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315 estórias

Monday, January 21, 2008

Cosas Nostras





                         Camarada Choco
                                          Aventura 54


Quando o Choco entrou na Escola para Reabilitação de Desaparafusados ninguém queria acreditar no que estava a ver. O herói do cinema mudo barulhento trazia um “olho à Belenenses”, digno dos melhores filmes do John Wayne (João Vinho). Teria sido um atentado dos Aparafusados? Não! Fora o presente matinal do papá por ele ter urinado na cama e encharcado o “colchão de quedas” comprado a um vendedor de material desportivo, depois de ter explicado ao cabeça-de-casal que a oportunidade era única e dava ainda direito a levar, completamente grátis, uma toga pata teses de doutoramento.
-Podes mijar para onde quiseres, menos para o colchão de ginástica onde eu e a tua mãe damos cambalhotas.
Mas o dia do pai do Camarada Choco, candidato à sucessão do Cavaco, tinha começado torto. Quando se preparava para misturar no leite os “croquetes para perros”, comprados no Bazar Chinês, secção de desporto, ouviu um grito da patroa tão alto e estridente, que o obrigou a dar um novo abrunho no filho, que era para não deixar dúvidas quando ao seu papel de chefe daquela típica família da Brandoa.
- Ele não fez nada, - disse a mãe, entrando toda desgrenhada na cozinha e dando um encontrão no cágado, que entrou de cabeça dentro da panela do caldo-verde.
- Fica já dada para a próxima. Mas afinal o que é que tens, ó mulher?
- Ó, ó, gamado, - engasgou-se a dama, apontando para a janela.
Novo sopapo no Choco.
- Ele não fez nada.
- Para a próxima safa-se. Fala decentemente, pareces uma deficiente.
- A “caminheca” não está no sítio. “Abafaram-ta”.
- Não te percebo, é melhor ires limpar o “colchão de quedas”, enquanto eu tomo os flocos para ver se me passam os bicos-de-papagaio.
O choque foi tão violento que o pai do Choco ficou estático durante alguns momentos. Tinham-lhe gamado a “caminheca” carregadinha de ferramentas chinesas. Por sorte o Choco já se tinha ausentado para a Faculdade e estava agora no sótão, o último patamar para a Licenciatura em Tampinhas, nas mãos do Professor Doutor Nélinho que andava com uma crise de Sem-Canudo, dando ordens, umas atrás das outras, à sua Piulia, que estava fresca que nem uma alface, contrariando o estado normal de “mais para lá do que para cá”, e tudo isto devido ao Tino, que a tinha convidado para uma noite de arromba.
O edifício sofrera uma invasão de tampinhas de plástico, que ameaçavam pôr os Clientes na rua por falta de espaço. E para agravar ainda mais o reino da Madrinha, o Fecais, uma espécie de “canudado” mentecapto, assessorado pelo maior monga Aparafusado da Brandoa, o Vóscar, queriam a todo o custo tomar o poder, que uma vez já tinha sido deles, para assim puderem passar mais um cheque avultado a um amigo, como o tinham feito no passado, e todos juntos passarem novamente umas belas férias nas Ilhas do Seixal, e do dinheiro nem rasto, nem responsabilidade, só prescrição. Mas desta vez tinham pela frente o Camarada Choco, o maior, o melhor. Mas o mal não era só na Venteira. Por esse país fora ter um Desaparafusado tinha sido sinal de emprego garantido e propriedade vitalícia. Há muitos anos, muitos longos anos, lá para os lados da Portela, havia um “proprietário” que não largava o tacho, desde que montara a Quinta para Desaparafusados. As leis da República Democrática ficavam à porta do seu castelo, preparou-se muito bem para ficar até morrer, as eleições seguiam os cânones africanos, os mandatos eram ilimitados, e o mito dizia sempre aos votantes que “após ele seria o dilúvio”. O crime era mais que perfeito. Mas havia mais! Como o filho partia tudo em casa, recambiou-o para o “seu” castelo, com direito a todas as mordomias, escondidinho lá no cantinho duma das vivendas, longe dos olhares indiscretos. Enquanto que os filhos dos camponeses só tinham direito a quinze dias de férias, assim diziam as regras, a permanência do seu monga era vitalícia. E ninguém ousava desafiar o rei, porque sua majestade tinha bons contactos no Poder da República, e a República incentivava estes tiranetes, porque eles ofereciam-lhe anualmente a “Festa das Vaidades”, com governantes, televisões e mongas amestrados. Mas voltemos ao desafio Fecais&Vóscar versus Camarada Choco.
- Eu quero um emprego para a minha esposa iletrada, mas ela só aceita ser Doutora Coordenadora Sem Canudo., - gritou o Fecais, que se intitulava “Gestor”, que só podia ser da “mula russa”, mas que um dia assinara um cheque de dez mil contos, para a entrada de uma cave miserável na Brandoa, que estava a ser vendida por um amigo de confiança, perseguído injustamente pela polícia.
- Apoiado e assinado, - concordou o Vóscar que, ao levantar-se para dar mais força ao cúmplice, desequilibrou-se com o peso do tintól, e caiu ao colo do monga Aparafusado que estava ao lado, que oficialmente era pai duma desaparafusada, e que estava mais para lá do que para cá devido ao excesso de carrascão que emborcara ao almoço, mas que mesmo naquele estado que nem a um monga se aceita, ele conservava o direito ao voto, que podia pôr novamente mo poder a dupla de “assinadores de cheques para mim e para os amigos”.
- E vou dizer mais, - insistiu o gestor da mula-russa. – Como homem-do-carcanhol que já deu provas de incompetência, quero partilhar com V. Exas., - e piscava o olho só aos “Mongas não Mongas”, que infelizmente pareciam ser a maioria, - tenho mais um esquema para tirar dinheiro aos ricos para dar aos meus amigos, os “pobres de espírito”.
E como não tinha argumentos que justificassem o golpe, atacou novamente no alvo mais fácil, as Afilhadas da Tarde.
- As duas senhoras tiveram um aumento de lei desmesurado. Proponho tirar-lhes metade do ordenado, pago pelo Ministério segundo as tabelas oficiais, e guardar a massa no cofre onde tenho o dinheiro que ganhei com a “entrada”. Com estas duas metades fica garantido o tacho para a minha mulher.
- Apoiado, - interveio de novo o Vóscar pondo-se de pé e tombando para o outro lado, onde dormia profundamente outro “Monga não Monga”, cuja mulher tinha como incumbência levantar-lhe o braço na altura de votar.
A reunião foi interrompida pelos gritos raivosos da mãe da Zulmira Destravada, uma cliente muito antiga, que se tinha sentido ultrajada quando a Doutora Sem Canudo lhe lembrara que tinha em atraso vários meses de estadia no lar “O Saco da Madrinha”.
- O ministério não específica no subsídio para qual de nós é que vai o carcanhol, - dizia indignada a queixosa. E eu compro o tabaco com que dinheiro? A senhora desenrasque-se, corte no ordenado das suas Afilhadas Da Tarde como diz, e muito bem, o Fecais. Eu vou votar nele porque se ganhar vai distribuir cheques pelo pessoal.
- Apoiado, - gritou o Vóscar, caindo para a frente e arremessando violentamente o papá da Violeta de encontro à fila seguinte, criando um efeito dominó sobre os bebedolas, que só pararam quando já não havia mais votantes naquele sentido.
- Ela em casa diz “mãe dá-me uma carcaça que eu estou cheia de traça”, - jurava a mãe à Dona Gilete.
- Aqui é muda, - contrariava a menina de meia-idade responsável pela tentativa de reabilitação da deficiente.
Eram os chamados “Milagres Caseiros” que faziam com que os Clientes fossem Desaparafusados na Escola e Aparafusados em casa. Estaríamos perante uma fuga ao fisco? Cidadãos que passavam por aquilo que não eram, para que os progenitores tivessem benefícios fiscais, principalmente na compra de automóveis, onde eles não punham os pés, para não sujarem? Ou então a Desaparafusada era a Dona Gilete que não sabia línguas e por isso a moça mantinha-se em greve oral vitalícia?
- Em casa a minha menina pede, em francês, para ir arriar o cagalhão, - informava com certeza absoluta, e intrometendo-se, como era seu hábito, o senhor Baldinho, um Pai Sem Canudo com a mania que estava inscrito na Ordem, revirando os olhos mais rapidamente que o rebento. – Portanto, exijo falar imediatamente com uma Coordenadora ou parto isto tudo…faço queixa à ASAE…telefono para os CTT…faço qualquer coisa ruim. A mim ninguém me diz que a minha destravada mija pelas pernas abaixo e precisa de fraldas, porque mesmo que eu nunca lhe tenha feito controle dos esfíncteres, porque dava muito trabalho e teria de abdicar das cervejolas, ela despeja para onde está virada. Ouviram? É uma ordem.
Num canto de Lisboa, bem longe daquela confusão da Venteira, o Rematador era avaliado na “performance vocal” por uma Doutora cujo canudo era desconhecido, de um Centro que todos diziam ser um “Modelo” e que para isso necessitava de pôr a andar dali para fora, e para bem longe, os mongas que “davam muito trabalho”, ficando somente os candidatos de “sucesso garantido”. Tinham a mesma política que os colégios privados, ou seja, “fora com os destravados xungosos, só queremos os intelectuais”.
- Vou aplicar-lhe um teste para medir a quantidade de palavras que tem na garganta, - explicava aos técnicos que tinham tido o azar de ir à consulta com o Rematador, e cuja especialidade não era a da voz.
Assim não haveria testemunhas do embuste. A aplicação do Protocolo foi tão rápida, que nem a avaliadora percebia as perguntas que fazia, apesar de ser obrigatório que o Desaparafusado desse a resposta correcta, para assim poder pontuar e subir na vida.
- Imagina que este porco cor-de-rosa é branco. Onde é que ele está? – Foi a apoteose final.
O Rematador olhava para o tecto, com o “imagina” dava sinais de convulsão iminente, acerca das cores a cara revelada ser analfabeto, e quanto à posição limitava-se a olhar para o tecto. Quanto à avaliadora, apresentava um cabelo mais sebento que o do avaliado, e nem se dignava a olhar para o monga, tal era o frete com que estava ali. A única satisfação é que este ficava já aviado e só voltaria daqui a um ano, caso não morresse. Quanto a ela escreveria na agenda “missão cumprida”. O teste acabou tão rápido como tinha começado e as conclusões revelaram-se delirantes:
- Um breve olhar pelos gatafunhos que eu fiz nesta folha revelam-me que o monga deverá ter um Q.I. de 4 e está a desenvolver uma gaguez!
Assunto encerrado, regresso à nossa querida casinha. A terapeuta Bélinha, a verdadeira técnica, foi informada do incidente com a sebosa e limitou-se a responder com desprezo:
- Gaguez?! Mais o miúdo ainda nem começou a falar!
Estávamos a anos luz daquele “Centro Modelo” que se antecipava aos acontecimentos. Em frente destas cabeças “iluminadas” qualquer pai que baixasse os calções e mostrasse os tomates arriscava-se a que lhe dissessem que iria ter um filho coxo.

Sunday, January 13, 2008

O Fugitivo

                          Camarada Choco


                                            Aventura 53


O dia do Juízo Final chegava solarengo, toda a Cooperativa estava em efervescência. O “Dia do Faz-de-Conta”, comemorado de Norte a Sul do país, mais conhecido como a “Festa do Natal”, estava programado para arrancar às 14H00 e representava o culminar de mais um ano civil de Reeducação, uma espécie de “Balanço Pedagógico”, para o qual todos tinham sido obrigados a participar. Davam-se os últimos retoques nos mongas, o Vira-Bicos, mais uma vez, olhava para os “números” dos outros como uma perda de tempo, querendo manter-se no top daqueles que conseguiam pôr uma plateia em sono profundo trinta segundos depois de chegar ao palco, e os “voluntariamente obrigados” rezavam para que o dia passasse depressa e que os seus entes queridos não aparecessem para os verem a fazer figuras tristes. O estranho “Espírito de Natal” era o responsável pela paz, podre, que se vivia desde manhã e pelo aparecimento, por geração espontânea, dos representantes do poder local e por outros “artistas” que, afinal, também se preocupavam muito com os Desaparafusados, principalmente no dia de cada mês em que pingavam nas suas contas os eurozitos para os “incluir” na casa dos outros.
Duas horas antes as carrinhas dirigiram-se, carregadinhas de “artistas”, sinal de que cada vez eram mais, tudo graças à tecnologia e aos remédios milagrosos que ousavam contrariar a Natureza, e torná-los, mais ano menos ano, numa classe maioritária e esclavagista, para o Cine-Teatro da Amadora. Os Aparafusados tinham de dar os últimos retoques e não os podiam largar, por isso ia tudo ao molho, e já sem Fé em Deus, para o último ensaio, dos que iam para o palco e dos que ficavam na assistência. Com um pouco de sorte metade adormeceria e acabariam por não chatearem. Afinal de contas, a festa não era para eles, tudo não passava de Aparafusados a fazerem figuras tristes para outros Aparafusados, tendo à mistura um ou outro Desaparafusado domesticado, para fazer género.
- Onde está o Fadista? – Perguntou de repente a Pirosa acordando com violência as colegas, que tinham adormecido com a seca que a Stora lhes dera.
- Eu vi-o hoje de manhã, - respondeu a Dona Piúlia, revelando a eficácia dos Tegretóis que andava a tomar, ao mesmo tempo que punha uma mão sofredora na barriga. – Eu juro que em 2008 vou pôr um ponto final nas “baixas”.
- Cruzei-me com ele ontem a caminho do “Bar Saco Azul”, - informou o Castanheira ao mesmo tempo que tentava ligar ao Primo do Choco, que tinha ido com o Porres aos Psicotécnicos obrigatórios para motoristas destravados.
O Fadista não constava na plateia, não estava a ocupar nenhum dos cagadoros da casa de espectáculos e no balcão só estavam os técnicos camarários com ares de mongas. O mais antigo e resistente Cliente (o nome agora politicamente correcto para mencionar “monga”, que pelo andar da carruagem futuramente talvez fosse substituído por “engenheiro”) , que ameaçava chegar aos 100 anos, a derreter-nos o dinheiro que tão esforçadamente descontávamos para os impostos, e enterrar-nos a todos pelo caminho, não constava na sala e deveria constar porque se esperavam os pais a qualquer momento e não era lá muito correcto informá-los de que se tinha ausentado para parte incerta. A comunidade de Aparafusados entrou toda em Alerta Vermelho, toda (?!), toda não, o irredutível Vira-Bicos estava mais preocupado com o seu fato de Undertaken do que com o fugitivo. Iniciou-se uma busca. Onde é que se teria metido o monga pitosga, que nunca largava o rebanho? Porque é que tinha dado o “grito do Ipiranga” antes da chegada dos papás? Revistou-se a Escola de alto a baixo, não fosse ter sido engolido pela praga de tampinhas de plástico que iam lentamente engolindo o espaço reeducativo. Pelo caminho contaram-se histórias de outros desaparecimentos semelhantes, como daquele que também se ausentara duma festa na margem sul e reaparecera dois dias depois na festa familiar de comemoração do seu desaparecimento e da vinda da respectiva indemnização.
- O show must go on, o Mocho não faz cá falta nenhuma. Vai-se à loja chinesa aqui da rua e há lá muitos iguais a ele, - disse o undertaken ensaiando um Ranjamba.
A Carris já estava parada, a Menina Tatrícia e a Dona Pilca tinham sequestrado um autocarro e só o deixavam continuar a viagem se os funcionários telefonassem para os colegas e inspeccionassem os restantes veículos.
- A esta hora já está nas Docas a tomar um copo, - disse a Tareca, a mais empenhada nas buscas.
- Raio do Mocho, tinha o dia todo de amanhã para desaparecer, - resmungou a Menina Tatrícia, enfiando no bucho uma bolinha de Berlim com creme, mantendo assim os níveis de Glicose necessários para a busca.
- Calma, calma, não quero que isto se transforme na anarquia habitual, - gritou o Nélinho, armado numa de “Sem Canudo”.
- Já largaram o Porres, ele tem um faro apurado, que é para compensar o lapso da perna.
- O quê, chumbaste? – Perguntou o Castanheira quando atendeu a chamada do Primo do Choco.
- Disseram-me que não bato bem da bola, acusaram-me de ter a junta da cabeça queimada, só porque lhes disse que andava a transportar cavalos. Eu tenho lá culpa que o Rodrigues me mije a carrinha todos os dias e que a Papoila me trinque os assentos, mesmo sem dentes. Mas o mais incrível é que o nosso colega Porres passou sem uma nódoa. Até apanhou a nota de “muito sensual” na prova do andar.
- Isso foi por causa de ter tido uma “Escola de Condução de Carroças”. Fez muitas amizades, tratou do exame por telefone.
- Bitó, Bitó, - dizia o fugitivo para o senhor Armando do quiosque.
- “Bitó”?!! Não conheço essa revista. Ó Virgínia, vem aqui para ver se percebes o que é que este chinoca quer. Já está aqui à meia-hora colado às revistas “Gina” e encheu-as de perdigotos.
- Bitó, Bitó, - insistia o Mocho.
- Tem cara de tarado, já lhe viste as lentes, parecem fundos de garrafa.
- Achas que é um pedófilo? – Perguntou a esposa do dono do quiosque, aproximando-se do estranho. – Tenta despistá-lo.
- Bitó, Bitó, - gritou alguém de longe, acenando com a mão.
- Outro?! Vem aí outro chinoca, mas parece ser pior, vê como ele tem um andar esquisito. Fecha a loja, senão eles ainda nos comem.
O encontro do Porres e do Mocho significou o retorno à calma de uma instituição à beira de um ataque de caspa. Fechados no quiosque, o senhor Armando e a dona Virgínia ouviam agora um estranho diálogo, que só podia significar uma coisa, o início da Guerra dos Mundos.
- Bitó, Bitó.
- Bitó, Bitó.
- E haviam logo de estar enterrados aqui, com tantas lixeiras…
- Parques, Armando, parques…
- …com tantos parques que tem a Porcalhota.

Tuesday, January 08, 2008

Dentadas à Desgarrada

                         Camarada Choco

                                                                   Aventura 52

Quando entrei na Escola parecia que estava no Líbano. O caos não era o normal, porque os feridos eram diferentes: ao Senhor Pintor faltava-lhe um pedaço da mão, apesar de ele coxear para “pintar a manta”; a Menina Tatrícia andava à procura duma parte da bochecha, não sendo capaz de pronunciar os “r”, e à Doutora Sem Canudo ainda não tinham feito o levantamento dos danos, mas era o suficiente para accionar o seguro e assim ser contemplada com um décimo quinto mês, mordomia esta vedada ao pessoal menor. O teste-surpresa de Filosofia de uma das Trabalhadoras-Estudantes das “Novas Oportunidades”, tinha desaparecido no meio da confusão e ela agora receava aparecer na próxima aula, porque assim tinha de fazê-lo lá e só sabia preencher o cabeçalho. Fora por isso que o Professor lhes dera o enunciado duas semanas antes, para que o sucesso fosse garantido, e a estatística governamental melhorasse. A causadora desta cena apocalíptica, que ferira três e causara insucesso escolar a outro, tinha sido a Maria, uma utente com nome de tia mas descendente da Marreca de Monsanto, colega de profissão da mãe que, pela milésima vez se tinha passado e levara tudo à frente, mesmo o Senhor Pintor, que era dotado de um corpinho que lhe tinha valido um convite, em 1968, para o “Concurso RTP da Canção”, como costumava contar. A Doutora Sem Canudo já estava com a situação controlada e encontrava-se na Sala dos Presentes de Casamentos, Baptizados e Funerais a interrogar a fera.
- Se tu continuas a Desaparafusar expulso-te da minha propriedade…da Escola e vais directamente para a Quinta dos Super-Desaparafusados, - ameaçou, protegendo-se duma das mãos da Maria, que lhe tentava agarrar o lençol…o vestido.
- Não, eu juro que não dou mais dentadas, - suplicava a arguida.
- Ai não dás não, porque se o fizeres vais directamente para a Universidade.
- Dá-me um comprimido dos brancos, - pediu a Fera Amansada.
- Qual comprimido, qual carapuça, - tu tens de te controlar.
- Eu preciso, eu preciso de um comprimido, - avisava a Desaparafusada.
- Não há comprimidos, acabaram, - explicou a Madrinha.
- Há, há, eu hoje fui com a outra à Farmácia, durante a minha aula de Treino Social, que inclui uma passagem da Técnica pelo Cabeleireiro ou pela Loja Chinesa, e vi-a a comprar desses comprimidos, - dizia, já um pouco alterada a Maria, acusando sub-repticiamente a Doutora Sem Canudo de estar a mentir, comportamento este vedado aos Desaparafusados, mas de uso diário pelos Aparafusados.
Era por estas e por outras que a candidatura do Camarada Choco aos destinos da Nação representava uma ruptura com a velha e gasta “Inclusão”. Os Desaparafusados eram a maioria, e por isso o Poder pertencia-lhes por direito próprio. E que não viessem com a esfarrapada desculpa de “Desaparafusado Não Vota porque é Desaparafusado”, porque então teriam de se explicar qual o conteúdo encefálico daquelas santas alminhas que os partidos dos Aparafusados iam muitas vezes buscar ao norte do país em grandes camionetas, com a promessa de uma ida a Fátima e só paravam em Lisboa para aplaudirem um candidato vencedor ou apoiarem uma causa ambiental, revelando-se todas as vezes uns autênticos “vegetais” quando questionados pela Comunicação Social. E se não queriam misturas, então que o país se regionalizasse de vez para haver um exclusivo para Desaparafusados, uma espécie de Cooperativa Gigante. Seria mais barata e muito mais eficaz do que a Desaparafusada Lei da “Rampinha obrigatória em tudo o que é Prédio”, para que de cem em cem anos lá fosse um cágado visitar a prima do décimo andar. Mas há conta disto tudo parasitavam muitos Aparafusados que a única coisa que sabiam fazer era chular. E era um “Grande Basta” que o Camarada Choco vinha prometer.
A Maria sabia que as palavras da Doutora Sem Canudo eram musica para os seus ouvidos e espectáculo para os outros, pois o vigésimo subsídio dependia da sua presença vitalícia ali, com e sem dentadas, e disso a Madrinha não abdicava porque precisava dele como de pão para a boca. Por isso, quando ela voltou as costas presenteou-a com um manguito dos mais elegantes símbolos pictográficos para a comunicação (S.P.C.), pretendendo com isto dizer-lhe, “a mim ninguém me muda”!
Cada uma à sua maneira anda à procura de um rumo para a vida. Aqui estiveram duas criaturas frente a frente, sendo cada uma o espelho da outra, uma Desaparafusada a tentar aparafusar-se e uma Aparafusada completamente desaparafusada. De cada vez que se cruzam têm de encontrar um ponto de estabilidade, que lhes confira o mínimo de convivência pacífica. Sem este olhar mútuo sobre o que cada um produz, o sistema funciona de modo incompleto, tornando-se demasiado redutor. As crises da Maria são sempre um estímulo à melhoria do desempenho profissional da Doutora Sem Canudo, porque uma Desaparafusada que se preze não cede a nenhuma ideia feita, a nenhuma retórica, que leve a dentadura a ficar saciada. Obedece sim a uma tensão, com princípio, meio e fim. E todos têm de esperar pelo fim, tudo o resto é conversa!
P.S.: Já fazem parte desta Campanha as aventuras anteriores:
Nº - 48 - Buffo-Terapia
Programa de Governo – Parágrafo 1 – Fim da Exploração dos Desaparafusados
Nº - 49 - Um Jantar no Farwest
Programa de Governo – Parágrafo 2 – Pôr ordem nos Aparafusados