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315 estórias

Friday, May 25, 2012

Inverno Quente


Comandante Guélas

Série  Colégio Militar 



 
Em 1966 o padre Castelão Gonçalves que lecionava Educação Moral e Cívica escreveu no Anuário:
“É alarmante o descalabro moral da juventude…Não importa dissecar o fenómeno em si, mas sem dúvida que tal alastramento da amoralidade e obsessão do prazer e vício tem na base um adormecimento dos responsáveis, uma desproporção abissal entre os conhecimentos técnico-científicos com que se apetrecha a juventude e as bases religioso-morais a que não se dá nenhuma ou pouca importância.” pág. 89


No ano de 1975 houve um verão quente, mas também um inverno escaldante, num colégio cheio de rapazes com marcas individuais específicas, em confronto permanente entre pulsões e restrições. O padre Castelão de certeza que diria que estes Meninos da Luz tinham deixado de escutar o batimento cardíaco de Deus, o compasso do mundo. Com as saídas aos sábados à tarde e as entradas obrigatórias até às onze horas da noite do dia seguinte, o batalhão de adolescentes e imberbes só via um rabo de saia quando a mítica filha do senhor Nunes, responsável pelo curral e pelo aviário, resolvia ir fazer uma visita ao papá, uma vez que a sempre presente esposa do Justino funcionava como inibidora:
- Ó Patronilha, a tua mulher nem com uma almofada na cabeça, - dizia-lhe sempre o Horrível, o maior cobridor da Luz, segundo dizia.
- Mas fode bem, - respondia-lhe o vigilante.
Por isso as camas só rangiam após o toque do recolher nos dias em que a Rosa era avistada. Esta estória tem como protagonista, não a Marlin Monroe da Luz, mas uma administrativa, que um dia cometeu a imprudência de ir atestar o Fiat na bomba de gasolina do colégio. A saia que levava e o decote gostoso revelaram-se impróprios para o local, e foi a ignição para um impulso linguístico, que fez convergir as energias dos cinco adolescentes em três janelas do primeiro andar:
- “Senhor soldado, não se engane no buraco, olhe que é o do carro”
- “Não queres segurar antes na minha mangueira?” 
- “Abre as pernas que eu vou de cabeça”
O capitão Oscaralinho, um pequenote careca com a mania que era malandro, ainda tentou intervir, mas não teve tempo, pois a mania que tinha de pentear o cabelo a partir da orelha atrasou-o, e quando se apercebeu já a chinesa estava no gabinete do Diretor. O relatório com o acontecimento caiu a seco na secretária do comandante da Terceira Companhia,  um oficial hostil e paranóico, com uma pulsão maneirista, que não tinha o controle de nada e que via todos os dias a sua autoridade fugir-lhe debaixo dos pés:
- Meu capitão, dá licença que penetre? – Perguntou-lhe um dia o Bomba H.
E penetrou, mas depressa saiu a correr quando sentiu o vento de um punho raivoso dum capitão envolto numa tempestade existencial inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro da alma.
A investigação iniciou-se e rapidamente terminou, iniciando de seguida reuniões individuais com os encarregados de educação onde, em termos formais, foi lido em voz alta o relato dos acontecimentos. Se a mítica Rosa resolvesse tomar atitudes destas de cada vez que ia ao colégio, não havia tempo para mais nada.

Ofício Circular
“Encarrega-me Sua Exa. O Brigadeiro Director de transcrever a V. Exa. O nº 1 do artº 10º da Ordem de Serviço Militar, nº 47, que é do teor o seguinte: punições com 2 dias de suspensão, cada um dos alunos da 3ª Companhia e do 4º Ano nºs: 157, 601 e 653, por no dia 30 de Janeiro de 1975 terem dito “palavras insultuosas para com um funcionário deste colégio, que foram ouvidas por elementos militares e civis, que se encontravam no local de abastecimento de gasolina”.

26 de Fevereiro de 1975

Mas houve mais dois ofícios circulares personalizados, um para o Horrível, com três dias de suspensão, e outro para o Peidão, quatro dias, por ser reincidente (já tinha ficado detido uns dias durante umas férias da Páscoa). Entraram de férias mais cedo, e safaram-se do desfile do 3 de Março!



Monday, May 21, 2012

O Túnel da Luz


Comandante Guélas
Série Colégio Militar


Dizia a lenda que o Colégio Militar estava ligado ao Instituto de Odivelas por um túnel, que povoava a imaginação de todos aqueles jovens fardados de cotim com as hormonas aos saltos, por isso a descoberta da entrada do “El-Dourado” teria consequências incalculáveis no desempenho do batalhão, que passava parte do dia a martelar o alcatrão com os calcanhares, a tarde em esgalhações coletivas enquanto o Pequito debitava o verbo “Avoir” e grande parte da noite a fazer ranger as camas. Mas algo estava a acontecer! Na aula prática de química o Gordini distraiu-se com o pensando enredado nas saias das Meninas de Odivelas, despejou no alguidar do ajudante Morais, o Ruca, o Sódio e o Potássio da turma, provocando uma explosão que fez com que o Patronilha se descontrolasse momentaneamente na Java 125, e quase se enfiasse pelo pátio da Infia adentro com a sua bela Julia à pendura, onde, devido à deslocação do ar, o capitão Oscaralhinho desesperava em tapar apressadamente a careca, puxando o cabelo que tinha sido atirado com violência para cima da orelha direita.


- Nesta aula uns dormem de olhos fechados e outros de olhos abertos, - reagiu o engenheiro Grijó.


Na aula de equitação, quarenta e cinco minutos agonizantes a trote, onde a fruta batera com violência na sela, o ten-Coronel Dores (ex 120) ordenara à metade da turma, a outra estava na aula de esgrima, para irem secar os cavalos no exterior do picadeiro, deixando bem claro que só poderiam ir a passo, avisando o chefe de turma de que qualquer incidente seria da sua responsabilidade. Ao longe, os camaradas faziam combates no exterior. Foi dada a ordem de “alto,” e alinharam os animais. Os da esgrima prepararam-se para o embate, a loucura comprimida dos Meninos da Luz acabara de estar contida,  todos despejavam adrenalina em vez de suor. Não foi em passe, nem a trote, nem a galope, mas sim numa carga tão grande, por momentos todos queriam salvar as suas dulcineias imaginárias, a barreira de candidatos a mosqueteiros desfez-se, deixando passar os animais desembestados, que foram chicoteados com os floretes de aço, que os atiraram para o campo de obstáculos, onde o Peixinho saltou pendurado na sela.

No laboratório de línguas o Teatcher preparava-se para debitar mais uma aula do seu Americam Language Course, estando os alunos a ocupar individualmente as boxes com a panóplia de instrumentos, e no momento em que colocou os auscultadores no alto da sua mesa de comando, o 224 deu um berro tão grande ao microfone, pedindo-lhe que lhe chupasse uma parte do corpo, que todos viram o docente dar um salto na cadeira, abrir a boca e retirar apressadamente o que pusera nos ouvidos.
Quando o lusco fusco chegou havia movimentações inabituais lá para os lados do estaleiro de obras junto ao pavilhão de Ciências. O Horrível, o 191, o 120, e o 667 tinham acabado de encher uma lata de tinta com mijo, e do rijo, e não sabiam o que fazer com tão precioso líquido, até que um civil enfiado num fato azul cueca a deslocar-se calmamente em direcção à igreja da Luz lhes chamou à atenção. Apesar de ser tempo de verão, a chuva que caiu sobre o incauto cidadão foi tão repentina, que ele nem teve tempo de abrir o chapéu para a chuva, que não trazia. Alguns minutos depois foi visto a berrar com o Chico Porteiro na Porta de Armas.
A notícia correu depressa pelo pessoal, o Vinasse anunciara o “achamento” da entrada para o Túnel que ligava diretamente às Meninas de Odivelas, e tudo isto durante o consumo de um cigarro debaixo de uma árvore numa zona interdita virada para o Estádio do Glorioso. Ao princípio pensou que era do efeito do fumo, mas uma observação mais cuidada revelou um pedaço de azulejo antigo, que foi de imediato datado do tempo de D. Dinis. Escavou um pouco mais e apareceram outros, e mais outros, e mais…, o Horrível ficou eufórico, já se via a chegar clandestinamente ao Instituto em formato de “Desejado de Odivelas”, no meio de uma noite de nevoeiro, saindo de um alçapão secreto atrás do túmulo do rei de barbas ruivas, e por ser o maior auto intitulado predador do Largo da Luz, que dava sempre ao fim de semana oito de seguida sem ver a luz do sol, teria com toda a certeza um batalhão de meninas à sua espera. Escavou, escavou, até acabar com o resto das unhas roídas, e se aperceber que só fazendo apelo ao lema  “um por todos  e todos por um” poderia atingir as cuecas tão desejadas. Pediu reforços! Mas o Gordini, o Becas, o Peidão, o Xoxo, o Bétis e o Barrada, não foram suficientes. O buraco continuava dum tamanho miserável, e escadas nem vê-las. Veio a turma, mas precisaram de mais, muitos mais. E vieram, a recompensa era do outro mundo. Quando a cova já ameaçava desabar sobre grande parte dos militarzinhos imberbes, e enterrar para sempre muitos sonhos libidinosos, apareceu o Moca e o Meia-Lua, que acabaram com a festa à custa de paus e pedras, mais os berros incompreensíveis do primeiro.
Do outro lado do pecado também havia movimentações junto ao leito do monarca: "Chegámos a usar as nossas pulseiras de prata, daquelas com nó e grupo sanguíneo, em jeito de pêndulo, para descobrir a tal passagem” (Menina de Odivelas)!
 




Wednesday, May 16, 2012

A Revolução



Comandante Guélas
Série Colégio Militar


Se quisermos traçar um retrato do tema desta aventura, é necessário descrevê-lo de múltiplos ângulos simultaneamente, porque falar do 25 de abril de 1974 é muito denso e complexo. O Colégio Militar é a prova de que o passado existe e o presente não é tudo o que há, e o que se fez de bom e de mau nos momentos posteriores é importante para se sentir os tempos de exceção. Deram-nos tudo, inclusive o amanhã. A vida no Colégio Militar dos anos 70 era dura, desprovida de sentimentos éticos, com pouca solidariedade, mas muita amizade. Reinava a tradicional "apresentação à alvorada", o castigo preferido dos sádicos que obrigava os subordinados a vestirem-se com a farda de pano mal tocasse a corneta, apresentarem-se ao carrasco, voltarem à origem e vestirem-se de cotim, irem de novo ao encontro do graduado, correrem para a cama para se fardarem outra vez de pano, e apresentarem-se pela última vez. Findo este ritual voltavam à farda de cotim, faziam a cama, sem vincos no lençol, e teriam de chegar a tempo à formatura, cujo toque era vinte minutos depois do da alvorada. E a maioria falhava! Teriam de passar pelo Comandante de Companhia aluno que, de uma maneira geral, também sentia prazer em fazer sofrer os “camaradas”, e por isso lhe enfiava um par de abrunhos, uma espécie de pequeno-almoço adiantado. O domingo à noite era o regresso ao Colégio Militar, no "Ricochete" havia sempre uma atividade frenética na casa de banho, trocavam-se as calças à boca de sino, as camisas com golas em forma de asas e os sapatos de tacão, pela farda cor de pinhão. A próxima ordem de soltura seria no sábado à tarde seguinte, altura em que alguns voltariam a visitar a família, enquanto outros permaneceriam meses e meses à guarda da instituição, uns com os pais longe nas Províncias Ultramarinas e outros já sem pais por terem tombado na sua defesa. A Porta de Armas esperava-os até às onze da noite, hora a partir da qual teria de haver uma explicação plausível para o atraso, senão arriscavam-se a ficar “detidos” no fim-de-semana seguinte, com uma carecada aos ombros. Na zona da enfermaria havia a tradicional emboscada, da responsabilidade dos graduados, que faziam do colégio a sua coutada, o seu clube privado, e que de uma maneira geral nacionalizavam a bolama. Mas houve uma quinta-feira única: O Escalope foi o primeiro Menino da Luz a aperceber-se da revolução dos cravos! E tudo por causa dum ataque de meteorismo intestinal que, para não levar os colegas a pensar ser o toque da corneta da alvorada, o obrigou a ir soltar os gases para os lados das latrinas. Aí deu de caras com o Elefante a ouvir num rádio azul a música “E depois do adeus”.
- Cheira-me a senha!
O 305 foi assim o primeiro aluno do Colégio militar a saber que tudo iria ser diferente a partir desse dia. Até o Diretor, que até essa data era o ”homem invisível”, foi visto a tomar o peque-almoço no Corpo de Alunos. A refeição decorreu dentro da normalidade, de tempos a tempos ouvia-se um copo a despedaçar-se de encontro ao chão, seguido de um grito em uníssono de metade do batalhão, “Paga já”, que obrigava o Zé Pereira a deslocar-se em passo de corrida com um bloco de notas na mão até ao prevaricador, obrigando-o a assinar uma nota de pagamento, que seria depois entregue ao encarregado de educação. Mas de uma maneira geral eram precisas mais notas de pagamento porque o lema do Colégio Militar, “um por todos, todos por um” tinha sempre um sentido prático, e neste dia do mês de abril de 1974 a amizade foi levada ao extremo: 180 alunos estavam dispostos a suportar o prejuízo, “1/180 avos de um copo”.  No regresso do refeitório havia soldados a montarem metralhadoras em tripés na parada, e a posicionarem-se, e os alunos foram informados de que não havia aulas e teriam de se manter naquele espaço. Colocaram televisões no geral das companhias onde o Balsinha, que mais tarde iria perseguir os colegas do canal com uma pistola, fazia o relato do jogo. Por volta das 19H30 deu-se o acontecimento mais marcante do dia, o ex-33, o general que usava um fundo de garrafa num dos olhos, que seguia num Peugeot preto de matrícula IC-52-69, escoltado pelo chaimite “Bula” em direção à Pontinha, deu ordens para pararem, saiu do carro e com uma continência cumprimentou os camaradas. O êxtase dos meninos da Luz só teve equivalência ao dos pastorinhos de Fátima quando deram de caras com a madona na azinheira, e todos se precipitaram para o exterior das companhias em direção ao Zimbório. Nem o Moca conseguiu parar a turba, apesar de ter acertado em vários com o pau, no Escalope, no Coiote, no Judy, no Peida-Gorda, no Elefante, no Gordini, no Peidão, no Micróbio, com que costumava abrir as janelas após o Toque da Alvorada, um som de uma corneta engasgada, ao mesmo tempo que gritava ordens numa língua que só ele compreendia.
- Até tu Duque, - exclamou o Comandante do Corpo de Alunos para um Menino da Luz com uma overdose de adrenalina.
- Cuidado jovens, cuidado, pois estão uns homens maus a atacar Lisboa – avisou o padre Baldomijo.
Nos claustros alguns correram pelas escadas acima e saudaram o Spínola na varanda da sala por cima da do Diretor. Ainda houve algumas escaramuças, o um grupo meteu-se com soldados que iam para o refeitório, cujo jantar foi croquetes com arroz branco e salsichas, e foram admoestado pelo oficial de dia:
- Energúmenos fascistas!
O 332 e os amigos foram obrigados a irem pedir desculpa aos magalas. Os ideais revolucionários contaminaram muitos alunos, o Teta sugeriu ao Escalope um 25 de abril lá para os lados do pavilhão de ciências:
- Vamos soltar os ratos!
Houve momentos de camaradagem, o 608 chorou baixinho junto à Infia por temer pela vida do pai, ministro do antigo regime, e os amigos consolaram-no. A primeira vítima da nova era foi um capitão, e tudo porque um Che Guevara de geração espontânea entrou pelo seu gabinete e, em vez de seguir o protocolo e pedir “Sua Excelência dá licença que entre”, trocou o verbo e gritou, “Sua Excelência dá licença que penetre”, e penetrou de imediato, a frio. O oficial sentiu um vento e uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro , e quando se preparava para responder ao pedido com um abrunho entre os olhos do indisciplinado, este desatou a correr para as camaratas, levando colado ao seu traseiro alguém à beira de um ataque de nervos, que nunca o conseguiu alcançar. Noutra ponta do colégio a fava calhou ao Didi, professor de inglês, que se encontrava numa situação invulgar, ao verificar que no fim da aula, e já no exterior, os alunos tinham formado duas fileiras, para ele passar pelo meio. Seria uma nova forma de festejar a liberdade? E porque é que os militarzinhos tinham nas mãos dicionários da disciplina? Puxou a franja para o lado e avançou, primeiro cautelosamente, mas quando sentiu um livro a tocar-lhe nas costas, acelerou escadaria abaixo, com a biblioteca no seu encalço. A partir daqui o Colégio Militar entrou em autogestão, formaturas nem vê-las, as “apresentações à alvorada” eram coisas dos “dias negros do fascismo”, muitos começaram a fumar, os cigarros deixaram de ser de uso exclusivo dos mais velhos e o Ramalho deixou de ter clientes. Um dia apareceu, numa das raras formaturas da Terceira Companhia, um oficial com uma monstruosa tabuleta ao peito a dizer “COPCON”. Trazia nos sacos várias calças, blusões e uma colecção de sapatos. Informou então os presentes de que, devido à restauração da balda…perdão, da liberdade, o povo da Luz iria ter direito a decidir o seu próprio destino, a começar por aquilo que queria vestir. A decisão foi tomada por unanimidade: calças à boca de sino, blusão justinho e sapatos de tacão alto! O militar do Otelo olhou demoradamente para a escolha do povo, e imaginou-o a marchar para o seu chefe em estilo Parada Gay, viu-o a rir-se, arrumou apressadamente a tralha e foi-se embora, gritando:
- Estão a brincar com a Democracia!