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315 estórias

Wednesday, November 12, 2008

O Submarino II



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Comandante Guélas
Série Paço de Arcos 
O Motim

A próxima regata, a do “Pirilampo Mágico”, era de noite e o comandante do “Carapau Cocciolo” inscrevera-se, determinado a levar mais uma taça para o convés, junto às grades de cerveja. E foi durante uma reunião de fim-de-semana, em que se delineava a estratégia de “velejar por toda a costa” (patrão Lopes), que o cartógrafo Mac Macléu Ferreira tomou conta da ocorrência.
- De noite, com o 75% à proa? – Perguntou indignado o ex-loirinho e agora quase calvo, caixa-de-dioptrias.
- É mais uma vantagem para a nossa vitória, - explicou o comandante. – A organização exige que cada concorrente leve um objecto florescente e nós temos a sorte de um de nós brilhar. Vamos pontuar por “originalidade”.
- Mas isso já interfere com os meus negócios, - gritou o cartógrafo tendo um ataque de tosse, que não se sabia se era do tabaco ou do coração.
- Com os teus negócios? – Perguntou o marujo Cabeçudo, agora um especialista em “Política Internacional”, desviando o olhar do livro “Como fazer bifes de cavalo saberem a tornedó”, da autoria do Professor Tino, e fixando-se nas incalculáveis dioptrias do careca loirinho.
- Com o 75% amarrado à proa e a brilhar como um lampião, as lulas irão tomar de assalto o “Carapau Cocciolo” e amanhã não terei moluscos cefalópodes para empacotar, - gritou o empresário de moças recheadas dando uma palmada no 75%, que já roncava e acordou estremunhado:
- A minha dentadura, a minha dentadura???
Segredos e tabus era o que não faltava na vida desta tripulação com o maior currículo da vila e arredores. Numa entrevista recente à “Voz de Paço de Arcos”, Mac Macléu Ferreira declarou que nunca revelaria o segredo do recheio das suas lulas e o mestre da embarcação confidenciara que fora preciso investir muito tempo e algumas cervejas para dar prontidão à tripulação, porque fazer parte do submarino era uma profissão a tempo inteiro.
- O meu trabalho como capitão da embarcação não é reunir os “magníficos”, mas sim ver-me livre deles no final do dia, quando as cervejas acabam, - explicou ao senhor Coutinho, o dono da revista. – Já tive um dia de chamar de urgência um chinês para vir buscar o mano, que pretendia sair pelo lado do mar. Se a polícia marítima visse seria acusado de estar a desembarcar clandestinos.
Na marina é impossível passar pelo “Carapau Cocciolo” sem saber o que é o “Todos os Chatos”. Os membros do submarino foram talhados ao ponto de irem ao fundo da natureza humana buscar os melhores flatos, especialmente no que eles representam de vaidade para quem os solta, mostrando a elegância, a acuidade e a profundidade destes skills náuticos. Os marujos do “Todos os Chatos” são mestres na retórica e oratória náutica, aparecendo muitas vezes sonolentos , só saindo do torpor quando cortam a meta no terceiro lugar. Nestas alturas aplaudem a mãos cheias o momento em que o maçadíssimo Vaca Prenhe ergue a taça do último. Mas houve um dia, tirando o caso da lulas, que a tripulação do “Carapau Cocciolo” esteve perto do motim: em vez de várias grades de cervejas o carteiro entregou, à vista de toda a marina, um pacote de fraldas “Lindor Anatómico”. O 75%, que tem uma concepção épica do mar, acusou os colegas de “achincalhamento marítimo” e a sua fúria chegou a ser arrebatadora e comovente, tendo fundido várias lâmpadas da Marina e atraído todos as tainhas da zona. O submarino virou traineira e tudo voltou ao normal quando o Mac Macléu Ferreira, um careca loirinho fascinante e com uma história ainda mais fascinante para contar, foi a correr hastear o pavilhão. A única excepção foi o marujo Cabeçudo que tinha acabado de perder o seu novo livro, “Como transformar carne de cão em carne de veado” (Zé da Quinta). Nesse momento acabara de atracar o rival “Todos os Chatos”, onde o sentimento predominante era o tédio. A primeira imagem do submarino traineira era a de um veleiro em actividade intensa, cuja acção da tripulação antes de cada regata era levar o 75% em mãos, seis, para a proa, previamente forrada a papel de jornal. Nestas ocasiões a imagem de um veleiro de competição dava então lugar à de uma unidade de cuidados intensivos.

Sunday, November 09, 2008

Kaos


Camarada Choco
Aventura 63 

- Aproximem-se, tenho umas prendas para vocês, - chamou a Doutora Sem Canudo, acenando com uns papéis nas mãos.
- Cheques, vai dar-nos dinheiro extra? – Perguntou o Nélinho atirando com os livros ao ar e saindo a correr da sala com os braços no ar.
- Não me digam que o saco azul está a transbordar? – Questionou outra.
- Melhor, muito melhor, - prometeu a proprietária de tudo.
A expectativa era enorme, a multidão de chinesas foi-se acumulando em redor da generala, senhora absoluta do local onde se prometia aparafusar Desaparafusados, mas que até aqui só tinham conseguido desaparafusar Aparafusados, e tudo graças ao legado desta eleita da Brandoa. Na fila de trás estavam as escravas, atraídas pela promessa de um emprego, mas reduzidas ao eterno cargo de “voluntárias”. O Cabo Pilas alinhava-se junto à chefe, já antevendo o momento da substituição.
- Tia, - chamou a ele a Madrinha.
- Tia?! – Reclamou a Proprietária.
- Desculpe, eu queria dizer Doutora Sem…Com…Sem…Com, - e encravou.
- Desembuche que eu tenho de distribuir os convites.
O Pilas estendeu-lhe as folhas escritas pelos Desaparafusados que tinham ido visitar o centro militar vizinho da escola e afastou-se a tossir. O Pitrongas que ia a passar fez-lhe logo o diagnóstico do costume: “pintelhinho na garganta”!
- Já aqui estão todas, podemos começar. Como devem saber, eu gosto de premiar quem trabalha…
- …vai dar-nos mais trabalho, - atirou a pirosa, compondo o mostruário de broches que os Desaparafusados da sua sala sabiam fazer.
- Ou então os contemplados são os do costume, o Porres e a Piulia, mesmo estando de baixa até Dezembro.
- Tenho aqui três convites para uma exposição de Cooperativas na FIL, a “Co-Operative”!
A debandada foi geral e só três ficaram encurraladas: a Pirosa, a Menina Tatrícia e a Outra. A Doutora Sem Canudo agarrou-as e nomeou-as embaixadoras.
- “Co-Operative”? – Perguntou a Menina Tatrícia, levantando o braço e um sobrolho.
- Eu traduzo para português, afinal de contas sou uma Doutora e tive Inglês Técnico. “Co-Operative” quer dizer “Cooperativa” e “Cooperativas” só há umas: as de Desaparafusados. Esta exposição é sobre reeducação e eu quero que a minha quinta esteja na vanguarda da educação e não seja como muitas que ainda usam paus de gelados para fazer talas. Bem, tenho de me ir embora, espera-me mais um voluntário.
E a confirmação de que a Doutora Sem Canudo era uma enciclopédia viva da Farinha “Pensal”, aconteceu quando as embaixadoras deram de caras com o stand da Malásia: “Mongkos”!
- Mongkos?!
- Sim Pirosa, quer dizer Mongas em Malaio.
- Não, não é isso, já viram o poster.
Era estranha a educação de Desaparafusados na Ásia. Numa varanda bem iluminada, várias estudantes com necessidades educativas especiais exibiam umas coloridas mini-saias, acompanhadas de uns decotes que fariam corar de vergonha o senhor Pintor, ultimamente conhecido por Mamma Mia por andar vestido à padeiro.
No dia seguinte a Madrinha apareceu cedo na sala de Artes Plásticas e presenteou o Cunhado do Choco com um novo voluntário.
- Um utente novo?
- Um voluntário que traz acopulado qualquer coisa ligada aos “desenhos animados”.
- “Desenhos animados”? – Questionou o Mama Mia, levantando o sobrolho de especialista.
- O currículo era uma folha A4 em branco e eu lá consegui dar-lhe uma habilitação mínima para vir para aqui. Tem a categoria de “Faz-de-Tudo infinitamente”. Chama-se Pateta e vem para aqui ajudar os colegas…não…os utentes.
E enquanto tentava justificar mais um escravo, um vulto apareceu por detrás e chamou:
- Tia!
A Madrinha voltou-se esganada e deu de caras com o Cabo Pilas.
- Acompanhe-me imediatamente ao meu gabinete.
Entretanto o Choco despira-se totalmente num abrir e fechar de olhos apanhando de surpresa o chefe bibliotecário, o senhor Nélinho. Numa sala próxima o Stor Pobre lia o processo duma Desaparafusada que se dizia filha do Stor Rico. Tinha vindo de São Tomé, como cautela ganhadora de uma enfermeira sua tutora, que a única coisa que sabia de hospitais era limpar o chão e despejar cinzeiros. A Preta Fininha tinha tido um ataque epiléptico, na altura em que a mãe sofrera um ataque de malária e morrera. De imediato os familiares acusaram a pequena de bruxaria e expulsaram-na da aldeia à cocada. Como era sempre a descer, nunca mais parou acabando por chocar, algumas horas depois, com a dita Enfermeira Sem Canudo, que a levou para o hospital e tratou de arranjar a papelada para vir fazer reabilitação à cautela premiada que lhe tinha caído ao colo, na Europa. Chegavam mais depressa aqueles com um monga ao colo, do que os outros que resolviam vir de barco. A Preta Fininha aterrou na Portela só com nome próprio, pois perdera os apelidos durante a fuga, tendo a seu lado a extremosa tutora, agora senhora de uma habitação social e de um subsídio maior que o ordenado do presidente do seu país natal. No andar de cima o Pilas tentava justificar as cartas de agradecimento que os seus Destravados tinham escrito ao comandante do quartel militar vizinho após a visita.
- Ó Cabo Pilas, garante-me que foi a Ludrinhas que escreveu esta carta:
“Venho por este meio agradecer ao senhor coronel o convite que me fez para visitar as suas instalações, de que gostei muito, ficando prometido desde já que serei voluntária na próxima incorporação para a arma de artilharia, pois acho que o meu meteorismo intestinal será muito útil ao país”.
- É tão certo como eu medir um metro e noventa. A Tia…perdão…Madrinha há-de reconhecer que o meu trabalho é exemplar e deveria recompensar-me com o cargo de Coordenador. A outra dorme o dia inteiro.
- E esta é a carta do Choco:
“Meu caro colega coronel, gostei muito de visitar as suas instalações, fizeram-me recordar a minha juventude nos Comandos da Brandoa, em que distribuía diariamente vários morteiros à minha mana e mamã. Espero em breve tornar aí e envergar de novo umas fraldas e uns babetes dessa tropa especial onde o meu padrinho Cabo Pilas andou”.
- Eu não brinco em serviço, ando muito mas não brinco. Penso que deveria ser recompensado.
- E esta é de quem?
“ Colonel, gostlei muintlo de visitale os escotleilos e não me vlou malis esquecele do caminho”
- Essa é minha


Sunday, November 02, 2008

O Peru de Natal



Comandante Guélas 
Série Paço de Arcos

Quando o Vaca Prenhe foi conhecer a futura sogra, a senhora nem queria acreditar no que via. Educara a filha nos melhores colégios do país, onde se fumava atrás do túmulo de D. Dinis, com princípios morais dignos da nobreza e agora aparecia-lhe em casa um estudante cromagnon, tipo Caniche gigante, que estava retido há vários anos no 7º Ano do Liceu, tendo conseguido passar unicamente à disciplina de “Introdução à Política”, retenção esta que, segundo a sua verdade, se devia a uma traiçoeira pneumonia dupla. Só podia ser um pesadelo! Beliscou-se mas os cabelos pelos ombros estilo carapinha, do pai do seu futuro neto, continuavam a fazer-lhe cócegas nos olhos. Olhou para baixo e reparou que o “coisinho” vinha equipado com uns soberbos chinelos ortopédicos com unhas estilo garras. A filha trocara o Pitrongas, um Flamingo majestoso, por este Pteurossauro da Terrugem. O tempo passou, a revolução deu-lhe um empurrão académico milagroso e o cromagnon acabou por definir o seu grande objectivo de vida, que era ter direito a “Dr.” nos cheques. Mas às vezes tinha recaídas existenciais! E uma delas foi no período do Natal. Para subir um pouco na escala de preferências da sogra ofereceu-se para ir buscar o peru, no carro dos pais, a Caxias. E levou o cunhado Peidão, um jovem atinado e já com muitas preocupações ambientais, que seria o seu moço de recados pois o Vaca Prenhe já se considerava doutor e ficava mal a um jovem adulto com tantas habilitações académicas, ir buscar uma ave à cozinha duma messe, recheada de praças e cabos. O cromagnon ficou sentadinho ao volante a ver a chuva a cair com violência e a fumar um cigarrinho. Recolhido o bicho, que vinha desmontado, o motor do carocha preto tornou a roncar. Ainda tinham percorrido poucos metros quando o carro parou repentinamente. O Vaca Prenhe olhava fixamente para o horizonte. Junto a uma paragem de autocarros rodeada de água por todos os lados, estava um jovem cristão de fato azul cueca, pronto para ir passar a consoada com a família. O Peidão olhou para o cunhado e viu-o a deitar fumo das orelhas, ao mesmo tempo que acelerava o carro, que estava em ponto-morto. No ombro esquerdo do motorista estava um morcego com uma capa vermelha e no outro um anjinho estilo OMO.
- Ele está a gozar contigo! – Segredou-lhe o morcego. – Prego a fundo rapaz, como antigamente.
- Tu agora já és pai e marido, tens algumas responsabilidades, - avisou o anjinho.
- É só mais uma vez, dá-lhe uma banhada, – gritou o da esquerda.
- Pensa no desgosto que vais dar à tua querida sogra.
- Acelera antes que chegue a carreira. É a despedida de solteiro que a tua mulher não te deixou fazer.
O carocha já roncava!
- Se não avançares já, nunca mais te ajudo nos exames nacionais como te fiz em português, quando levaste o livro certo e copiaste aquilo tudo. E sabes o que isso significa? – Ameaçou o morcego com a capa vermelha bufando-lhe aos ouvidos.
O carro saiu a guinchar, o Vaca Prenhe levava o Peidão colado ao banco, com o peru a querer sair da caixa. A enorme poça levantou-se toda de uma vez e o jovem cristão de fato azul-cueca desapareceu no meio do Tsunami natalício.