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315 estórias

Friday, July 30, 2004

Viagem ao Centro da Terra

                                                       Camarada Choco
                                                                        

 Já estávamos de férias quando fomos convocados para ir ao Centro de Saúde. Desconfiava-se que uma das minhas colegas contraíra tuberculose e, como tal, todos nós tínhamos de fazer uma micro e um teste antituberculina. Missão Impossível ! Fazer deslocar os colegas aquele sítio, dar-lhes uma pica e espalmá-los entre duas chapas metálicas ?? Seria mais fácil Portugal declarar guerra a Espanha e com certeza que as baixas seriam muito menores. Mas a missão era de carácter obrigatório ! Os professores optaram então pela fuga em frente e foi em estilo manada que aparecemos no local apropriado para os exames, depois de uma viagem alucinante, dentro da carrinha de nove lugares, segundo dizia o livrete, transformada desde a fundação num “bus” sem lotação definida e com um fedor constante, resultado de uma mistura de odores da Idade Média: suor, roupa suja, dentes podres, baba, urina, gordura rançosa dos cabelos, sovacos, sebo, meias seculares, ténis jurássicos, cuecas mijonas, etc.,etc. A aliança de todos estes componentes terminava num apoteótico cheiro a merda. Com certeza que se alguém acendesse um fósforo tudo explodiria !
O Centro de Saúde era um local animado e animador, disso testemunhavam as caras simpáticas que ocupavam as dezenas de cadeiras.  Entrámos de rompante, sem aviso, a sangue frio. Fomos de imediato engolidos por um mar de olhos e empurrados para as paredes nuas por uma onda gigantesca de silêncio. As “ gentes normais “ estariam aterrorizadas ou escandalizadas ? Tinham entrado ali com doenças do Corpo, era inevitável e antidemocrático que saíssem com doenças da Alma, e tudo isto causado por aquele bando de bárbaros, que se recusava a ter os mesmos genes da classe operária.
A primeira parte do plano chegara ao fim: os seres superiores estavam amedrontados, temiam ser mordidos, era este o efeito da política oficial da integração a funil ! Iríamos agora dar início à segunda fase da operação “Picamongas”, ou seja, arranjar lugares sentados para todos nós, os príncipes e princesas de sangue preto. Apesar de todos serem testemunhas do esforço dos funcionários e dos técnicos para manter os mais pesados em pé e os mais lunáticos em ordem, ninguém se dignava a dar-nos lugar. Até que, e felizmente há sempre um “ até que “, chamaram alguém, ficando assim um lugar vazio, ocupado de imediato, segundos ordens do professor, pela querida Papoila, a tal miúda da “careca”! O trajecto desde a tribo até à cadeira azul foi seguido de perto pelos olhares indiscretos dos presentes. Os vizinhos desta nova e estranha inquilina encolheram-se nos seus lugares, mas isso não foi o suficiente para evitarem ser atingidos pelos perdigotos disparados pela nossa leoa. A sua cabeça abanava agora ininterruptamente de um lado para o outro, acompanhada por um bufar que fazia vibrar os lábios e distribuía criteriosamente a saliva mal cheirosa. Foi remédio santo ! Poucos minutos depois os vizinhos fugiram em debandada, deixando duas cadeiras vazias, que foram de imediato ocupadas por atletas do mesmo calibre. Três já estavam aviados ! A estratégia continuou até à vitória final ! Os papéis tinham-se alterado. Agora ocupávamos orgulhosamente todos os lugares e os adversários acumulavam-se a um canto da sala de espera. Enquanto estas acções se desenrolavam, outros inscreviam pacientemente os nossos colegas.
Algum tempo depois deu-se início às consultas. A primeira a ser chamada foi a Zulmira Destravada, uma veterana dura de roer, que não admitia ataques  à sua integridade física, viessem de onde viessem. Dois funcionários dirigiram-se ao gabinete da médica com a nossa amiga e quando se preparavam para entrar uma enfermeira barrou-lhes “ educadamente “ o acesso à doutora:
- Aqui só entra a...- e olhou para o papel - ..Zulmira, mais ninguém foi chamado.
- Ok, chicas espertas, ela é toda vossa - responderam, ao mesmo tempo que trocávamos olhares cúmplices um com o outro.
Aquelas senhoras acabavam de perder uma grande oportunidade para estarem caladas. A porta de vidro fechou-se pesadamente e todos nós ficámos  perdidos de riso e na expectativa. Não iríamos perder o espectáculo por nada deste mundo. Aproximava-se um tufão !
Guinchos, berros, coices, murros, dentadas, a Zulmira Destravada distribuía mimos a tudo o que lhe aparecia à mão. A porta abriu-se de rompante e a enfermeira, que há pouco nos tinha corrido, recebia-nos agora de braços abertos e só faltava estender-lhes um tapete vermelho. Era urgente irem salvar a doutora das garras daquela fera, senão ela ainda se transformaria numa utente e teria de ir para o grupo que estava de pé a um canto da sala de espera do Centro de Saúde.

 

Thursday, July 29, 2004

Não Leves o Olho para a Água

                                                          Camarada Choco
                                               


 - Ai, Ai, Aiiiiiiii - gritava de dor a funcionária, depois de ter sido atirada ao tapete.
Pelo chão ficara o tufo de cabelos a que a Rosinha tinha deitado a mão, para aplicar o golpe de judo à senhora. Na semana anterior fora a vez do avô ser projectado à porta da Escola, tendo aterrado no chão duro do belo jardim de calhaus e lixo. Ainda o caos matinal não se organizara e já a Rosinha dera um enorme ósculo de bons-dias ao colega mais próximo esquecendo-se, no entanto, de não usar os dentes. O resultado ficou registado na bochecha vermelha do Zé Trovão, que resolveu entrar numa crise de identidade profunda, começando-se a morder furiosamente e acabando por dar um valente pontapé nas costas do Tó Carvão, que já tinha organizado os neurónios e brincava calmamente no chão com peças de Lego. E assim mais um entrou na festa, presenteando a Papoila com um chapadão digno das melhores performances do lendário Tarzan Taborda, alterando-lhe os circuitos, obrigando-a, contra a sua vontade mais íntima, a dar uma valente, mas convicta, marrada na porta mais próxima, que se fechou com estrondo, entalando os dedos da Telma Estrábica, deixando a nossa heroína do cinema mudo a guinchar e a rodar furiosamente os olhos. O dia começava bem, já não havia bombeiros suficientes para apagar os fogos ! Para ajudar à festa, a manobra da carrinha tinha sido mal calculada e ela encontrava-se agora numa posição instável, ameaçando deitar-se e dormir uma soneca merecida. Entretanto, a Rosinha aceitara mal as críticas que lhe tinham sido dirigidas e ameaçava agora tudo e todos:

- Olhem que eu trinco o olho !

- Atreve-te - disse-lhe alguém do meio da confusão.
E como não era mulher para desaforos, lançou furiosamente um indicador ao buraco do globo ocular, deixado pela grave rubéola que a mãe sofrera durante a gravidez, e sacou o meio berlinde, que fazia a vez de olho, para o exterior e colocou-o entre os incisivos. Bastou um movimento das maxilas para se ouvir o som característico das promessas cumpridas:

Crrrrr !  
No fim do dia lá iriam os cacos embrulhados num guardanapo de papel, para serem entregues aos avós, com a proprietária a fazer um auto de contrição:
- És má, a Rosinha é má - sinal de que, além de ter paralisia cerebral, atraso mental e ser cega, também tinha dupla personalidade.
No dia seguinte fomos à praia, no mesmo autocarro do ATL que partilhava connosco as instalações da Brandoa. O destino eram os vastos areais da Costa da Caparica, numa viagem alucinante que demorava hora e meia para lá e outra tanta para cá, enfronhados num calor abrasador e num trânsito caótico. À chegada montámos arraial logo no início e fomos por grupos à água, que se encontrava ao longe, perdida no horizonte. O primeiro batalhão partiu em busca do líquido precioso e dele fazia parte a nossa amiga Rosinha. Quando iam sensivelmente a meio do caminho, a educadora responsável lembrou-se do esquecimento e deu ordens aos excursionistas para pararem, obedecendo estes de imediato, ficando estáticos no meio de uma das inúmeras escolas que ocupavam todo o vasto território de areia branca.
- O olho Rosinha, não leves o olho para a água - avisou a educadora, vindo a correr ao encontro da sua aluna.
Por momentos naquele pedaço de praia pararam o falatório e ficaram assustados a ver a cena.
- Olho !?? Levar o olho para a praia !?? – pensavam. - Estariam a ouvir bem, ou era somente uma alucinação auditiva provocada pelo intenso calor !??
Com um profissionalismo a toda a prova, a senhora nem se apercebeu que estava fora da Escola e num fechar de olhos enfiou o seu indicador pelo globo ocular da Rosinha e tirou-lhe o brilhante, embrulhando-o cuidadosamente num lenço de papel.
- Já podem ir, foi por pouco ! - Desabafou.
Quanto aos mirones, continuavam estáticos e apáticos, perdendo por momentos os bronzes que tanto custaram a ganhar. A partir de agora tudo o que viesse daqueles estranhos banhistas seria possível. E se por acaso ouvissem – “Ó Júlio, não leves a cabeça para a água, pode enferrujar” - nem se dariam ao trabalho de olhar....

 

Wednesday, July 28, 2004

E Tudo por causa de uma careca

                          Camarada Choco

                                           

Um par de portas azuis abriu-se repentinamente e lá de dentro saiu um vulto, sem rumo e sem mundo, explodindo em todas as direcções, num passo de corrida semelhante ao de um pinguim, parando repentinamente alguns metros à frente, como se tivesse sido colada ao chão, soltando em direcção aos céus um estridente ruído de protesto, um autêntico vulcão oral. Um rapazito que passava despreocupado no exterior foi apanhado de surpresa e ficou imóvel, com os olhos presos naquele Papão diurno, pedindo um socorro silencioso à mãe, prometendo-lhe não tocar mais às campainhas dos vizinhos a partir desse dia.
Um encontro imediato do terceiro grau !?? Uns olhos pequenos, que se escondiam por detrás de umas grossas lentes, focaram-se no novo professor, e uma magnífica franja em forma de poupa deu-lhe as boas-vindas. A mão direita junto à garganta mostrava quatro dedos, com o médio ausente, perdido algures no código genético do pai. A mesma dose para a outra mão ! O olhar da Papoila mudou de alvo e a adolescente encaminhou-se para um escorrega medieval, mostrando-nos ( não se esqueçam que no terreno baldio ao lado da escola está um rapazito congelado ! ) uma careca que lhe decorava a parte de trás.
                    Uma careca ! Mal sabia o docente o trabalhão que esta careca lhe iria dar. Iriam ser acusados de torturar sem piedade a filha, de lhe arrancarem os cabelos um a um, fazendo assim desvanecer o sonho de uma mãe sofrida, que era ver a filha com uma frondosa cabeleira tipo Raquel Welch.
No meio desta aparência hollywoodesca as mãos tortas, os dedos ausentes, a conjuntivite crónica, o cheiro  insuportável a dentes podres e a um constante nariz entupido por culturas de bactérias do Terceiro Mundo e muitas mais outras coisas inimagináveis, seriam pequenos grãos de areia escondidos por uma fascinante beleza nativa. Infelizmente, o Inferno existe, e a nossa querida Papoila nasceu e cresceu bem dentro dele e aí se tornou uma mulher. Mas como um mal nunca vem só, em vez de uma filha a mãe deu à luz um par de gémeas, ou seja, duas papoilinhas, que se desenvolveram por caminhos diferentes.
A nossa menina bem cedo bateu o recorde nacional no número de operações: duas ao nariz aos 3 e 4 meses, a uma hérnia aos 14 meses, várias às mãos, aos olhos, aos dentes, laqueação de trompas, e sabe-se lá ao certo quantas mais, tendo uma destas estadias hospitalares causado, segundo os especialistas da alma, um trauma de isolamento, devido a ter estado 34 dias internada sem visitas. A juntar a este curriculum vitae havia a assinalar sarampo, faringite, meningite, encefalite, rubéola, varicela, papeira, epilepsia, miopia em alto grau..., não havendo ainda à superfície da  Terra  um ser humano dotado de um córtex cerebral que fosse resistente a tantas doses de bactérias, vírus e anestesias. O da nossa Papoila não foi excepção à regra e depressa os seus carretos corticais griparam, ou melhor, colaram, soldaram-se, e para sempre ! Assim, foi lançado ao mundo um ser cujo envolvimento pouco fez para a compensar dos fracos atributos que os céus lhe tinham dado. Não foi ensinada a comer alimentos sólidos e assim a dentadura, que era das poucas parcelas do corpo que apresentava uma estrutura normal, entrou em desuso e apodreceu. Os comportamentos agressivos, muitas vezes devido às dores e o cheiro a texugo que exalava da boca em nada ajudaram a sua integração social. Nestas alturas de êxtase tanto podia arremessar uma cadeira, como marrar, e é este o termo correcto, marrar contra a parede mais próxima, sendo as inúmeras marcas nas paredes de madeira as provas das baixas pressões que se instalavam com frequência na alma da nossa Papoilazinha, também da Brandoa. Mas, e há sempre um “mas” e haverá sempre outro “mas” na sua atordoada existência, pois ela surpreende-nos quotidianamente. Quando não está voltada para as marradas, coloca o indicador torto na garganta e resolve pulverizar o ambiente com o conteúdo ácido das suas entranhas. E foi assim que resolveu presentear os colegas semanas a fio, dentro da carrinha. Com um movimento rápido conseguia expelir o líquido fedorento e perfumava os amigos, os móveis e os imóveis. A funcionária responsável depressa arranjou o método mais eficaz, atando-lhe as mãos, mas a estratégia foi considerada antipedagógica pelas mentes mais esclarecidas e o vómito continuou a jorrar, para desespero daqueles que estavam encarregues de ir pôr e buscar os mongas a casa. Diziam estes técnicos iluminados que iriam resolver o problema rapidamente, através de intervenções adequadas tendo, no entanto, o cuidado de  manter as distâncias de segurança da guerrilheira. Como era de prever, nada se alterou, a Dona Papoila estava inflexível, insistia em presentear matinalmente os seus colegas de curso com o seu show aquático, os pais dos outros já reclamavam, pois muitas vezes isto acontecia no regresso a casa, sendo os seus rebentos entregues com um intenso perfume a ervas amargas, um produto digno das melhores lojas da especialidade, que pululavam pelas vastas ruelas da tradicional Brandoa. Alguns meses depois esta estranha crise de adolescente inconsequente foi ultrapassada e o ambiente entrou nos eixos, com os berros, os urros, os piolhos, as borradas, as babas, etc., etc., que fazem o dia a dia da nossa bem amada barraquinha. Até a mãe da Papoila entrou na rotina, tornando a acusar os professores de serem cúmplices no desaparecimento do pêlo, que ela dizia ver aparecer naquela careca calejada pelas pancadas nas paredes. Tinha desistido de acusar a filha depois de lhe terem explicado que ela não conseguia fazer pinça com os dedos, visto eles apontarem para lados contrários.
- São os colegas ! - disse um dia numa das inúmeras reuniões.  
As acusações iam subindo de tom, já nem sabia quem era mais demente, se a filha, se a mãe ! A senhora acusava agora de terem uma cadeira com pregos, onde sentavam todos os dias a sua Papoilazinha. A relação extremamente punitiva que a mãe mantinha com a filha transferira-se para os técnicos, humildes aprendizes de carrascos da Idade Média. E tudo com origem numa careca, calejada pelas horas e horas que esteve fechada sozinha encostada às paredes, abanando a cabeça de um lado para o outro e fazendo um barulho monótono com a boca. Vagueou por vários sítios, desde a ama onde passava 12 horas seguidas, até às várias instituições que a acolheram, tendo sido sempre o patinho feio.
A uma crise seguia-se outra e os céus não lhe davam o descanso que pedia. De um momento para o outro adquiriu um comportamento obsessivo, que consistia em ir frequentemente à casa de banho e esfregar os olhos com água. Tudo não passava de outra mania, julgavam, até que o oftalmologista diagnosticou uma cegueira irreversível. Lá em cima não lhe queriam dar sossego ! Depois de muitas batalhas, a mãe lá a conseguiu levar a um especialista em Barcelona e a nossa Papoila veio com uma outra oportunidade. Até quando ? Isso ninguém saberia, pois neste mundo os genes escrevem sempre torto por linhas tortas. Quanto ao pai, há muitos anos que tinha sido expulso de casa por não querer trabalhar e, por incrível que pareça, casou-se novamente e teve um rebento de calibre idêntico ao desta sua meia irmã. Não nos podemos também esquecer que as tias materna e paterna sofriam de debilidade mental, mas é melhor ficarmos por aqui.......

 
P.S. – Lamento tornar a incomodar os vossos espíritos sensíveis, mas preciso de acrescentar mais um dado importante na vida desta mártir: a sua mão dominante era a esquerda, mas até a este nível foi contrariada, passando a usar a direita.    

Tuesday, July 27, 2004

A Relíquia



                                                         Camarada Choco
                                                                        
 
- Estou sim? É por causa de um quadro - disse a Lolita com uma voz muito acelerada, estando encostada a uma das paredes, tendo uma das mãos junto a um ouvido, fazendo, mais uma vez, um dos inúmeros telefonemas para a Câmara Municipal - eu encomendei-o para as 13H30.
Os céus dotaram-na com uma boa memória, inútil a maior parte das vezes, ou mais correctamente, inconveniente.
                                138 - 29 - 94 - 38, são as medidas mágicas, em centímetros, desta espectacular fêmea de 30 anos, representando o primeiro conjunto de números a altura, seguido do tamanho dos pés, do perímetro da cintura e finalmente do perímetro da cabeça.
- Ai, ai,ai,ai, mas que grande confusão, organizem-se - exclamou a nossa diva, passando como um foguete de uma sala para a outra, abanando furiosamente as mãos, sinal de contentamento.
Confusão !?? Confusão foi quando decidiu ir pela primeira vez à piscina e na hora da verdade quis dar música aos professores, e que música !! Até parecia uma deputada a falar, arranjava todo o tipo de argumentos para não ir à água.
- Eu nem consigo lavar-lhe a cabeça com água, tem de ser com algodão e álcool – explicou a mãe às educadoras uns dias antes quando lhe comunicaram que tencionavam levá-la à piscina.
Mas desta vez a Lolita não se ficaria a rir, pois a Constituição desta Cooperativa de Ensino e Reabilitação dizia no seu artigo 1º que

                                                    “Aqueles utentes que desejarem deslocar-se à Piscina Municipal têm obrigatoriamente de entrar dentro de água, podendo-se em casos extremos, usar as medidas que forem consideradas necessárias para os colocar no meio aquoso”.
- Eu sei, já ouvi, não sou surda - gritava a futura Tágide da Brandoa, ao mesmo tempo que se escapava, mais uma vez, como uma enguia, das mãos daqueles que a queriam lançar às águas tumultuosas. - Temos de conversar.
Conversar!?? Ainda queria mais diálogo!?? Não, agora era a sério! Acabou por ser encurralada e pouco tempo depois flutuava no meio do oceano, dentro de uma bóia roxa gigantesca, que orgulhosamente tinha trazido de casa. E ali estava a dona Lolita mais vermelha do que um tomate, depois de ter caído dentro de uma lata de tinta vermelha, imóvel, mas acima de tudo calada graças a Deus ( ou seria graças aos Mestres, como ela chamava aos pacientes docentes ?? ), uma autêntica tumba. Falar significava balançar e isso ela não queria. Só lhe restava esperar que o tempo passasse e a hora do regresso viesse depressa. Até lá podia recordar um passado que lhe era estranho e de que não guardava memórias, como, por exemplo, a gravidez da mãe que fora normal apesar de ter levado uma injecção para a segurar. Também não sabia que só tinha querido vir ao mundo vinte dias depois e ainda por cima com a ajuda de fórceps e ventosas. O seu tamanho era mínimo, ao contrário do cheiro que era máximo, e ainda por cima estava sempre enrolada como um caracol. Foi encaminhada para uma incubadora e fez greve à mamada, ao mesmo tempo que o coração também resolveu chamar as atenções, soprando. Ria-se de felicidade, mostrando ao mundo a sua colecção de dentes podres, pois sabia que tinha sido uma criança muito desejada.
Uma onda fez a sua bela bóia abanar violentamente, trazendo-a à realidade. Ainda pôde vislumbrar o belo Choco, agora transformado num magnífico tubarão martelo, nadando tal como um prego. Ao seu lado estava um espectacular peixe-espada enfiado numa câmara de ar, com um sorriso de orelha a orelha, contemplando com satisfação o quadro vivo de Dali. O suave balancear levou-a de novo para o andar das memórias, que lhe revelaram ter sido internada aos dezanove meses devido ao excesso de convulsões. Os inúmeros exames detectaram que a sua idade óssea correspondia ao de uma criança de um mês, tinha microcefalia, sendo a causa disto tudo, como na maioria dos casos, de “etiologia desconhecida”.
- Lolita, se quiseres, podes sair - disse-lhe um dos “mestres” no meio daquela confusão aquática.
Era esta a palavra mágica que a nossa tágide esperava desesperada ouvir, a fácies vermelho explosivo mostrava claramente a sua motivação. Sair, mas como !?? Continuava a meio daquele vasto mar, a costa estava cada vez mais longe, o Choco resolvera agora nadar nas proximidades da sua elegante bóia versão petroleiro e as ondas produzidas afastavam-na cada vez mais do porto seguro. Depressa descobriu a maneira mais eficaz de resolver a situação: usar os braços como remos. E assim começou mais uma extraordinária aventura da nossa heroína do Portugal dos Pequeninos. O oceano estava agitado, revoltado, tenebroso.....penso que é melhor recorrer a  um tal de Camões para descrever a terrível cena:

                                                  “ Tão temerosa vinha e carregada,
                                                  Que pôs nos corações um grande medo;
                                                  Bramindo, o negro mar de longe brada,
                                                  Como se desse em vão nalgum rochedo. “
                                                   .......
 
Finalmente chegou ao destino, uma multidão de fãs esperava-a pacientemente. A diva encostou o iate e subiu graciosamente a escadaria da fama, envolta numa chuva de palmas e palavras de admiração e carinho. Mal pousou os pés tamanho vinte e nove em terra firme parou, olhou para os nativos e declamou, tal qual uma sábia:
- ORGANIZEM-SE ! – e dito isto arrancou, deixando para trás a própria sombra.

 

 

Monday, July 26, 2004

A Ilustre Casa dos Ramires

                                                    Camarada Choco


                                                                       

- Piolhos tem você na pintelheira – respondeu, educadamente, a avó da Narcisa Ramires à funcionária responsável pela carrinha, depois desta a ter informado de que a menina estava acompanhada de muitos Pediculus Humanus Capitis.
Aliás, como pôde constatar in loco, aqueles bichinhos amorosos e traquinas tinham uma grande afinidade por aquela ilustre família. A mãe da Narcisa, que se encontrava junto da velha senhora, também deixou escapar um Pediculus Humanus Capitis para a cabeça de pêlo raso do seu último rebento, que resolvera vir ao mundo, imaginem só, sem a avisar! E ainda ficavam indignados quando lhes chamavam “geração rasca” !?
- Mamã, o período apareceu ! - dissera a progenitora da Narcisa, via telefone, muitas semanas antes, no intervalo da telenovela.
Infelizmente, muitas vezes São Monga prega-lhes partidas, principalmente aqueles cujo conteúdo craniano é maioritariamente forrado por areia. E a mãe tinha-a avisado uns meses antes durante uma reunião com o professor e as educadoras.
- Espero que aquele malandro do teu primo não te emprenhe outra vez. É sempre a mesma coisa cada vez que vem cá abaixo para uma obra - avisava-a a única meia cabeça pensante, balançando uma outra neta, também nossa colega.
Mas como há males que vêm por bem, ou o que é mau para uns é bom para outros, ou o que é bom para uns é mau para outros...bem, deixemo-nos de retóricas e passemos à frente, porque senão ainda aparece por aí o primo-cobridor e eu ainda não falei do novo rebento e já ele presenteou a Narcisa com um par de gémeos e assim nunca mais acabo a história...Como ia dizendo, a vinda ao mundo deste novo ser humano até trouxe certas vantagens à família Ramires, principalmente no que diz respeito à alimentação. A mãe conseguia matar “dois coelhos de uma só cajadada”, neste caso fazia assim uma pequena alteração, ou seja, amamentava dois filhos de uma só vez: o rebento e a Narcisa, que andava sempre esfomeada. A teoria da educadora para esta fome crónica era de que a sua aluna estava no fim da escala alimentar da família, por outras palavras, ficava com os restos, quando os havia! E foi devido a estes zelosos cuidados, que demonstraram ser esta mãe uma fanática leitora do doutor Spock, mesmo sendo uma analfabeta existencial, que o peso da Narcisa Ramires ficou no escalão pluma, ou seja, perto da subnutrição, com uma única risca no pijama, que é mudado quando se desfaz com o passar do tempo. Estes momentos pós-parto-na-sala-em-vez-de-menstruação-em-atraso foram de fartura, pois a senhora encontrava-se em estado Mimosa, apta a fornecer leite de borla a toda a família. O único perigo era o rico primo resolver vir a Lisboa para uma obra, pois seria trigo limpo que ele começaria com calores fisiológicos no final da segunda circular, sendo voluntariamente obrigado a inflectir para a Brandoa, não conseguindo resistir a estes instintos carnais, acabando por mudar o óleo aos pés da sua tágide amongoada, ao mesmo tempo que lhe dava a surra do costume, e neste caso devido ao facto dos seus seios jorrarem leite, em vez de bagaço. Não saberia ela que ele era alérgico, desde tenra idade, a esse asqueroso líquido branco !!? E foi num destes desentendimentos ocorridos quando a Narcisinha ainda fazia parte da mãe, que o Júlio pedreiro resolveu treinar boxe na barriga da sua prima, decidindo definitivamente a identidade científica da sua futura filha: Sindrome de Dandy-Walker.
Na festa de Natal organizada pela escola oferece-se sempre um grandioso banquete a todos os presentes e ausentes ( a comida também lhes chega à boca, pois há sempre convidados que vão para a mesa munidos de sacos de plástico - gente fina é outra coisa ! ). Este é o dia tão esperado da família Ramires, as suas barrigas são tiradas da miséria do ano civil que está prestes a terminar. Ainda a mesa está a ser apetrechada e já a tribo a cerca, debicando aqui e acolá nos queques e croquetes mais distraídos. E a linguagem?? Um mimo, um autêntico vocabulário vicentino, e do puro, sinal de uma educação esmerada, baseada na mais fina linhagem da Brandoa. É nestes momentos mais socialmente íntimos que se fazem excelentes observações da maioria das famílias. Estava a banda da Dona Ermelinda a tocar freneticamente, pondo até em ritmo acelerado o mais profundo dos colegas, quando reparei na mãe da Narcisa, imóvel, insensível àquele terramoto musical. Seria possível que nem com um pé tentasse acompanhar o roque da pesada que fazia abanar o auditório da câmara !?  Estaria morta ? Aproximei-me cautelosamente e qual não foi o meu espanto ao deparar com a senhora a respirar. Aquele era o seu estado normal, agora compreendia porque é que a Segurança Social lhe dava uma pensão e as refeições diárias à família. Um dia alguém a abordou e lhe sugeriu  que fizesse uma operação para não ter mais filhos.
- Ainda sou muito nova ! - foi a resposta.
E como a tradição é um princípio irrevogável nesta ilustre casa dos Ramires, a filha mais velha, com 15 anos, não quis ficar atrás e acabou por presentear a mãe letárgica com um belo neto, portador dos mais finos genes da Brandoa. Ainda não tinha feito 20 e já era mãe de três!

 

 

 

Sunday, July 25, 2004

Quarta a Fundo




                                                    Camarada Choco
                                                                

- Senhor professor - chamou alguém com o braço no ar, - eu queria agradecer-lhe pelo facto de a minha Zobaida fazer ginástica, mas podia ser um pouco menos .... como é que eu vou explicar..... menos - e tentava encontrar uma palavra que fosse certa e suave ao mesmo tempo, recorrendo para isso a uma mão que arranhava nervosamente a área pelada da cabeça, tentando estimular a memória traiçoeira dos seus cinquenta e tal anos - ... menos.... menos violenta - o termo não era propriamente meigo, mas o tom da voz compensava a falta - A minha Zobaidinha apareceu-me outro dia com um galo... um galinho...
Galinho!?? Galo!?? ....Sejamos realistas, um Capão, um Grande Capão...ou mais correcto, uma Avestruz, e das grandes!! Um acidente de percurso, um lamentável, mas imprevisto despiste, que a deixou contemplativa e silenciosa. A Zobaida nunca tinha tido uma “estimulação” tão intensa em toda a sua vida de tetraplégica, por momentos ficara a ver o Mundo de pernas para o ar, com milhares de estrelas ao alcance das suas mãos. Em linguagem mais popular, a aula tinha sido “muito radical”. E o professor que tentara a todo o custo reduzir-lhe o hematoma, tendo recorrido para isso a um saco de ervilhas congelado e fora do prazo, e mais tarde, quando já a Avestruz cantava de Galo, alterando-lhe o percurso natural da franja. Mas, pelos vistos, a operação de camuflagem tinha sido um fracasso. E este pai estava a ser tão bondoso para ele, ao contrário da maioria que tentavam arranjar sempre algo para os crucificar.
A Zobaida tem um irmão mais velho, profundo, muitíssimo profundo, um autêntico “quiabo”, segundo a terminologia das novelas brasileiras. Pelo meio ficaram dois, um que nasceu com cianose e morreu alguns dias depois, outro que foi prematuro de seis meses e meio e que também não resistiu. Para os pais a Zobaida significava a segurança após as suas mortes, a irmã ficaria a tomar conta do irmão. Antes de partirem para esta quarta aventura tiveram o bom senso de recorrer aos serviços especializados, que após muitos estudos lhes deram a benção, apesar de na história familiar haver um primo materno deficiente mental e a mãe ser diabética. E como um mal nunca vem só, a desgraça bateu de novo à porta desta simpática e humilde família.
Conheci-a na adolescência a um canto de uma sala, num estado letárgico, rodeada de moscas, atraídas pela sua pouca higiene e pela necessidade constante de lhe mudarem as fraldas. Os insectos passeavam-lhe pela cara, sendo a boca o local predilecto para aí engordarem. Só de tempos a tempos é que um braço se levantava para expulsar, por breves segundos, os invasores insaciáveis, sedentos pela baba que escorria lentamente por aqueles lábios femininos. Uma outra rotina tornava o ar ainda mais poluído, o momento da mudança das fraldas. Sem qualquer intimidade, a Zobaida era colocada em cima de uma mesa, tal qual um saco de batatas, as pernas eram elevadas e aquela mulher ficava ali exposta à curiosidade dos colegas, de rabo ao léu, e quantas vezes ainda a defecar. Por muito que a limpassem, o cheiro tornava-se insuportável. Imaginem agora em sua casa, com os pais já velhotes !
A descida da carrinha era também uma das actividades de maiores riscos, para todos. Sem elevador, tinha de sair ao colo das funcionárias, que muitas vezes atingiam os limites das suas possibilidades e, nessas alturas, vinha tudo ao sabor da lei da gravidade,  só parando no chão imundo dos passeios da Brandoa.
Mas voltemos ao assunto principal da história, o acidente de viação da nossa querida Zobaidinha, um capotanço digno dos melhores filmes do James Bond. Tudo aconteceu à entrada do ATL e a nossa querida Fangia acabou por ser presenteada por um espectacular fogo de artifício, acompanhado de um baile de gala neuronal:
Era uma vez um professor de educação física que se ofereceu como destacado para o Ensino Especial...
O pré-fabricado exalava um calor insuportável, misturado com um intenso cheiro a baba, sendo o cenário iluminado por uma penumbra digna do melhor jazigo do Alto de São João. No meio de todo este luxo, cópia fiel dos melhores hotéis das famosas praias do Seixal, encontravam-se, em estado zombificado, vários humanóides de diferentes tamanhos e aspectos, tendo uma característica comum: as pálpebras e os cérebros estavam todos a meio-gás, assim como as janelas.
Primeiro Acto - desencadear uma revolução à francesa, um autêntico assalto à Bastilha. Luz, luz e mais luz, abrir a masmorra ao Mundo, expulsar o bolor daquelas almas.

                                  “ Ao princípio fez-se luz “
E “luz” foi sinónimo de “despertar”, despertar para a vida, neste caso para um jardim de entulho.
A Zobaida foi retirada do cantinho muito escuro e colocada no exterior muito brilhante.
- “Quélo passeal” - disse com convicção a nossa amiga, como que reanimada mais uma vez da sua segunda morte aparente.
Os seus desejos passaram a ser ordens, ela merecia-os! O professor chamou então três miúdos do ATL e pediu-lhes para  a empurrarem. Prontificaram-se de imediato e começaram a empurrar a cadeira de rodas e o seu pesado conteúdo. Voltou costas e foi à procura de outros “despertados”.
Ainda me lembro de a ver passar junto à minha janela como um foguete, mas infelizmente o meu olho direito não conseguiu acompanhar a cena radical, devido ao facto de trabalhar a carvão. Algum tempo depois apareceram os motoristas da nossa querida Zobaida, mas sem o veículo e a sua respectiva patroa. Teriam tido a liberdade de ir buscar um Ferrero Rocher!??
- Professor - chamaram timidamente e continuaram, - a menina da cadeira de rodas caiu num buraco...
Buraco!!? Caiu num buraco!?? Mas neste pátio que circunda o ATL da Brandoa não há nenhum buraco!!....Só se foi pelas escadas abaixo do portão principal !! Mas o portão estava fechado ! Caso tivesse descido, com certeza que não estacionara logo ali e resolvera continuar pela enorme rampa que levava à planície e por essa altura já teria entrado de rompante pela montra da loja dos 150 e estava excitada a contar a aventura alucinante à senhora que permanecia espalmada debaixo da cadeira de rodas. Por momentos o nosso querido professor paralisou, não quis ver! Deitei mão a um dos frascos de drunfos, ele iria ter, de certeza, um ataque de caspa.
- Estúpido, não era melhor tê-la deixado no cantinho escuro, com as suas moscas de estimação ?? – pensou e muito bem.
Ufa!! Afinal ainda permanecia no recinto escolar, estava “somente” capotada no desnível que dava acesso ao portão. Os seus ajudantes tinham decidido pôr a quarta mudança e acelerado até ao fim, esquecendo-se que as rodas da frente das cadeiras de rodas são, geralmente, muito pequeninas, e quando atingem a velocidade do som perdem a estabilidade. Provavelmente a Zobaida tentara fazer uma descolagem inédita e assustara os seus colaboradores. O resto da cena fica ao critério de cada leitor.
O pai tinha razão:
- Eu queria agradecer-lhe pelo facto de a minha Zobaida fazer ginástica, mas podia ser um pouco menos.... violenta.
De uma coisa a Zobaida poder-se-ia orgulhar para sempre: ela nunca fora, nem nunca mais seria, tão energicamente estimulada em toda a sua vida!  
                 
     

 

 

Saturday, July 24, 2004

O Caso do Dente Desaparecido

                                 Camarada Choco 
 
                                                                       

Se há alunos que são considerados os clássicos, um deles é o nosso amigo e colega Choco. Namoradeiro por natureza, capaz de dar assistência simultânea a várias fêmeas, nutre, no entanto, uma paixão platónica pela Florbela, uma rapariga prodígio que consegue revirar os olhos de maneira a que fiquem todos brancos, ao mesmo tempo que faz gestos e ruídos semelhantes aos símios. Estranhas formas de amar! Segundo a lenda que saltava de boca em boca, o nosso herói do cinema mudo não falava devido a ter feito uma operação para ablação das cordas vocais. No entanto, no seu cadastro nada constava e no seu pescoço não era visível nenhuma cicatriz. Podiam tê-la feito pela boca, sugeriu um dia alguém. Até as podia ter comido ao pequeno almoço, pois não era a descoberta da verdadeira causa que lhe iria devolver a voz. - Ha, há, oh, Ho, hô - dizia e com muita razão o nosso Choco, ao mesmo tempo que mostrava a gravata encarnada à sua musa, que não perdia tempo em agarrá-la sofregamente e puxá-la  para as suas famintas mandíbulas. Ele gosta destas canibalescas carícias, pois elas são a prova de um grande amor. Em termos de deficiência, ao Choco não lhe aconteceu nada, unicamente herdou, como mandam as leis da Natureza, os genes maternos, assim como a sua irmã. A família está organizada, é dirigida por uma avó com um Q.I. normal, o pai é um empresário de sucesso, trabalhador, cujas contas têm de ser dirigidas por outra pessoa, e até tem uma secretária que nos envia muitas vezes, em papel timbrado e devidamente assinado pelo patrão, recomendações sobre o filho:                                  “ Venho por este meio informar que o meu filho Choco tem que tomar 45 gotas depois do pequeno almoço e outras 45 ao deitar.                                       Sem mais, obrigado pela atenção dispensada “ Nas poucas reuniões gerais onde esteve presente, para visionar um filme sobre a estadia dos nossos alunos nas colónias de férias, deixou transparecer o orgulho que sentia pelo seu morgado: - Vê, vê, o nosso Choco é o melhor ! - dizia, inchado de orgulho, ao mesmo tempo que dava uma cotovelada marota à mulher, como que lhe agradecendo a prestimosa ajuda que tinha dado na concepção de tão perfeita criança. Ficará duplamente feliz quando conseguir arranjar vaga para a filha, que já acabou definitivamente a sua estadia na Escola regular. Mas se o pai o visse a nadar, com toda a certeza que teria um tic-tic ! Claro que não lhe iriam dizer que o filho costumava aparecer com vários fatos de banho vestidos ( o recorde ia em seis ), e muito menos à sexta-feira, tão próximo da segunda, que é o dia da piscina. À mãe era escusado dizer algo, pois nem para os criar tinha tido capacidade ( tal qual a maior parte das mães nos dias de hoje ! ). O fenotipo do Choco é constituído por uma cara afunilada, que termina num espaço vazio, antes ocupado ( segundo a ordem natural das coisas, neste caso coisas humanas ) por um dente. Como a vida corre bem ao pai, um dia fomos presenteados com um novo acessório: um dente novo, uma autêntica relíquia, o orgulho da família. Mas, e há sempre um “mas”, o dente era desmontável. Ao meio-dia de segunda-feira lá fomos mais uma vez para a piscina municipal, e o Choco não podia faltar, aliás, já se tinha preparado durante todo o fim de semana. Ele e alguns dos nossos colegas, que são autónomos, são os primeiros a sair da carrinha e, como qualquer outro tipo de utentes ( incluindo nós ), dirigem-se para os balneários e depois de devidamente equipados vão para a piscina, recebem as instruções e iniciam a actividade. Neste dia o Choco, além do dente e dois colãs de lã, apesar do calor abrasador, veio de fato e gravata, devido ao facto de a maior parte dos utentes que frequentam a piscina nesta altura ( hora do almoço ) virem de fato completo. Os ténis felizmente são novos, no último mês foram enviadas inúmeras cartas para casa a reclamar “ o insuportável odor exalado pelos ténis “, que nunca deveriam ter sido tirados dos pés desde que foram comprados. Os professores ameaçavam  recorrer à Protecção Civil denunciando o “ perigo para a saúde pública “ que representavam aquelas faluas pestilentas. Agora imaginem as cuecas ! Um dia ouvi um professor a descrever a outro uma definição exemplar deste tipo de cuecas: “ uma peça de roupa que é amarela à frente e castanha atrás “. Assim, o dia da piscina também era o dia da limpeza geral para muitos de nós, pois havia banho antes, durante e depois. Mas continuemos ! A aula decorreu sem incidentes de maior, o Choco comportou-se como um autêntico Tarzan aquático e quando decidiu que já era altura para acabar saiu, calçou os chinelos e lá foi para o balneário. Quando fui ter com eles apercebi-me de algo que já há anos acontecia, mas que nunca tinha tido consciência disso. Lembram-se de lhes ter contado que o senhor Choco não falava, devido a não ter cordas vocais? Pois é mentira, o Choco fala e muito, é uma autêntica gralha ! E lá estava ele no meio daquelas pessoas todas a chamar um dos colegas e a dizer-lhe que a água estava quente: - Hà, há, Oh, hã, há... Era como se fosse uma língua estrangeira ( o Chocaleiro ), aqueles sons tinham vários significados, os seus volumes alteravam-se constantemente mas, era nítida. Chamaram-no e ele respondeu dizendo o nome: - Hi, Él... O resto do dia decorreu dentro da normalidade, mas o mesmo já não se pode dizer da manhã seguinte. Era o caos na escola, tinha acontecido uma tragédia no dia anterior, o Choco aparecera em casa sem o seu cachucho dentário, a estrela cintilante dos passeios de domingo, aquela coisa que impelia o comum dos mortais a tratá-lo por doutor Choco. Segundo as testemunhas e as vítimas, que são sempre o motorista e a auxiliar que o acompanha, a mãe do nosso herói do cinema indiano mudo, o Rudolfo Valentino da Brandoa, tinha tido um ataque de caspa à porta da carrinha e ameaçara com uma queixa na ONU, caso não encontrassem rapidamente o precioso acessório, orgulho de uma família de chocos e do respectivo líder do grupo, uma sapateira abigodada. Onde é que se tinha metido o malandro do incisivo ? A investigação iniciou-se de imediato com um rigoroso interrogatório à vítima, que respondia sempre da mesma maneira: - Há, ò, há, Hó, hô... Todos eram culpados até prova em contrário, dizia a lei ! Roubo!?? Será que alguém ousara fanar aquela relíquia !?? Primeira acção: obrigar os presentes e os ausentes, quando também estivessem presentes, a sorrir para os agentes responsáveis pela missão, afim de verem se alguém teria um motivo para tal ignóbil acto. Prova superada, todos tinham os incisivos no lugar. Segunda acção: confirmar a natureza desses incisivos, através do teste-do-toque. Também não foi desta que se conseguiu resolver o mistério. As horas passavam, aproximava-se o fim do dia escolar e ninguém tinha coragem para entregar o Choco à sua progenitora sem o dito. Era a vergonha para esta tão ilustre Instituição, constituída por dois vastos centros de educação e reabilitação, um  num r/c direito  e três salas num ATL pré-fabricado. A hora da verdade chegou e o nosso querido amigo lá foi entregue praticamente nu, estando unicamente resguardado com vários fatos de banho, umas cuecas multicolores, uns ténis do século 17 A.C. e um soberbo fato de treino castanho-escuro, originalmente de cor branca. À sua espera estava a turbulenta mãe, desperta agora do seu normal estado letárgico, devido a um incisivo fugitivo. O caso adensava-se, os investigadores estavam à beira de um ataque epiléptico, era necessário encontrar rapidamente alguma pista, para assim acalmarem aquela família à beira do abismo. - E se ele o engoliu !?? - sugeriu uma alma salvadora. Sim, era verdade, e se ele o tivesse engolido !?? Afinal de contas ele era um mudo muito falador !! Engolir!?? Engolir um incisivo de elefante com uma armação que podia dar três voltas à cabeça micro do Choco !?? Impossível!! - Aqui tudo é possível, não há limites para nada. Era verdade, era a pura e dura verdade, aqui tudo era possível, e seguindo este raciocínio milagroso, lá se conseguiu acalmar a situação durante algumas horas, ou mais precisamente até o Choco evacuar. Todos os olhares estavam agora pregados nos fundilhos daquele macho de 15 anos. Os minutos passavam, mas nada, nenhum sinal que levasse o nosso herói ao encontro do penico que lhe estava reservado. - E mesmo que a verdade saia daquele rabo arrebitado, o cachucho irá voltar à boca? - perguntou alguém, já um pouco agoniado. - Aqui nada se cria e nada se perde, tudo se transforma ! - exclamou uma voz sábia, ao mesmo tempo que tentava, neste dia em vão, dar de comer à Rosinha, que tinha muita dificuldade em engolir devido às suas crescentes deformidades. Trocando para uma linguagem popular, aquilo que inicialmente era dente apareceria agora em forma de cagalhão, para logo se transformar de novo em incisivo. Enquanto todo o drama se desenrolava, o Choco estava mais inclinado para namorar do que para defecar, tendo junto de si a esfomeada Florbela. A dama estava sentada, com os braços levantados, abanando-os freneticamente, a boca aberta lançava para o ar ruídos símiescos, ao mesmo tempo que revirava ininterruptamente os olhos. A roupa curta punha à abundantes pêlos, que parecia cobrir todo o corpo. O macho observava com carinho a expressão corporal da amada, tocava-lhe na cabeça e esta tentava agarrá-lo com sofreguidão. A um dado momento conseguiu alcançá-lo e este deitou-se no banco com a barriga para cima, descansando a cabeça no seu colo. De imediato a namorada pôs-lhe as mãos na cara e tentou agarrar-lhe os olhos, que foram fechados com rapidez. Os dedos da rapariga deram de caras com os orifícios do longo apêndice nasal e embrenharam-se sofregamente por ele acima. Os lábios do macho afastaram-se de imediato e os olhos abriram-se, em sinal de prazer profundo. Logo de seguida uma das mãos descaiu levemente e penetrou com ganância na boca do namorado, tentando pescar-lhe a língua. Deu-se início a um jogo frenético, em que uma mão feminina tentava agarrar uma língua masculina em fuga, acompanhados com gritos de paixão alucinantes, num tempo que era só deles e num espaço do tamanho de um banco...... A notícia caiu como uma bomba ! Não tinha saído nada das entranhas do Choco, além do normal. O dente continuava perdido, assim como a cabeça da mãe do Choco. Iria com toda a certeza haver mortos no fim do dia. Só nos restava ir para a piscina arrefecer as almas..... - Já vi de tudo nos filtros da piscina - explicava o responsável pela manutenção - brincos, pulseiras, anéis, cera protectora dos ouvidos, mas nunca, nunca - e ria-se a rodos - um dente, um dente. O incisivo nunca mais trouxe o Choco para a Cerci....perdão, perdão...o Choco nunca mais apareceu com o cachucho, estava só destinado para os domingos, por decisão irrevogável da mãe !            

Friday, July 23, 2004

20.000 Léguas Submarinas

                            Camarada Choco


A Expo 98 era para todos, até para aqueles com lapsos moleculares. E estes até tinham direito a uma hospedeira que os levaria a qualquer ponto do recinto, bastando para isso que apontassem  no mapa. Ao menos uma vez na vida iriam ter um tratamento “VIP”. À rapariga que os acompanhava bastava fazer um contacto via telemóvel, para passarem a ter uma recepção com banda à porta do pavilhão contemplado com os ilustres visitantes, igualzinha há que tinha tido o príncipe com orelhas de burro. Entravam, assim, perante os olhares incrédulos dos “normais”, que não tinham outro remédio senão esperar só mais umas humildes horinhas. E com estas regras bem agradáveis, lá foram passeando lentamente, muito lentamente, pela última exposição do século. Até que o pavilhão sorteado foi o da Alemanha ! A fila, como era de calcular, já dava a volta ao quarteirão mas, meus caros e compreensivos leitores, estes rapazes e estas raparigas com fenótipos diferentes dos mais comuns dos mortais são “Vips”, ou seja, eram muito mais importantes do que aqueles reles humanos de segunda categoria e até os alemães os veneraram como membros de uma casta superior. Mas as ilusões eram pequeninas, muito pequeninas ! Tudo isso não passava de um sonho......de curta metragem. O calor apertava, o do Sol e o humano. À espera estavam duas senhoras forçadamente simpáticas, que os conduziram para dentro do pavilhão e os colocaram junto dum elevador, uma espécie de simulador que os iria levar para as profundezas do oceano. O veículo aguardava-os com as portas escancaradas e alguns segundos depois receberam ordem para avançar. Todos entraram....todos ?? ...  todos não !! .... todos excepto a irredutível Violeta, que olhava assustada para o cenário circundante. Uns gritos ritmados saiam-lhe da alma, acompanhados por gestos descoordenados. Não saía, nem entrava! A fila parou, as alemãs começaram-se a desorientar, quem estava atrás e antes deles chegarem posicionava-se à frente, protestava no seu silêncio, bastava ler-lhes nos olhos. Tentavam-se desesperadamente todos os métodos pedagógicos disponíveis, diziam à Violeta que não era obrigada a ir, podia sair e esperar lá fora junto aos outros que não quiseram entrar. Foi em vão ! Propôs-se uma última tentativa: recorrer à educadora preferida, pois com ela a Violeta seria chamada há pouca razão que ainda conservava, e assim talvez se apercebesse que lhe bastava recuar dez metros para estar outra vez livre, respirando aquele ar puro do Trancão.  Falhanço total !!! Nem para a frente, nem para trás. As nórdicas falavam nervosamente pelos intercomunicadores. No meio da confusão a Violeta aproximou-se perigosamente do simulador. Dois metros, um ...... agora ! .... e foi envolvida no grupo, tendo-se usado o melhor método nestas ocasiões, o empurra-puxa-e-logo-se-vê. Ufa ! A primeira etapa já pertencia ao passado.
As portas fecharam-se e lá desceram num turbilhão para as profundezas dos oceanos, rodeados de barulhos e efeitos visuais, acompanhados ao vivo pelos gritos arrepiantes da artista do momento, Dona Violeta da Silva, formada no Centro de Animação da Brandoa. O fundo do mar depressa chegou, tal era a pressa com que iam e as portas abriram-se com estrondo, dando acesso para aquilo que parecia ser um submarino.
Dentro reinava um silêncio encantador, acompanhado de pequenas luzes multicolores que iluminavam suavemente uma panóplia de instrumentos interactivos, manipulados por visitantes em estado letárgico. Por breves, muito breves instantes, a nossa heroína deixou-se contagiar pela beleza que a envolvia, fitando curiosa a teia cintilante que a pouco e pouco se ia embrenhando na sua alma, ao mesmo tempo que levantava os braços para os céus em sinal de devoção. A um dado momento a boca abriu-se e soltou um aviso de incêndio generalizado na rede neuronal do seu cérebro, despejando em todas as direcções relâmpagos rápidos, que ameaçavam extravassar-se num comportamento digno do melhor filme de Hollywood. Quanto aos acompanhantes, estavam somente à espera do inevitável, ou seja, que a bomba Violeta explodisse e lançasse o mau tempo ao mundo do silêncio. O Tempo era relativo, muito relativo, e estes pequenos segundos pareciam uma eternidade. Mas o prometido era devido !  
O espectáculo recomeçou, tal como constava no programa, com uns gritos estridentes que despertaram os espectadores mais distraídos e cuja tradução era mais ou menos assim:
- Senhores e senhoras, meninos e meninas, portugueses e portuguesas, aqui está a Violeta, a rainha dos mares e dos mongas, que se prepara para presenteá-los com o maior espectáculo do mundo.
À medida que a artista avançava com as asas abertas, tentando fugir das estrelas cintilantes, os espectadores mantinham-se imóveis, para assim passarem despercebidos ao monstro marinho que invadira aquele porto que diziam ser seguro. Atrás da diva seguia um mar de admiradores, responsáveis pelo apoio logístico, que  tentavam, em vão, chamá-la à razão, mas a artista estava tão absorvida no seu papel, que nem se apercebia que à sua volta existia um outro mundo um pouco mais organizado, e bem fundo. À medida que a nossa admirada Papoila progredia pelo submarino, a multidão afastava-se em respeito, ou seria em pânico ? O segundo acto terminou com a artista sentada na posição do grande chefe índio, o Cachalote Ruidoso.
Tinha chegado, então, a altura para mais uma intervenção pedagógica. Um a um alguns figurantes técnicos tentaram reorganizar-lhe os neurónios, tal como num puzzle, usando para isso as mais modernas palavras educativas, mas a Papoila insistia em representar o papel até ao fim. E o fim estava ali tão perto, a alguns metros de uma porta de emergência. As cicerones, que estavam quase à beira de um ataque de nervos, foram avisadas das  próximas intenções e prepararam-se para a acção dos comandos. Finalmente iriam aplicar-lhe o golpe final e mais eficaz, o prende-eleva-transporta-despeja. O sinal verde chegou.
- Professor, é a sua vez!
Avançou, agarrou à força a Papoila e em segundos estava de novo ao ar livre, com um sorriso nos lábios e uma palavra de agradecimento pela ajuda prestada:
- Desculpa !
Foram de novo convidados a regressar ao fundo do mar, agora sem a artista, trazendo à pendura um casal que conseguiu fintar a segurança e entrou bem integrado na comitiva. Receberam admirados uma prenda inesperada: uma aluna que tinha ficado esquecida lá dentro.
Estavam no fim da visita, só lhes faltava regressar ao recinto da “Expo” num excitante disco voador. As portas do simulador abriram-se e lá entraram, felizes e contentes, com mais trinta visitantes. Ficaram na fila da frente, o espectáculo ia começar. As portas fecharam-se e o aparelho começou a vibrar, até que de repente uma tempestade de luzes entrou-lhes pelos olhos, ao mesmo tempo que tudo mexia, tudo rugia....Olharam para o Choco, que é macho e tem 20 anos, e viram que os seus olhos estavam pendurados nas órbitas, a língua já tocava no chão, a cara deformara-se ainda mais e.... Deus misericordioso , estavam de novo ameaçados por um exuberante espectáculo, o Choco sofria de epilepsia e não havia cérebro ( mesmo o dele que era micro! ) que aguentasse tamanho jogo de luzes. Encurralaram-no, entraram em alerta vermelho e a viagem continuou, o oceano ficou para trás, estavam agora no ar, o recinto da “Expo” já se vi     a ao longe....aterraram...o verdadeiro fim aproximava-se, o fim do pesadelo do Choco, que depressa recuperou as cores e avançou orgulhosamente pelo passeio marítimo, saboreando, mais uma vez, o cheiro a maresia libertado pelo fascinante Trancão.       

Introdução

INTRODUÇÃO
Um simples risco num cromossoma pode decidir para sempre a carreira política de alguém.

Memórias do Camarada Choco 
Um Proletário visto à Lupa
O camarada Choco pertence a uma classe social inferior, a sociedade não o deixa pagar impostos, tem electricidade de borla, dão-lhe vários ordenados por mês, um para ele e os outros para quem o educa, reabilita e reeduca, enfim, tem uma vida de lorde numa mansão em pleno centro do Inferno...ou será o Paraíso !?? O corpo humilha-o todos os dias e priva-o quotidianamente de esperança,.apesar de ser um marco nesta estranha sociedade de auto arquétipos. Quando vai na rua as pessoas evitam cruzar-se com ele, olham-no de lado, ocupa o lugar que já pertenceu aos leprosos. Provoca ou a repulsa ou a piedade, a sua figura só transmite enfermidade, sofrimento, horror e receio e, para o bem de todos, não deveria andar pelo Mundo. Cada criatura de Deus tem algo que o distingue dos outros, para assim poder ser localizada rápida e eficazmente pelo seu Anjo da Guarda. Assim, uns têm deficit de cabelo, outros têm uma cor mais carregada, uns são minorcas e têm-nas avantajadas, outros são maiorcas e têm-nas curtas, etc.,etc,etc. Ao camarada Choco foram-lhe encaminhadas pelos Céus umas cuecas coloridas, fantásticas, únicas, com uma luxuriante fauna, um micro mundo ainda não descoberto, felizmente, pelos biólogos e outros intrometidos afins. Nesse magnífico mundo pululam Borgalhotas, Alcagóitas, Cabaças, Cutrilhos, Cutrelhas Cabacinhas e muitos, muitos mais seres vivos, dignos de pertencerem a umas slipes tipicamente proletárias, dignas dos melhores Comités Centrais ou das mais finas Lojas de Meias.
Foi numa noite já com a Lua distante e as cuecas rasgadas, que uma voz vinda do seu íntimo o desafiou para uma espécie de Viagem, uma Aventura pela Alma, pelas “histórias sem conta que os teus sentidos gravaram, com e sem o teu consentimento “ – disse firme e determinada e continuou:
-          Conta-as, revivendo-as; só assim te poderás encontrar com o sumo das tuas cuecas! Enquanto planares serás apenas um Anjo e o de baixo um primo afastado, a quem tu te referirás sempre na terceira pessoa, e que numas histórias não passará de um mero figurante e noutras será o artista principal, com todos os seus acessórios. Tu, Choco, és um visionário, um revolucionário, um poeta, um mito, um homem a quem uma simples troca de genes te tentou atirar para a lama, mas conseguiste erguer-te com uma mochila às costas e dois sacos de plástico da “Loja dos 150” em cada mão e, tal qual um “De La Mancha”, enfrentaste as inúmeras ruínas de moinhos que se espalham, ou deviam espalhar, pela Brandoa e os arredores, sem nunca ousares abandonar, tal qual um Camões após o naufrágio, as soberbas cuecas que te acompanham e que tapam a tua bilha em forma de lata de anchovas e a tua preciosa malagueta com um nó na ponta, graças a Deus, não fosses tu também querer seguir o exemplo do teu progenitor. Faz-nos participar nessas extraordinárias aventuras que guardas tão zelosamente dentro desse micro cérebro.
De repente, uma tempestade existencial eléctrica levou-o de encontro aos gritos estridentes da sua amiga e colega Papoila, acompanhados pelo som da sua cabeça a bater de encontro a uma parede de madeira azul. Mas havia algo de diferente, estava tudo amplificado, os sons, os movimentos e o tempo. Depois da Papoila veio a Violeta, a Lolita, o Tó Carvão, o Melão, a Snawzer, o Ambrósio Caspa, a madame Mocho, a Florbela, a Narcisa Ramires, a Palmira Melga, a Zulmira Destravada, a Telma Estrábica, o Zé Balbas, o Fangio Espástico, a Carolina Caracol, o Jójó Bafo-de-Bóde, a Mercedes Esgoto, a madame Amorim, a Castafiore, o Kodac, o Zé Trovão, o Tremoço, a Zobaida e...e finalmente o Choco..sim, sim, o Choco, sinal indiscutível da saída da própria carcaça, que ficava agora ali em baixo à mercê das fábulas, com heróis, vítimas, mártires e guerreiros.
Ainda se viu na 14ª aventura a partir em slide, tal como um trovão, com os ténis a chiar e o escape na máxima potência. Mas infelizmente não foi longe. Não tinha ainda atingido o meio da recta e já se precipitava de encontro aos paralelepípedos, junto à sua querida colega de infortúnio a Dona Zobaida, que acabara de capotar na 3ª aventura e esperava agora pelo 115. Mas estes eram problemas para resolver mais à frente. Não valia a pena preocupar-se com eles na Introdução.

-          ORGANIZEM-SE – gritou a Lolita arrancando e deixando para trás a própria sombra.

A aventura em que o queriam meter já estava a desestabilizar-lhe ainda mais a Alma; mas um revolucionário nunca anda para trás e “contra os canhões, marchar, marchar”, dizia a letra proletária. As jornadas iriam ser uma espécie de oração, de Salmos, um novo Manifesto, que lhe daria uma sensação de regresso à luz e à vida, uma esperança de um alívio infinito.