70, com grandes pedagogos dos 10 aos 60 anos. Num dos fins de semana de castigo alguns alunos resolveram ir brincar para o ginásio e montaram uma aldeia dos macacos. Quando estavam em plenos tarzans, com voos em direção aos colchões, eis que entrou o Dario e lhes fez uma proposta:

- Querem resolver o incidente oficialmente ou oficiosamente?

Acordaram receber uma aula extra, tendo o docente aproveitando o circuito já montado, que só terminou quando os meninos já pediam perdão, deixando-os de rastos para o dia seguinte.

E os efeitos da ginástica do Dario perduravam no tempo, que o diga o Girafa que um dia entrou, já homem feito, durante uma visita de ex-alunos, às cambalhotas no Salão Nobre, após abrir as portas de rompante, na altura em que o director dava a seca do costume elogiando as virtudes daquele invulgar espaço educativo.

Foi numa atividade do Dario que o 63 dos anos setenta deu início a um processo traumático que o afastou para sempre dos bocks, mini-trampolins, mesas alemãs e outros instrumentos que tornaram famosos os Gafanhotos, a classe especial do Colégio militar que encantava as Meninas de Odivelas e o resto do país, e ainda hoje lhe causa suores frios de cada vez que tenta dar uma cambalhota, coisa já rara na sua idade. O circuito estava montado, mini-trampolim, bock, cama-elástica, mesa alemã e colchão. O 8 iniciou o esquema, fez tudo em estilo gazela, sendo seguido pelo 63, que saiu com uma trajetória errada, e fez uma aterrizagem forçada na alcatifa, que lhe colocou um braço voltado para trás, impossibilitando-o de tirar ranho à cobra. O Lâmpada Fundida aproximou-se de imediato do ferido e colocou-lhe o membro no lugar.

- Vai à Enfermaria!

Cruzou-se com o Tadeu que reforçou a esperança:

- Esfrega com água fria que isso passa.

O Valentim aplicou-lhe a fórmula do costume, um copo de água com sais de fruto.

- Deixa fazer efeito e depois podes ir à tua vida.

Mas as dores aumentaram e a solução foi levá-lo ao Hospital Militar, onde acabou por ser sujeito a uma cirurgia para colocação da lasca do osso no lugar. O 63 teve de esperar dois meses até poder esgalhar de novo o frango, que entortara devido à inabilidade do uso do braço são! 


Saturday, August 26, 2023

Equitação Colegial

 



Comandante Guélas

Série Colégio Militar


Os Meninos da Luz viviam em permanente diálogo com a vida e com o mundo, foram poucas as situações que não abordaram, eram fazedores do impensado, por isso recorriam a atividades próximas da poesia. Somos gigalôs das memórias, porque estas estórias têm a participação de muitos. Se nos dias de hoje formos ao Bar Spell e King na Formação ainda sentimos o cheiro a cavalo. As aulas de equitação no Colégio Militar eram sempre um campo de batalha em que todos os Meninos da Luz compreendiam a gesta dos seus violentos antepassados. Tudo começava no Largo da Luz onde seguiam em procissão bichos com os carretos gripados, em direção à Azinhaga da Fonte, no fundo da qual entravam no colégio e no respetivo picadeiro. Davam coices nos soldados, nos colegas e faziam riscos nos carros. E às vezes extraviavam-se e só apareciam lá para os lados de Monsanto na zona da Marreca. Para se conseguir sobreviver a uma aula de equitação a ordem de chegada era fundamental, e quando o toque da corneta avisava o fim da aula a turma saia a galope em direção ao picadeiro.

O Cabedo estava a fazer galopes curtos com o Flipper quando os alunos chegaram. Alinhados numa das paredes do picadeiro, guardados por soldados estavam as cavalgadura militares do costume: o Salame que mordia, a Nono, uma égua mansinha que gostava de dar coices, a Rata, uma égua branca que dava cangochas quando lhe tocavam na garupa, o Quadrado, de cor castanha e feitio muito vivo (partiu o braço ao 80), o Alfange, uma máquina a disparar coices, o Eusébio, que tinha mau feitio, o Patacho, o Vapor, que num desfile com fato de cerimónia e com a presença do Presidente, quase lhe tatuou uma ferradura na cara após uma valente cangocha quando a excelência saía do carro, a Quirina, a Tangerina o Único, o 31, o 48, enfim, tudo bons quadrúpedes.

O 581 e outros camaradas tiveram um dia uma aventura alucinante, quando receberam ordens para levar uns quantos cavalos ao hipódromo do Campo Grande. Saíram pela Estrada da Luz, embrenharam-se pela 2ª circular, misturando-se com o trânsito caótico e na zona do Estádio Universitário, com bermas largas de areia e ervas, o instrutor deu ordem de “galope”, e foi nesta altura que o cavalo do 581 desembestou, só parando quando chocou contra a rede que delimitava o espaço desportivo. À chegada ao local ainda houve tempo para patinagem artística nos paralelepípedos que forravam a estrada.

- Montar – ordenou o Jaimito dando início à aula de equitação, colocando-se estrategicamente num dos cantos do picadeiro, e ordenando ao soldado para se posicionar no canto oposto.

Nem deu tempo à rapaziada para se sentarem adequadamente, ergueu o chicote no ar e iniciou as hostilidades. Os quadrupedes arrancaram em debandada, um dos instruendos depressa ficou pendurado, com uma mão no arreio e com um pé no estribo, até que um barulho ensurdecedor ecoou pelo picadeiro, sobrepondo-se aos gritos e relinchos. O 480 acabara de ceder à força centrífuga.

- Quem é que mandou apear? – Gritou o Jaiminho com um ar de macho, aproximando-se do aluno

- Eu não aguento mais, meu capitão.

- Já lá para cima.

De novo o chicote a fazer gritar o ar, o 480 saiu agarrado em desespero ao cepo da sela.

A aventura do 317 também foi digna de registo, pois recebera ordem do instrutor para ser o fila-guia, e descer as bancadas do campo de futebol com o Quadrado, depois de ambos terem levado, ainda dentro do picadeiro, uns valentes coices da Nono que aparecera, sabe-se lá porquê, e após um galope muito confuso, de frente, aproveitando a ocasião para cumprimentar o colega e o seu jovem cavaleiro. O cavalo do 317 estava zangado com a “rapariga” e quem levou com o mau feitio foi o aluno, que sentiu nas costas o chão duro do campo da bola. O 467 era um ás na “arte de bem cavalgar toda a sela”, por isso tinha sempre a mania de inventar, recebendo com frequência um cartão amarelo do instrutor:

- O senhor está a mijar fora do penico! 

- Galope - ordenou o Dores. – Tirar os pés dos estribos, pôr as rédeas ao pescoço e as mãos em cima.

E no caminho estava um cavalete que tinha de ser ultrapassado, e quando o Vinasse aterrou de costas na serradura, limitou-se a dizer:

- Senhor aluno, agarre o cavalo e monte!

No fim ordenou:

- Vão dar uma volta a passo pelo exterior para secarem os cavalos!

Os Meninos da Luz eram rapazes cheios de sonhos, de nobres, galantes e vãs fantasias com as Meninas de Odivelas, por isso deram início a uma temerária aventura ao estilo D. Quixote: um ataque frontal à metade da turma que se encontrava a praticar esgrima no exterior do ginásio. Ouve um minuto de silêncio quando ambos os grupos se encontraram à distância. Após este tempo de reflexão a turba de quadrupedes comandados por bípedes sentados nos seus costados lançou-se com furor num galope em direção à floresta de fatos-de-treino acastanhados com o emblema da Barretina no coração.   

A estória acaba na outra ponta do colégio com um docente a distribuir ponteiradas a bípedes que tinham imitado em coro o relinchar de quadrúpedes durante a aula de química prática:

- É só gado, é só gado, - gritou o Semita.


Wednesday, June 21, 2023

Os Meninos de Baco

 


Comandante Guélas

Série Colégio Militar


As memórias que os Meninos da Luz deixam de si é o que nos revela a imortalidade do Colégio Militar, é uma cadeia que nos prende ao passado e nunca é o último elo, eles estão em toda a parte, representam uma parceria entre os alunos que estão vivos, os que estão mortos e os que irão nascer (http://camaradachoco.blogspot.com/2013/02/miolos-no-teto.html). A “Z” é a mais puritana das gerações desde a época vitoriana, mas foi o álcool e as bebedeiras que criaram a Humanidade, incluindo muitos Meninos da Luz dos anos setenta, porque foi a altura em que se servia vinho tinto martelado a partir dos 10 anos, nas duas refeições principais. A dose do almoço servia para acumular e transportar calorias, para que os rapazes fardados de cotim conseguissem aguentar o resto do dia, que era sempre muito longo (http://camaradachoco.blogspot.com/2013/03/liga-dos-meninos-extraordinarios.html). O sumo de uva libertava a criatividade, a ousadia, a inteligência e a perseverança destes meninos com um excepcional e fecundo DNA, que continha o melhor da natureza. A sua vida entre quatro paredes definia-se na interação uns com os outros, e na ajuda preciosa do néctar do deus Baco. Nenhum cresceu em branco. Todos eram vítimas destes candidatos a Odin, docentes e discentes. Mas ao contrário de tudo o que se poderá pensar o tintól nunca causou nenhum prejuízo cognitivo aos Meninos da Luz. E para uns a dose diária deixou de ser suficiente, por isso “descaminhavam-se” na copa, de onde traziam garrafões que eram consumidos no telhado. Foi devido a estes consumos, somados às tradições e às firmezas (Camarada Choco & Comandante Guélas: A Firmeza), que saíram os histriónicos, os fóbicos, os paranóides, os psicopatas, os esquizofrénicos e os maníacos que povoaram o nosso querido país à beira mar plantado. Aliás, este país, que todas as probabilidades diziam ser inviável, feito de pedaços de outros estados, foi fundado, não por betinhos, mas por jovens que saiam das tabernas dispostos a fazerem a folhas aos mouros e aos castelhanos. E o Carioca era um deles, pois de cada vez que levantava os braços para dar início ao piar dos canários, alguém do lado de fora dava um biqueiro na porta do padre Miguel, membro de uma religião que se fundia com o álcool e, como bom cristão, saía sempre a correr do espaço educativo no encalço do Teta, decidido a fazer-lhe a folha. E para que os Meninos da Luz dos anos setenta se aceitassem como um projeto futuro, tiveram de estabelecer vínculos fortes uns com os outros, uma espécie de desmossomas colegiais. Todas as tardes o 3ºE (http://camaradachoco.blogspot.com/2012/08/um-dia-na-vida-do-3-e-do-colegio.html) parecia o farwest, aguentavam, invariavelmente, firmes e hirtos, o feitio do tenente-Coronel, professor de matemática, o Bêbado que, nas alturas de maior consumo, costumava simular que estava a tocar trombeta no ponteiro, ao mesmo tempo que distribuía pelos petizes fardados de cotim ponteiradas bem aviadas, cujas cabeças respondiam, a maioria, com ecos profundos. Havia também um imitador do deus grego Dionísio nas Ciências Naturais que gostava de distribuir abrunhos àqueles que ajudavam os camaradas nas chamadas orais. E se não se mencionasse o Gunga (http://camaradachoco.blogspot.com/2013/05/o-gungunhanha.html) era injusto, que ensinava de forma diferente, através de flatetes, a sua especialidade.

- Chiça, mas hoje ninguém foge? – Queixou-se o tenente Aparício, sentando-se nos calcanhares. – Só saltam quando não estou aqui?

Mas os céus fizeram-lhe a vontade. Uma das janelas da sala de leitura da 4ª companhia abriu-se com estrondo, e o comando agachou-se tal qual um felino, gritando baixinho “mama sume”.

- Vais ter cá uma surpresa rapazinho.

O Dáni subiu para o parapeito, o predador preparou-se para o salto, camuflando-se ainda mais. Mas sobre o pequeno tenente Aparício, oficial de dia, caiu uma tromba de cevada, que o obrigou a fechar os olhos, e a selar os lábios, não sem antes deixar entrar uma gota, que desceu rapidamente para a glote.

- Bós sois piores que os ciganos, - gritava sempre o Moreira (Camarada Choco & Comandante Guélas: O Moreira) de cada vez que era emboscado por uma turbe de rapazes com vestígios de tintól nas guelras, que só deixavam restos de mil folhas no local.

O efeito do vinho do jantar do dia anterior sentia-se nas cestas do reforço da manhã, pois havia sempre uma manada de discentes que se precipitava sobre elas, e tragava, num abrir e fechar de olhos todos os pães com marmelada das redondezas, uma forma de tentar atenuar o sumo de uva que ainda lhes corria nas veias. Mas o tintol colegial tinha muitas vantagens, foi destas molhadas que saíram os melhores jogadores de rugby do país. À noite, no Geral da Companhias, tal como os oficiais czaristas tinham o direito de dar um murro na cara de qualquer um dos seus soldados como castigo sumário, os Meninos da Luz com estrelas aos ombros também usufruíam desse direito, eram os medidores de conformidades, cujo efeito do tinto martelado oferecido à descrição às refeições agravava os comportamentos, daí as tradicionais “Firmezas”, um tipo de tortura exclusivo deste espaço educativo cheio de pergaminhos, mas com muitas nódoas, de vinho. O pior aconteceu quando um dia um 401 (http://camaradachoco.blogspot.com/2012/11/as-noites-dos-facas-longas.html) entrou na sala de leitura da quarta companhia num sábado à noite de um janeiro gélido, porque tinham ficado todos retidos, conforme fora ordenado com a conivência de alguns oficiais, que adormeciam no posto com um biberon em cima da mesa, ia com um sorriso confiante, que depois deu lugar a um sorriso apreensivo, que deu lugar a um esgar de sofrimento, um vazio nos olhos, um tremer de medo, exausto, com sede, um tímpano furado à chapada, o sangue a sair em esguicho, uma marca no rosto de uma agressão com uma garrafa de whisky Highland Clan, gamada no Bar do pessoal, com dores intensas no cotovelo esquerdo, operado duas semanas antes para retirarem os parafusos, de uma lesão ganha a representar com orgulho o Colégio na Classe Especial de Ginástica um ano antes, atingido agora barbaramente pelas pernas arrancadas às cadeiras, que estavam nas mãos dos carrascos de ocasião, cegos pelo álcool durante toda aquela longa noite.

Pedir a uma resma de Meninos da Luz carregados de tinto para fazerem uma rosa com barro era suicídio, que o diga o professor de Trabalhos Manuais, o Oliveira, mais conhecido por Baco, vá-se lá saber porquê que, de cada vez que virava costas para ajudar o 69, o único discente que bebia sumo de laranja, os outros forravam a parede branca com pedaços de argila, e quando se apercebia e tentava intervir, amassavam a rosa do “número mais vergonhoso do Colégio Militar”. E do outro lado da sala do pavilhão de Trabalhos Manuais, onde se faziam trabalhos em cartolina, e mais uma vez o 69 superara tudo e todos com uma soberba Torre Eiffel, cuja ala era dirigida pelo professor Clarence (era o tempo da série Daktari onde se destacava o Cross-Eved Lion), os efeitos do carrascão eram ao retardador, mais propriamente no intervalo após o almoço, com a invasão da sala vazia pelo Horrível (125), que apesar da alcunha era o maior fodilhão de Alvalade, o Peidão (191) e o Cabedo (120), cuja brincadeira consistiu em reduzir a cinzas a obra do camarada 69.

E para terminar estas divagações sobre meninos educados com uma mentalidade eminentemente selvagem que, além de elegantes, desafiavam os limites da vida, quando o Maná se preparava para beber o vinho destinado à missa, que estava na capela dos claustros, só teve tempo para dar um golo pois apareceu, vindo das trevas, o padre Peixoto, o professor de História que escrevia as perguntas dos pontos nos triplicados das participações, deitando depois as cópias para o lixo, ação esta que nunca se soube se era deliberada ou por distração, mas que fazia com que nunca ninguém chumbasse.

- Então 78, a bebida é do seu agrado?

Antevia-se um processo, o Maná já sentia uma carecada, e outros miminhos exclusivos da Luz, e ainda por cima agora que se aproximava um Chá Dançante com a presença de muitas Meninas de Odivelas. O padre Peixoto fez uma dissertação sobre vinhos, que acabou com uma oferta de uma excelente garrafa de Porto e um conselho:

- Tens de bebe-la toda para não ires parar ao Inferno!




Tuesday, December 20, 2022

Caim e Abel

 


O Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Futebol P.A. 55

Caim e Abel

 

Os vikings tinham o deus Odin como referência, que significava “o bêbado”, os jogadores do Futebol PA tinham o Pingamisú, cujo significado era alcoólico …. perdão, “o acólito”! Por isso no ano de 2022, que se aproximava do fim, a organização desportiva, que tinha como representante máximo Daniel Martins de Almeida, foi agradavelmente surpreendida pelo tio Kiki:

- Trago aqui uma ninhada, cujo líder treinou com o Platini, que irá refrescar a qualidade do jogo.

Dez minutos depois do começo já um dos petizes tinha aviado vinte vezes no irmão, o pai havia-se despistado cinco vezes em marcha atrás e o genro não passava dos dez centímetros de impulsão junto à baliza adversária. Até o saudoso Biblot conseguia mais!

- Os putos vieram de onde? – Perguntou o Fininho quando viu passar, à sua frente e em voo horizontal, pela vigésima primeira vez um dos filhos do Platini, ao mesmo tempo que na outra ponta do campo o Espalha despistava-se, após tropeçar na sua perna esquerda, e gritava por falta, tentando anular o golo marcado pelo Zé das Cápsulas.

- O Caim e o Abel vêm de Cascais, - respondeu o Tio Kiki da Pampilheira.

- Caim e Abel? Os nomes não me são estranhos, - retorquiu o Sabão, primo do Sabonete, benzendo-se.

Os rapazes tinham vindo diretamente do paraíso para fazer um upgrade no Futebol PA, e vinham carregados de Trítio da cabeça aos pés, contrastando com os jogadores a carvão, incluindo o pai Platini que, antes de jogar, teve de limpar o carro das impurezas deixadas pelos petizes na noitada anterior. A escolha das equipas para o último jogo de 2022, no campo de Tires, perto da Rosa Grilo e com vista para os aviões que descolavam ininterruptamente carregados de fardos, foi feita com base no linkedin dos jogadores. O ritual repetiu-se, o Peidão colocou uma pedra numa mão, porque caso escolhesse com o Cinzento não poria nenhuma, mas com o tio Kiki era impossível, e ela saiu ao jogador da Pampilheira. Mesmo assim tentou outra tática:

- Se escolhes o Peter nunca poderás ficar com o Zé das Cápsulas, que se inscreveu, mas ainda não chegou, e pode não vir caso os gémeos tenham fugido do carro outra vez:

- Escolho o Peter, as chuteiras chinesas que os padrinhos Fininho e Espalha lhe deram no Natal do ano passado não têm travões, e isso é uma mais valia!

Equipa do Kiki: Peter, Sabão, Sabonete, Balão, Cabeça de Ananás, Espalha, Abel, Dedão.

Equipa do Peidão: Fininho, Zé Miguel, Zé das Cápsulas, Platini, Taroulo, Caim, Rafão.

O Choné ainda veio ver o jogo, mas devido à vergonhosa prestação do filho Taroulo, o Calcinhas inscreveu-se mas como precisava de fraldas para jogar foi proibido, foi-se embora com vergonha.

- Só o Maninho Ensina é que me dá alegrias!

O tio kiki marcou mais golos, mas perdeu, o Caim fazia anos, por isso ficou com os dois golos do Abel. Escolher a parte certa da Bíblia também fazia parte da tática do Futebol PA.


Saturday, August 13, 2022

Os Cromos do Futebol P.A.

 

O Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Futebol P.A. 54

Se conseguisses ver a tua vida desportiva de fio a pavio, o que é que farias? O Futebol PA sempre foi uma fábrica de campeões, por isso quando o ardina António Jorge deu o jornal ao Pingamisú e este leu que o filho fazia a “receção perfeita que lhe permite preparar o passo seguinte”, deixou cair uma lágrima e um pingo de mijo de emoção. E para agradecer a todos aqueles que mostraram ao seu descendente como não se devia jogar à bola, abriu a caderneta de Cromos do Futebol PA e deu de caras com o nº 1, o Abafador, na pessoa do Capitão Porão, o mais velho jogador, um Eusébio paçoarcoense, seguido do nº 2, o Presidente, afastado do primeiro a pedido deste mas junto ao nº 3, o Choné, o Robocop da bola e pai de uma resma de futebolistas: o 91, Trazfácil, o 92, Maninho Ensina, o 93, Taroulo e o 94, Calcinhas, que trouxeram uma nova maneira de encarar o jogo após a passagem do milénio. Com o indicador fez uma festa nestes últimos amigos e agradeceu:


- Obrigado por não terem ensinado nada, tal como eu, à minha reforma dourada, perdiz, petiz, petiz, quero eu dizer, - e olhou para o biberon à procura do grau alcoólico do meio-gordo branco.

E por causa do biberon deu de caras com o nº 4, o Bibelot, uma espécie de Trovão que insistia sempre em jogar na grande área adversária para marcar golos de cabeça. Quando viu o nº 5, o Mac Macléu Ferreira, sentiu um vento a puxa-lo, teve uma visão imperfeita que lhe revelava o segredo de algo que acontecera suspenso na geografia intemporal dos sonhos. O caixa de óculos loirinho era um diabo em campo (um pré-Ricardinho, o nº 69, aquele que ameaçava sempre para a direita e desenvolvia para a esquerda), deixava o esférico passar e só depois ia atrás dele, nunca o alcançando. O nº 6 era o Caveirinha, um predador de golos de cabeça que aconteciam quando tropeçava na linha do guarda-redes e caia desamparado para a frente. A seguir a ele vinha o Vitorioso, o lendário Fininho, senhor todo poderoso das leis do jogo que lhe deram mais vitórias do que jogos na elitista modalidade Futebol PA, única em Portugal. A servi-lo estava o nº 8, o Tio Kiki, sempre elogiado pelo mestre com equipamento de árbitro:

- Bate tu, que bates bem!

Seguiam-se os 3 da mesma ninhada, o 9, 10 e 11, Marinheiro Pai, Chico Marinheiro e Faisão, também conhecido como Judite de Sousa. O desabafo do Pingamisú disse  tudo sobre a arte de manipular as bolas desta Ínclita Geração:

- Porra, ainda bem que o puto era pequeno nesta altura – e passou rapidamente de folha.

Apareceu-lhe o 12, o Laranjão, que um dia quis fazer picadinho do Caramelo (o 54), cunhado do Doutor Sopapo (o 52) que tentou fazer o mesmo ao Esferovite (o 601), e o 13, o Fenómeno, o Brinca na Areia, o único capaz de ganhar ao Fininho, até que se casou e foi pai de duas tangerinas. O 14 era o Dic, um jogador com o nome do próprio cão, que só parava na rede de cada vez que investia sobre o esférico:

- Até te babavas, - disse o Pingamisú, limpando os cantos da boca.

O Estalinho e o Zé da Tapada, o 15 e o 16, eram os únicos cromos que estavam dentro de um ringue em vez dum relvado, jogaram mais com as mãos do que com os pés. O 17, o Chinoca, teve a carreira mais curta do Futebol PA, lesionou-se no único aquecimento que fez e jogar com bolas passou a ser só nos sonhos do Abafador, que acabou abafado pelo 55, o Pona, o único jogador que era escolhido mesmo que não aparecesse. O nº 56 chamava-se Kiko, e era sempre a terceira equipa em campo, porque jogava sozinho, do princípio ao fim. O amigo Antenas, o 57, depressa se fartou do Futebol PA, que considerava uma cambada de malucos e optou pelos das quintas-feiras, a elite dos coxos, onde constava o 76, o Carcaça, o mais hilariante dos atletas que alguma vez jogou no Olimpo paçoarcoense e, por não ser um deus do esférico, abandonou envergonhado a modalidade exclusiva da vila de Paço de Arcos.

- Vocês são tantos que eu não tenho tempo para continuar, a garganta está seca, preciso de hidratar, - exclamou, fechando o livro, arrumando-o junto a uns “Lusíadas”, e encaminhando-se para o frigorífico.

Mas eis que lhe caiu aos pés um pedaço de papel com uma nota do 191, o Peidão, que dizia: "Deves 10 euros de quota"!       


Sunday, June 26, 2022

À Sombra de um Chaparro

 



O Comandante Guélas

Série ISEFL 7

No dia 25 de junho do Ano da Graça de Dois Mil e Vinte e Dois reuniu-se a Turma 2 do ISEF 81/86 debaixo de um chaparro que dizia ser centenário, mas afinal era do IKEA, após indicações preciosas do Campeão Nacional de Milho aos Pombos, o primeiro reformado do grupo, o trapezista Carlos Pedreta, que no passado chegou a falar alemão e a convidar enfermeiras para o pecado, mas graças ao apoio incondicional do seu amigo e colega político, conseguiu sintonizar à pátria lusa:

- O local é intuitivo, Arraiolos, Pinhal dos Noivos, na Terra dos Vinis, na Rua dos Alegrias!

Estiveram presentes no evento, segundo indicações das 1000 fotos enviadas pela Cucharra, a própria, o trapezista, o vereador, o cobridor das Caldas, o stor Lopes, duas Senhoras de Lisboa, uma Tia da Costa do Estoril, um intelectual de Ponte de Lima, o segundo reformado, que trouxe a tômbola com as rifas dos ucranianos, e um alentejano de Beja. O Parrilha entrou, como já é tradição, a chiar, pelo meio das vinhas, perseguido por todas as fêmeas caprinas da região, inebriadas pelo volumoso cabelo e por um par de óculos Pierre Cardin, que lhe mantinham o estilo libidinoso do passado:

- Vocês vão todas ter de pagar a gasolina, tal como fez a minha professora de Dança Clássica, - gritou para as lãzudas.

O vereador Anselmo também apareceu pelo meio do campo, do seu campo, adquirido durante a sua fase política.

- Amanhã vou casar um dos meus filhos, - informou orgulhoso.

Logo aí abriu-se um debate:

- Algum dos do ISEF?

Veio à memória de todos o tórrido “menáge à trois” com a Glórinha do refeitório e a Blandina da biblioteca. Mas o que chamou à atenção foi o chaparro humano que, de cada vez que se dirigia ao Lopes ou ao intelectual, chamava-lhes Jacques, e perguntava pelas fotocópias:

- Eu cai de costas, ele marrou recentemente com o carro contra uma árvore, - esclareceu o Trapezista.

Na vasta ementa predominaram os produtos regionais vegan, sumo de uva, pão, queijo das meias do Melo Barreiros, enchidos de soja e sopa mijona, “caramela” para o organizador. Após a refeição o Chaparro quis ir com os amigos do Jacques aos caracóis, e por pouco não apanhou uma congestão de tremoços:

- Ainda não nota a diferença, e assim os bichos ganham mais um dia - informou o Pedreta que, além de Campeão Nacional de Milhos aos pombos, conforme referido acima, é um ambientalista radical da Associação dos Amigos dos Reformados e dos Caracóis.

Houve ainda tempo para uma ação de solidariedade, pois a partir das 18H20 os presentes teriam necessidade de começar a tomar comprimidos com efeitos secundários indeterminados, a colecta para a entrada da compra de um terreno junto ao Guadiana. A construção do lar “Anjinhos do Jamor” irá ser uma realidade e um local diário para estes almoços!       


Tuesday, June 07, 2022

Conflito de Interesses

 


O Comandante Guélas

Série Colégio Militar


Os Meninos da Luz investiram sempre diretamente nos extremos, por isso não roubavam, “descaminhavam”, e neste espaço educativo cheio de pergaminhos era à grande e à francesa. Por isso quando o gangue mais famoso dos anos setenta do século passado entrou no bar dos oficiais para mais uma visita de cortesia e deu de caras com outros intrusos ficaram escandalizados. E ainda por cima ambos tinham entrado pelas janelas, vá-se lá saber porquê, porque um deles tinha a chave, gamada há muito pelo Picanço durante as obras de renovação do espaço, antevendo uma necessidade futura:

- Que ousadia é esta? - Gritou o 240, o Al Capone lá do sítio. – Este território é exclusivamente nosso, a mercadoria pertence-nos, não pode desaparecer tanta, vão gamar para outra freguesia, ou sofrem aqui e agora uma firmeza.

A voz do Rita saiu da jugular, sangrando com violência nua e crua, sem lamechices, acompanhado pelos seus fiéis escudeiros Dáni e Cebola, em posse aristocrática e espiritual, num tom que tanto servia para amedrontar ou para debitar um zacatraz estilo Adamastor, exclusivo do bardo 69, o número mais vergonhoso do Colégio Militar, e único aluno que marchava com os braços à altura dos ombros e os calcanhares a castigar o alcatrão, mesmo sofrendo pontapés na peida dos camaradas da turma como era habitual, tendo-se vingando mais tarde nas bifas e nas suecas de Lagos. E continuou:

- As garrafas são exclusivamente nossas, é delas que bebemos a cultura colegial que nos dá alento para mais “descaminhamentos”, temos uma posição moral de ocupação.

- E nós, nem um Martini? – Desabafou o 27, sabendo que nada podiam fazer contra o Rita e os seus sicários.

Fez uma leitura rápida das expressões insanas do 240, 360 e do 661 e apercebeu-se que tinham de reduzir-se a uma passividade acrítica perante a superioridade dos camaradas, que acabavam de declarar o estatuto de invadidos.

- Vocês limitem-se aos bolos do Moreira, porque este é terreno sagrado, nem Deus entra.

E para manter a moral dos seus sicários elevada, o 240 fazia questão de os presentear todos os meses com botas topo de gama desviadas de um sótão num edifício vizinho dos claustros com vista para a Azinhaga da Luz, que mais tarde colapsaria durante uma fuga do Cebola (Camarada Choco & Comandante Guélas: Cebolada). O Gangue do Rita tinha urgência em “descaminhar”, porque esta atividade era, no fundo, o alicerce da vida cultural dos Meninos da Luz. A rapaziada tinha necessidade de estar sempre em movimento: dar biqueiros na porta da sala onde o Carioca ensaiava, para obrigar o padre a sair furioso em perseguição dos prevaricadores, decidido a fazer-lhes a folha; interromper a marmelada ao tenente Mota com a namorada no seu Toyota 1200 cor de diarreia; pendurarem-se no trator do pai da Rosa quando ia em direção ao picadeiro, para o obrigar a parar por excesso de gado; fazer emboscadas aos magalas que iam entregar os filetes no bar dos claustros; participar em atos de fé às obras primas feitas em cartolina no pavilhão de trabalhos manuais, sendo a mais famosa a Torre Eiffel do 69, que teve o mesmo destino da Catedral de Notre-Dame; ir “desencaminhar” clorofórmio ao Valentim para atirar sobre as galinhas do Nunes. E tantas, tantas outras atividades culturais que criaram uma dinâmica única que nos fez crescer e definiu aquilo que é, e sempre foi, a identidade do Colégio Militar.