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315 estórias

Thursday, August 23, 2012

A Firmeza


Comandante Guélas

Série Colégio Militar

A origem da "Firmeza"


"Castigava sempre tão bem, tão pouco e tão no princípio que quase nunca lhe aconteceu ter de castigar mal, muito e no fim" José Manuel dos Santos 
 
Quando Teixeira Rebelo escreveu o primeiro estatuto do Real Colégio Militar, estava longe de pensar nos desvios: “…ficando como uma Lei constante a proibição do uso de pancadas. Elas inspiram aos educandos o terror, abatem-nos, desanimam-nos, ou tornam-nos revoltosos. Alteram a sua saúde, destroem a sua vivacidade natural e terminam por endurecer os seus corações. Desde que uma vez perdem a sensibilidade natural, que é a maior das virtudes sociais, fazem-se duros, sombrios, hipócritas, enganadores, vingativos e cruéis”. Em que modelo é que se encaixaria o graduado cuja alcunha era o Selvagem, 202/1901, que tinha como firmeza predileta pendurar os ratas com uma corda, pelos pés, no galho de um eucalipto, caso o tempo estivesse bom, pois nos dias de chuva os contemplados eram obrigados a estar com os braços abertos lateralmente, com compassos abertos entre as axilas e o tronco, e dicionários nas mãos? Será que os comportamentos extremos alteraram a “vivacidade natural” dos subordinados? Até 1849 os alunos podiam ser presos nas camaratas, em prisão rigorosa, ou andar com letreiros pendurados ao pescoço. Imaginemos o Peidão com uma tabuleta, “esvaziei uma caixa de óleo de fígado de bacalhau por cima do Stratopel”. E os de prisão rigorosa, umas celas lá para os lados do Zimbório, que só podiam ir à missa de domingo acompanhados por um fâmulo armado, mais tarde substituído por um graduado. O Patronilha armado a escoltar o Horrível, por este ter ameaçado “trincar as cuecas à Rosa”, numa ida à missa, celebrada pelo padre Peixoto, o professor de História que escrevia as perguntas dos pontos nos triplicados das participações, deitando depois as cópias para o lixo, ação esta que nunca se soube se era deliberada ou por distração, mas que fazia com que nunca ninguém chumbasse.
- Então 78, a bebida é do seu agrado? – Perguntou um dia ao Maná quando o apanhou a beber o vinho da missa.
 O aluno já pressentia uma carecada, dada pelo Sabino, um barbeiro senhor de uma unha de dez centímetros, visível pelo canto do olho, e ainda por cima agora que se aproximava um Chá Dançante com a presença de muitas Meninas de Odivelas. Mas, ao contrário dos outros, o padre Peixoto deu início a uma dissertação sobre vinhos, que acabou com uma oferta de uma excelente garrafa de Porto e um conselho:
- Tens de bebe-la toda para não ires parar ao Inferno, que era o que te aconteceria se tivesses morcado aquela zurrapa.
Durante o reinado de D. Miguel apareceu um diretor armado em galo, que autorizou qualquer aluno a poder prender colegas que estivessem brigando, ou seja, o triunfo dos bufos, comportamentos raros nos anos setenta, apesar de os haver, como aquele cujo pai general fornecia lagostas aos graduados para que eles não fossem maus para o seu menino, o Bomba H, que se dava ao luxo de bufar estórias inventadas, que custaram noites de tortura aos denunciados. Mas este chefe máximo não se ficou por aqui, foi o inspirador da disciplina dos anos setenta: “palmatoadas” (porrada à descrição), mas com uma diferença, antes eram legais, porque tinham de ser devidamente registadas na secretaria, enquanto as dos anos setenta eram clandestinas, porque o oficial de dia escondia-se após as 20H00, e também por impossibilidades logísticas, seria impossível preencher uma resma A4 todos os dias. Em 1847 a rainha D. Maria mandou prender um aluno no castelo de São Jorge. Caso a monarca gorda tivesse chegado aos anos setenta, depressa encheria a fortaleza, principalmente com aqueles que iam para o balcão do cine-teatro, uma tentativa semanal de dar cultura *a rapaziada, vomitar para cima dos camaradas que estavam na plateia. Nos anos setenta do século vinte ainda eram aplicados os castigos decretados pelo diretor Celestino de 1857: os insubmissos, a maioria, excepto o 69, eram “postos a par dos filhos dos homens grosseiros e sem educação alguma e que precisam ser tratados quase como irracionais, a quem só a dor obriga”, mas nunca os desanimou. Em 1966 o padre Castelão Gonçalves que lecionava Educação Moral e Cívica confirmava o panorama geral no Anuário:
“É alarmante o descalabro moral da juventude…Não importa dissecar o fenómeno em si, mas sem dúvida que tal alastramento da amoralidade e obsessão do prazer e vício tem na base um adormecimento dos responsáveis, uma desproporção abissal entre os conhecimentos técnico-científicos com que se apetrecha a juventude e as bases religioso-morais a que não se dá nenhuma ou pouca importância”. Tinha-se atingido o recorde de camas a ranger, a Rosa era o diabo à solta na Luz, a juntar às sempre presentes Meninas de Odivelas, ambos à procura do Santo Gral da Luz, o Túnel, eles a escavarem no terreno junto ao Campo de Obstáculos, e elas ao lado do túmulo do rei das barbas ruivas. Por isso nada como darmos uma espreitadela à última formatura da companhia de um dia qualquer dos anos setenta do século passado.
O comandante-aluno estava a ler, como habitualmente, a Ordem de Serviço, o último ato oficial antes da companhia destroçar para ir dormir, segundo o manual, mas que na prática não passava de um pró-forma, pois geralmente era a seguir que se dava início à festa-brava. Todos foram informados do nome do oficial nomeado para o dia seguinte, que seria o capitão Caetano, dos colegas que iriam ao Hospital Militar, o 607 (Six) e o 305 (Vinasse), que conseguiram atingir respetivamente os 41 graus e os 40,5 graus, depois de terem esfregado toda a pasta de dentes Colgate do 652 (Xoxo) nos sovacos, escapando assim ao teste de Português do Ferrari, e daqueles que teriam consultas marcadas na Enfermaria, e mais outras informações. Finda a leitura, passou-se ao que interessava. O aluno 191 (Peidão) foi chamado pelo comandante da companhia, que estava a meio do pavilhão, equidistante dos quatro pelotões, e os procedimentos de aproximação foram cumpridos, tendo-se perfilhado em sentido junto ao seu chefe e colega mais velho. Iria sofrer uma justiça sumária por ter tirado o barrete ao 125 (Horrível) enquanto este defecava, tendo-o de seguida atirado para dentro da latrina do lado, onde aterrara em cima do conteúdo intestinal do 470 (Bolinha), que não tinha puxado o autoclismo. O réu ainda tentou justificar a ação como uma resposta de retaliação por ter sido vítima da vítima, mas foi condenado na mesma a quatro “palmatoadas”, que foram de imediato servidas a frio, e que o puseram a cuspir fininho e com a visão afunilada. Mas havia mais em lista de espera. Seguiu-se o 300 (Elefante), que foi sentenciado a um biqueiro no traseiro por ter apresentado vários vincos no lençol da cama, sinal de que estava mal esticado, assim como o fato de treino amarfanhado dentro do cacifo. Explicou ter sido obra de terceiros, mas teve mesmo de dobrar-se para que a pena pudesse ser cumprida. Levantou os pés do chão após o chuto, e regressou ao pelotão com um andar esquisito. Menos sorte teve o 565, cuja pena foi executada longe do olhar da formatura, nos lavatórios,  e por isso o ia enviando desta para melhor, nos lavatórios, uma sessão de chibatada com o cinto, para que ele perdesse a mania de fumar, e ganhasse mais apetência para o banho. Após este cerimonial de cariz pagão, seguiu-se a pena coletiva por terem demonstrado pouca aptidão militar durante a parada da hora do almoço, uma vez que era uma terça-feira, dia de apresentar cumprimentos ao oficial nomeado. Na altura do “olhar direitaaa”, quando os pelotões passavam junto ao capitão Espírito, que costumava resolver os problemas disciplinares com uma régua personalizada, em vez de se ouvir o som seco dos calcanhares a bater em uníssono, ouviu-se um metralhar de botas, que deixou o comandante de pelotão à beira de um ataque de nervos. E não foi só com o primeiro pelotão, aconteceu em todos os quatro. Chegava agora a vez da retaliação: a tradicional Firmeza!
- Cócoras, - ordenou o comandante da companhia aluno.
Ninguém podia mexer-se, os braços estavam esticados em frente, e era proibido sentarem-se nos calcanhares. A tripa do 384 (Leitão) não aguentou a pressão e a bufa que se ouviu fez eco, e provocou uma risota geral, sendo todos de imediato contemplados com vários penaltis. Quanto ao bufador foi imediatamente chamado pelo chefe máximo da companhia e teve pena sumária de “palmatoadas” à moda do Celestino. E com este graduado havia sempre um ritual: abanava primeiro a pulseira onde tinha gravado o nome e o grupo sanguíneo, e só depois disparava. Após várias séries de um minuto, passou-se à marcha à volta do pavilhão, com um “olhar direitaaa” numa das pontas, até a coordenação do batimento dos calcanhares estar perfeita. A festa prolongou-se até ao toque de “recolher”, e acabou com um “passo de corrida” e uma ordem para uma “apresentação à alvorada” coletiva. Mas também havia firmezas personalizadas, como por exemplo em sentido em frente do graduado, enquanto este aliviava a tripa! Enfim, tudo dependia do grau de psicopatia do superior hierárquico, prova de que a distribuição de graduações mostrava que o Colégio Militar sempre fora capaz de glorificar incompetentes e desconstruir capazes. São aconchegos da memória que guarda os elos capazes de nos fazer sentir o espaço, como em nenhum outro lugar. Se fosse agora as mães receberiam de imediato um sms “há grad k ker firme enkt kaga”, e o carrasco ainda não estava com as calças em baixo e já tinha a visita do diretor e da TVI em direto, com as deputadas histéricas a gritar, não sem antes serem bombardeados com a publicidade sobre a vantagem da toma diária de um “Activia com Mel” sobre a tripa.

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