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315 estórias

Friday, December 31, 2010

O Dia em que Paço de Arcos parou



Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
Quem se encontrava perto do Bigornas estranhou, os seus olhos estavam diferentes, até os óculos pareciam desbotados, o olhar já não era meticuloso, estava desleixado, enquanto que o dedo médio da mão direita, que apontava com frequência para o teclado do telemóvel, estava murcho. E gaguejava! Mas o primeiro sinal de inquietação dos amigos foi o grandiloquente devaneio teórico, acompanhado de salamaleques, que os informou que o próximo jantar seria no Salão Nobre da Jomarte, extinta há mais de vinte anos, o local onde todos os paçoarcoenses costumavam mudar o óleo…das motas. A ocasião serviria também para apresentar a nova fotocopiadora, a mais avançada da Península Ibérica, que iria fazer descontos para estudantes e militares. E tudo isto foi dito em registo telegráfico. Notaram também uma estranha tendência para a rarefação, enquanto que o seu apurado sentido gráfico tinha desaparecido.
O Bigornas era um paçoarcoense de quem quase tudo se sabia sobre a sua educação, desde a colecção completa da “Gina”, até ao “Curso de Gestão” (114 volumes), passando pelo “Major Alvega”. A Jomarte tinha-o iniciado na leitura e no amor, fora um estabelecimento estonteante, efervescente, cultural e socialmente, conservado pela força poderosa das imagens, e tudo mudou quando um dia uma misteriosa Kika lhe entrou pelo estabelecimento comercial “adentro”, não para tirar a fotografia da praxe para o passe da Linha do Estoril, mas para o engatar no transporte de uma bilha de gás, desde a “Leitaria Vitória”, que vendia meio-gordo à taça, até casa. Tornaram-se companheiros, almas gémeas, amigos e irmãos, até que o gás acabou e a amante se evaporou. A sofisticada loja “Jomarte”, cujo lema era “traz que eu compro”, entranhou-se nas memórias da vila, onde só um museu a poderá agora transformar em arte. Todas queriam ter um tal vizinho à distância de uma braçada, porque os horizontes culturais deste ícone de Paço de Arcos eram cultivados… Casa-Jomarte-Pica.
O anticlimax de timbre dantesco aconteceu quando um som intenso saiu pelas calças e causou uma tensão dramática entre aqueles que compunham a mesa, e o Bigornas gritou com escárnio, em tom de desafio, indo por isso passar a noite ao Hospital da CUF. Durante a madrugada, que deveria ser de repouso, a luz vermelha do gabinete da enfermeira acendeu com estrondo, indicando que o Bigornas estava com alguma necessidade.
- Desculpe estar a incomoda-la, – disse o paciente da Jomarte, usando uma voz sensual, e continuou. – Importa-se de levantar-me o coiso?
- O “coiso”??? – Pensou a mocinha, ao mesmo tempo que sentiu um arrepio por debaixo da bata, que lhe eriçou todos os pêlos adormecidos. – Seria que o paciente de meia-idade, anafado e caixa de óculos, estaria a convida-la para o deboche, a pedir-lhe que lhe tirasse o ranho à cobra?
- Vá lá senhora enfermeira, estou aqui às voltas e não consigo adormecer.
- O “coiso”, senhor Cruz? – Perguntou a senhora, já com a voz um pouco alterada.
- Carregue lá no botão para me subir a cabeceira, “faxfavor”.
Após satisfeita a necessidade nocturna, o Bigornas voltou à carga:
- E agora, já posso fumar um cigarro?
O que se pode dizer de mais seguro sobre o que se passou, é que a feijoada atingira o seu mais alto grau de condimentos, não sendo por isso ousado concluir que um “gigler” da bomba do Bigornas entupira, fazendo lembrar os velhos “rátés” dos peidociclos da Praceta. Mas bastou uma assopradela, bem colocada, no “coiso” do Bigornas, feita por pessoal experiente, para pôr de novo na estrada, sem restrições, este James Dean de Paço de Arcos. A “travadinha” do senhor Bigornas convidou a vila a retrospetivar a sua obra, tentando descobrir o lado poeta e metafísico desta personagem de culto da vila de Paço de Arcos, sem referências espaciotemporais precisas. E a sua Jomarte representou a força telúrica de um grupo, o seu potente folclore, visto como algo exótico e novelesco, que a prendeu a um circulo vicioso, a uma realidade que girou à volta do seu proprietário e que só teve um fim no horizonte: o trespasse compulsivo!

Saturday, December 25, 2010

A Lamparina do Além


Camarada Choco
Aventura 71

Nenhum poder na Venteira, nem acima nem abaixo dele, pode desviar a vontade da Madrinha, quando ela aponta numa direcção. A tradição era para se cumprir, assim obrigava a Dra. Sem Canudo: o ofício com a data do jantar de Natal já tinha sido afixado no vidro dos Serviços Administrativos pela Fininha e as eternas zangas estavam suspensas, até à próxima convulsão da chefe…perdão, até ordens superiores! O Cabo Pilas ficou liso, imóvel e transparente quando soube que a festa tinha sido marcada para o dia vinte e dois, onde sete anos antes o destino o ia levando de encontro ao S. Pedro, tal como o George Clooney, mas fora devolvido com os caramelos espanhóis e tudo. E mais traumatizado ficara quando algum tempo antes o grilo do despertador tocara a anunciar a entrada na casa dos quarenta, precisamente quando estava na intimidade do lar a tentar tirar ranho-à-cobra …perdão…a fazer o TPC de Ráqui, tendo-se recusado de imediato a aceitar mais esta partida do destino. Por isso de cada vez que mandava a mensagem diária à musa inspiradora dos seus TPCs, assinava sempre no fim: “do seu admirador secreto, o 39 mais 1”. Mas esta história não diz respeito directamente a este fenómeno da Venteira, mas indirectamente, porque tem a haver com o seu irmão gémeo clandestino, o Petit Patapon, o único motorista da zona que guia em pé. E isto tudo devido à sua cara-metade, a Maga Patalógica, que resolveu comprar uma peça original para a sessão de “Troca de Prendas”, uma iniciativa da já lendária Dona Pilca, autora dos “Abafo Palhacinhos”, um sucesso comercial do século passado, que levara a Doutora sem canudo a trocar de carro…perdão…a comprar uma nova carrinha para os coitadinhos dos Desaparafusados. Os tempos eram de paz, de tolerância e por isso foi com ternura que a Dona Pilca recebeu o embrulho das mãos do Petit Patapon, carimbou-o e colocou-o no cesto das roscas, à espera da tão desejada meia-noite onde acontecia sempre um fenómeno igual ao da Cinderela.
- Que coisa tão pesada, - refilou, mudando logo para um sorriso Pepsodent, como mandava a ocasião. – Parece ser um sapatão.
- A minha dimensão não é proporcional às surpresas que dou, - exclamou o caga-tacos, irmão gémeo não oficial do mais famoso Cabo da Venteira, piscando o olho.
A prenda saiu a frio à Doutora Yogurte: uma soberba Lamparina!
- Meu Deus, uma “Lamparina dos Desejos”, - gritou com satisfação. – É desta que mando às urtigas a Dra. Sem…
- Não diga isso que hoje é pecado, - avisou a Dona Pilca, ao mesmo tempo que recebia de braços abertos mais um presunto…perdão, presente, desta feita da sua saudosa colega de trabalho, a Dona Piulia, continuando com voz delicodoce. – Estás maravilhosa, a “reforma compulsiva” está a fazer-te muito bem.
- Tenho três desejos, é só esgalhar a Lamparina, - disse a Dra. Yogurte à sua colega Raquete.
Deu um apertão tão forte, que de dentro do objecto saiu um som intenso, cheio de espíritos sem céu e sem terra, com muitos corpos e muitas almas, vindos de uma região povoada de sonhos, devaneios e ecos distantes.
- Epá, a feijoada que comeste estava com muito feijão, Yogurte, - retorquiu, escorreito, o Dr. Fininho, o senhor das verdades inconvenientes, que tinha vindo substituir a psicóloga sueca, vítima do Bicho da Fruta, balanceando com graça a taça de meio-gordo.
- Meu Deus, isto é um aviso dos céus, ontem sonhei que vários dos meus Desaparafusados tinham batido a bota, depois de lhes ter dado uma fatia de um dos semanais “Bolo de Baba” da Terapeuta Zézé, - gritou a Dra. Yogurte atirando a prenda do Petit Patapon para cima do colo da Piúlia, que já estava mais para lá do que para cá, depois de uma dança alucinada com o Padrinho do Choco.
Quando a “reformada compulsiva” tocou na lamparina esta acendeu-se como um isqueiro e o Nélinho aproveitou a chama para acender o dito cujo, acto considerado como de claríssimo pendor romântico pela ex-Senhora dos Bordados e das Pegas, que tirou a língua da boca e pousou-a com cuidado em cima da prenda da Dra. Yogurte, que estava a segurar a cabeça com as mãos. Mas como não podia dançar com a lamparina na mão, o açoriano poisou-a na mesa mais próxima, e ela ali ficou, mesmo quando a festa acabou. Já no exterior o que restava dos convidados foi confrontado pela dona do estabelecimento, que se recusava a ficar com aquela “Lanterna do Além”, acessório muito em voga nos cemitérios.
- Eu fico com a lamparina, pois já tenho cliente para ela, - disse o Senhor Pintor, pondo fim ao Jantar de Natal da Doutora Sem Canudo

Sunday, December 05, 2010

O Comendador Rendas


Camarada Choco

Aventura 70

A Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois nem queria acreditar no que via quando entrou na sua sala: tinha pendurado na parede o retrato de um velho que parecia estar a convida-la para a luxúria. E a causa da morte da fotografia estava no canto superior esquerdo sob a forma de uma marca de pneus.
- Quem é que ousou pôr aqui este velho com ar duvidoso? – Perguntou a Sobrinha-da-Tarde- Número-Dois, sentindo um vento a puxa-la, e tendo uma visão imperfeita que lhe revelou um segredo de algo que poderia acontecer. – Velho tarado.
Resolveu investigar.
- “Comendador Rendas” - Leu em voz alta a legenda escrita à mão – e continuou. - Letra feminina…hummm.
- Letra feminina??? – Entrou de rompante o Nélinho com um arrebatamento eléctrico, revirando os olhos e engolindo as smarties que a irmã do Choco se preparava para comer. – Tropecei neste senhor hoje de manhã e resolvi trazer esta obra de arte para a sala mais indicada. É assim que a menina me paga os distúrbios que causo com frequência no seu espaço?
E para fazer jus à fama da sala que já era tão famosa como o Entroncamento, devido aos fenómenos para-normais, o novo inquilino também revirou os olhos.
- Já sei porque é que o Nélinho não pendurou o retrato na sua sala, - exclamou a Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois.
- Então diga lá, – gritou o açoriano, ao mesmo tempo que apertava o gasganete à colega Minhota, tornando a revirar os olhos e a uivar, ao mesmo tempo que arrastou a bacia pelo chão, deixando rasto como o caracol.
- Porque passavam a ser dois a revirar os olhos!
O mistério estava lançado, seria o Nélinho a encarnação do Comendador Rendas? O acaso nunca poderia ter reunido na mesma rua dois artistas destes, era demais. Com tantos Aparafusados e Desaparafusados a cruzarem a rua do Gameiro, porque é que o velho tarado teria ido logo ter com um autóctone de uma ilha açoriana, perdida algures no meio do Atlântico? Não, só poderia ter sido por uma questão de afinidades, o Nélinho e o Comendador Rendas tinham sido atirados um ao encontro do outro, e quando o primeiro viu um rasto de pneus na testa do antepassado, apercebeu-se de que era um aviso de que se não o levasse para dentro poderia acontecer-lhe o mesmo, ou seja, os céus darem ordem ao Cabo Pilas para levar o carro para a Escola, e como ele só conseguia ver a estrada se guiasse em pé, era sempre um risco acrescido para os peões daquela zona, que o dissesse a Dona Pilca, a primeira vítima de um atropelamento do micro-machine da Venteira. Quando o Nélinho olhou para o retrato do Comendador Rendas ficou com a cabeça intermitente, cheia de intervalos e metamorfoses, que o colocaram num estado de expectativa, suspenso e inconclusivo. Teve uma visão do futuro e viu-se reduzido a algo espalmado na estrada, com um charuto fumegante a sair de um buraco indefinido. Acordou do transe, agarrou na foto e correu para a Escola de Desaparafusados da Venteira. Mas ficarem os dois na mesma sala não era aconselhável para a saúde mental da Brazuca. Haveria com toda a certeza uma corrida diária às smarties dos Desaparafusados, e isso não seria bom para as finanças da escola.
- Tarado, – gritou a Minhota ao aperceber-se que o Comendador Rendas também lhe estava a fazer gestos obscenos.
- Já não tenho idade para isto, – queixou-se a Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois, ao mesmo tempo que era encostada à parede pela Cataró, agora em plena travadinha com os punhos cerrados em direcção à Obelix e a bexiga a largar a gasosa toda para cima das almofadinhas-para-coquilhas, a nova colecção de Natal da célebre Sala das Prendas e dos Fetiches.
O retrato a sepsia, devido às incontáveis mijas dos gatos da região, de um velho desconhecido, pendurado pelo Nélinho na sala da Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois estava a causar alucinações visuais aos elementos femininos da “Escola para Desaparafusados & Afins da Venteira” e a provocar rotações oculares incontroláveis no rapaz açoriano. Preparava-se uma manifestação à porta da sala, a Dona Gilette erguia um cartaz a apelar ao regresso dos “Bons Costumes” e ameaçava apresentar queixa, por escrito, à Sobrinha-da-Tarde-Número-Um. Mas quando se aproximou do retrato sentiu também ela um vento a puxa-la, teve uma visão imperfeita que lhe revelou um segredo de algo que aconteceria, suspenso na geografia intemporal das convulsões. Piscou o olho ao Rendas!
- Saiam daqui, – gritou desesperada a Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois. – Eu não faço mal a ninguém, estou aqui sossegadinha mais a Transmontana e só me aparecem é malucos.
O mal foi cortado pela raiz, o Comendador Rendas foi directo para o contentor, e o Nélinho suspenso três dias para casa.

Thursday, November 25, 2010

A Rena


Camarada Choco
Aventura 69
O Samecas estava inconsolável porque a sua noiva, a Beta Cigana, acabara com a relação de quase um século, trocando-o pelo Tóni, o filho do novo chefe máximo da Escola, que sucedera ao hilariante Torres. E tudo por causa de uma inofensiva carícia mal calculada, que se transformara num abrunho estilo Rocky que pôs a cigana a ouvir frangos a assar durante uma semana. O ponta de lança da equipa líder do Campeonato Nacional de Futebol para Destravados, os célebres e consagrados “Tubarões do Seixo”, no qual o “i” caía sempre que regressavam ao clube, estava a ser traído pela visão, naturalmente com falhas, mas que agora se aproximava da red line porque já não conseguia distinguir um elefante duma mosca. Mas ele sabia que podia contar com o apoio incondicional do mister, o Stor Pobre, que o convocava sempre que havia jogo, mesmo com o risco de deixar lá metade da dentadura, devido aos problemas de navegação que o faziam sair sempre do campo em alta velocidade e parar só quando algum objecto mais traiçoeiro se interpusesse no seu caminho. E todos estavam lembrados de que o Samecas já tinha um dia, na altura do pico de forma e de visão, deixado metade dum Incisivo no Colégio Vasco da Gama. E o Stor Pobre só era mister dele por afinidade, porque oficialmente este Tubarão tinha mudado de mãos e estava agora dependente da autorização da Rakette, uma stora com os carretos todos no lugar que, para o proteger, o queria inscrever na Federação Nacional de Matrecos. O argumento do Stor Pobre era infalível, enquanto o Mantorras jogasse no Benfica, o Samecas continuava nos “Tubarões do Seixo”. Ou saíam os dois ou não saía ninguém. E assim os “Tubarões do Seixo” podiam ainda contar com o ponta de lança toupeira durante o aquecimento e o intervalo…apesar dele sempre pensar estar no jogo. E os treinos tornaram-se rigorosos: de Técnico e de Físico, que já não precisava passara para…psicológico! E tudo isto veio mesmo a calhar nesta fase existencial do Samecas sem a Beta Cigana.
- Tens de aguentar todos os insultos, - gritava-lhe diariamente o mister no seu quotidiano encontro matinal, - meu pa…cornudo…gay!
O Samecas tremia, mas nem pestanejava.
- Quero-te preparar para aguentares toda a pressão do adversário durante um jogo, – berrou o Stor Pobre, enchendo o atleta de baba, - percebeste meu panas…com cara de cara… e maluco?
Mas havia quem não concordasse com estes métodos pedagógicos:
- Lembrar ao miúdo a sua condição de rena, não está nos manuais das “Boas Práticas com Grogues”, – avisou a Dra. Yogurte.
- Mas já que o Samecas está em estado de rena, aproveitamos a época natalícia que se aproxima e fazemos com que ele tire proveito da armação que já risca o tecto da sala do seu reeducador, o Senhor Pintor. O desporto de alta competição cura tudo, até Desaparafusados, - exclamou o Stor Pobre mostrando os guizos que ia oferecer ao Samecas para pôr nas hastes.
- Os guizos ainda vão traumatiza-lo mais, - retorquiu a Dra. do primeiro andar.
- Estes sininhos vão torná-lo famoso, pois quando os ouvirem todos gritarão: “Vem aí a rena da Venteira
O Desaparafusado estava diferente, o treino intensivo tornara-o outro homem, já não havia abrunhos para ninguém.
- A Beta Cigana, eu quero a Beta Cigana, - mas tinha por vezes recaídas.
Para o mister não havia segredos e a solução do problema chegou num abrir e fechar de olhos:
- A partir de agora o teu nome oficial será…
- Samecas Cristiano Ronaldo, - antecipou-se o jogador.
- Cristiano?? Mas que nome tão foleiro, – gritou o Stor Pobre colando-se à cara do atleta. – Tens de ter um nome artístico inesquecível que te faça cair ao colo, não uma cigana que só funciona pela metade, mas sim uma sueca monga que te mostre onde fica o teu clímax.
- Mas Cristiano Ronaldo é um nome bonito, - insistiu o Samecas.
- Passas a ser o Samuel Atum, o ponta-de-lança mais famoso dos Tubarões do Sexo, capaz de furar uma bola de futebol à dentada, caso esteja com disposição para tal, percebeste ó meu panas…da Venteira (sinal de que o treino psicológico era uma constante).
O mister explicou então que já tinha encomendado ao Senhor Pintor uma carrada de posters, onde a figura esbelta da toupeira da Porcalhota aparecia em posição de remate, mas em vez de uma bola da Fifa, preparava-se para chutar num fabuloso croquete, feito em parceria pela Nina e pela Duna, as holliwdescas cadelas de reabilitação, estando na baliza o seu eterno rival Tóni, o ladrão da Beta Cigana.

Thursday, October 28, 2010

O Bê à Bá do Filete


Camarada Choco 
Aventura 68
 
Além de ter nascido um Desaparafusado bronzeado, o Filete herdou do pai Filipe o “Fil” e da mãe Arlete o “ete”. Depressa a Escola de Aparafusados classificou o novo aluno como “Indigente”e enviou-o via “Correio Azul”, com aviso de recepção, não fosse o carteiro enganar-se e devolve-lo de novo às “Doutoras”. O novo aluno foi recebido com entusiasmo pelos semelhantes, também eles bronzeados, e sujeito de imediato a um conjunto de “praxes académicas tribais”, que também serviram aos técnicos para uma recolha de informações mais aprofundada. E houve um dado que se destacou em relação aos outros: de cada vez que o Filete levava com algum estímulo (palmada, bolada, pedrada, etc.) na cabeça, ouvia-se um eco! A Terapeuta da Fala, a Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo, uma mocinha do Entroncamento habituada a todo o tipo de fenómenos, nem queria acreditar no que ouvia:
- É um barulho a espaço vazio, o Filete parece ter uma cabeça oca, – disse, com um ar desanimado.
- O Filete é um “Calhau com Olhos”, - retorquiu o Stor Pobre, especialista em Pinos e Cambalhotas, com muitos anos de Desaparafusados no lombo, e também ele já com folgas nos carretos. – A técnica mais apropriada, caso tu pretendas tentar pôr o aluno a ler, passa pelo uso intensivo da “Banheira do Porres”.
- “Banheira do Porres”?
- É exclusiva aqui desta escola, e muito mais eficaz que a “Sala de Snozelan”, – explicou o Stor Pobre fazendo o exame final ao Filete, um soberbo “Toque Pedagógico” que teve como resposta “cinco ecos e um baralhar de olhos sem Jackpot” (parágrafo 2, ponto C, alínea A, da Escala Pedagógica Universal de Granitos e Afins - EPUGA).
- Estranho, - disse a Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo. – Numa me ensinaram isso na Faculdade.
- Nós estamos sempre à frente dos “Doutores” pelo menos vinte anos, – atirou de rajada o Stor Pobre, empunhando o panfleto de apresentação da famosa “Escola para Desaparafusados da Venteira”, com o Porres, actual Presidente Honorário, ainda de fraldas, e a brincar ao Lego com o Choco, ao mesmo tempo que reconfirmava tudo com um novo “Toque Pedagógico”, cujo eco acordou o colega do Filete de nome Paulo Bento.
A Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo não se convenceu dos novos métodos Pedodesaparafusados e recorreu aos clássicos. Agarrou numa bola azul de plástico e perguntou ao Filete:
- Querido aluno, que cor é esta?
O “Indigente” (classificação do Ministério), “Calhau com Olhos” (classificação EPUGA), olhou demoradamente para o esférico, rodou os glóbulos oculares dezenas de vezes, coçou a cabeça e por fim abriu a boca…mas não saiu nada.
- Que cor é esta, Filete? – Perguntou de novo a Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo, aumentando o volume da voz e colando a bola azul entre os olhos do “Indigente” (classificação do Ministério) ou “Calhau com Olhos” (classificação EPUGA).
O comportamento recorrente do Filete não alterou nem uma vírgula, encarou demoradamente o esférico, como um boi para um palácio, rodou os olhos, arranhou o coco, abriu a boca e respondeu com um ar triunfante:
- Verde!
- O que é que se passa aqui? – Perguntou o Cabo Pilas aparecendo por detrás de uns cabides.
- Ainda bem que estás aqui, Chiquinho, - disse a Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo, tocando-lhe no ombro. – Podes-me dar a tua opinião acerca das capacidades deste aluno?
Por momentos fez-se um silêncio ensurdecedor. O Cabo Pilas olhava para a mão da pequena com um ar ameaçador, e também ele rodou os olhos e coçou, não o coco, mas o baixo-ventre. Por fim falou:
- Desde quando é que uma Terapeuta da Fala estagiária se dirige nesse tom a um Pedopedagogo do meu tamanho. “Chiquinho”?!!
A Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo tirou a mão tão depressa, que todos pensaram que se tinha queimado. Se desejava um parecer do Dr. Cabo Pilas teria de se dirigir à secretaria e pedir por escrito. Optou por acompanhar o Stor Pobre na “Banheira do Porres”. Quando entrou no espaço pedagógico o nevoeiro era tanto que nem se apercebeu que o colega do Filete, o Buda, acabara de fazer uma portentosa mija que acertara em cheio nas calças de ganga da Mosca Morta, a mais antiga funcionária da Escola de Desaparafusados. A boiar estavam inúmeras bolas de várias cores, o Filete sentado na rampa, o Coxo Mais Rápido da Brandoa no fundo à caça de um dinossauro e um bacalhau de molho dentro de uma bóia chinesa, rodeado de chouriços. Como técnica apurada começou de novo a intervenção, mostrando ao Filete uma bola vermelha:
- Que cor é esta?
O mesmo do mesmo: rodou os olhos, arranhou o coco, abriu a boca e respondeu com um ar triunfante:
- Azul!
E assim continuou para desespero da Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo, que julgava que a água a entrar pelos ouvidos do Filete iria transformar o caroço de azeitona, que fazia a vez de Cérebro, numa abóbora do Entroncamento, permitindo ao “Indigente” (classificação do Ministério), “Calhau com Olhos” (classificação EPUGA) debitar todas as cores do Arco-Íris e mais algumas. Quando o Stor Pobre se apercebeu do desespero da colega, aproximou-se do Filete e teve uma humilde conversa junto à sua orelha. Passados alguns segundos o sucesso educativo concretizou-se:
- VERMELHA!



Wednesday, October 20, 2010

Cabos à Solta


Comandante Guélas
Série Paço de Arcos



Quando a pátria os chamou gritaram “presunto”…perdão…”presente”, e cada um se apresentou na sua unidade: o senhor Carlos Ponta recebeu a boina preta da Cavalaria e o senhor Bigornas uma boina castanha dos “caga-e-tosse”, e porque tinham sido muito aplicados no Liceu de Oeiras foram ambos graduados em soberbos cabos. Por esta altura o Conan Vargas era boina verde, e passava os dias a tentar impressionar todas as fêmeas da Costa do Estoril contando as suas arriscadas missões, que na verdade estavam reduzidas a descascar batatas, às rodelas, em Tancos, uma vez que tinha ido para a especialidade de pára-cozinheiro; noutro canto do país o Zé Fotógrafo ostentava uma invejosa boina vermelha e, na praceta, para impressionar a Mula do Ártico, gritava bem alto “MAMA SUMAE”de cada vez que tinha sede, pois para ele o lema queria dizer “Mamã dá-me um sumo”. Mas também este estava ligado à gastronomia, mais propriamente às batatas em palito, na Amadora.
O Cabo Carlos Ponta foi colocado aos comandos da gloriosa PE, mais propriamente no Esquadrão Vermelho, de código “Tigre”. Este indomável paçoarcoense era o felino nº 28, senhor todo poderoso de um jipe Land Rover com motorista e dois ordenanças, uns Cro-Magnon vindos directamente de Tábua. E a juntar a tudo isto, e por uma questão de prestígio, o “Tigre 28” fazia sempre questão de montar em pêlo todas as éguas que lhe aparecessem pelo caminho, não fosse ele um grande senhor da Cavalaria paçoarcoense. E foi numa das incursões pelas zonas mais nobres de Lisboa, o Intendente, ao som de uma sonora “ópera-bufa”, porque o rádio a bordo não debitava música, que se deu o encontro de dois titãs de Paço de Arcos.
- Alto e pára o baile, vamos recolher um VIP.
No passeio estava o cabo Bigornas.
- Vai lá para trás, dá lugar ao teu superior hierárquico, - ordenou o “Tigre 28” ao ordenança que ia ao seu lado.
- Mas, meu comandante Pontas, ele não passa de um “caga-e-tosse”, enquanto nós somos uns boinas pretas, - refilou o soldado.
- “Caladinhos que o pessoal de Paço de Arcos está acima de todas as raças, um soldado cassanho de Paço de Arcos vale mais do que qualquer um boina preta ou mesmo do que um general de Cavalaria” (sic).
Os tempos não eram para brincadeiras, a noite anterior tinha sido longa, o PRP-BR da ex-terrorista Carmo e agora amiga dos gordos, andava à solta, uns dias antes a embaixada da Turquia fora visitada por uns arrebentas, e os “Tigres” tinham dado de caras, lá para os lados de Camarate, com um paiol abandonado, G-3 encostadas à parede, e as portas de acesso ao material escancaradas, talvez para sair a humidade. E quando os valentes guardas apareceram, em tronco nu, com franguinhos e cervejolas debaixo dos braços, adquiridos na zona fina da Musgueira, explicaram ao superior hierárquico Cabo Carlos Ponta que devido a estarem famintos, e para evitarem baixar o nível de atenção na defesa intransigente da pátria amada, tinham decidido em RGS (Reunião Geral de Soldados) adquirir umas buchas.
Assim,o glorioso Cabo Bigornas dos “caga-e-tosse” entrou para o banco da frente, sentou-se junto do seu colega Cabo Carlos Ponta de Cavalaria e, com motorista ao volante e seguranças atrás, passearam alegremente, sentindo com prazer o cheiro a maresia do local.

Friday, October 15, 2010

Fangiovargas



Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

 
Há certas histórias que devem repetidas, repisadas, analisadas com mais pormenor, para assim compreendermos as motivações psicológicas dos elementos deste original gang caucasiano de Paço de Arcos. E uma delas passou-se com um monstro da cultura paçoarcoense, o hilariante Conan Vargas. Quando o ex-cozinheiro pára-comando recebeu a cartolina vermelha com o símbolo da DGV nem queria acreditar que era verdade.
- Já posso guiar em tudo o que mexe, desde o triciclo do João da Fruta até ao Fórmula 1 do Niki Lauda ….incluindo as mulheres deles - disse, tirando o documento oficial da República de Portugal de dentro do livro da tabuada dos dois, e mostrando ao seu colega de carteira, o Ánhuca, que estava mais entretido a esmagar os piolhos que trouxera da capoeira do Manelinho do Estrume, depois de uma noite bem passada com uma das ovelhas.
Estava decidido, à noite iria impressionar as queques lá para os lados do Santini, não com o velho Ford Escort LA-91-40, mas sim com muito mais estilo, o novinho Renault 16 BU-13-78, que a mãe acabara de adquirir. E a desculpa foi fácil, tinha um exame de Química Iónica à noite no Liceu de S. João do Estoril e esquecera-se de pôr gasolina no seu bólide, e o comboio estava parado porque o primo surdo-mudo do João da Quinta tinha decidido atravessar a linha no momento em que passava o rápido vindo de Lisboa e olhado para o lado do pára em todas de Cascais, acabando dividido em dois, o surdo para um lado e o mudo para o outro. Mas antes passou pelo Picadili e convidou os amigos mais parecidos com estrangeiros, estilo suecos, ou seja, o Bigornas, o Bajoulo e o Escoto. Assim, as queques olhariam logo para o Renault e, parafraseando o irmão com cara de papagaio do Bajoulo, “ia ser phoder à cagão”! A entrada na praceta foi feita em estilo “todo boneco”, com o braço de fora, cigarrito na ponta da boca e o agora saudoso cabelo ao vento, tudo isto acompanhado com um chiar de pneus estilo Charles Bronson. O Conan Vargas já quisera ser pastor, depois bombeiro, tropa especial, mas nesta altura estava bastante baralhado. O Bigornas assistiu a toda a cena, porque insistia em tomar o café na esplanada, onde uns dias antes fora detido pelo Chefe Bigodes, depois de se ter recusado a fugir para dentro do café após o Focas ter gritado “ó chui” quando o carro patrulha passou. O Bajoulo nem se mexeu, porque mesmo que quisesse o porte atlético já não lhe permitia grandes aventuras. O Escoto, o adolescente mais parecido com uma girafa, gritou “temos Fangio”, não se apercebendo que o que dissera entrara como uma seta no Super-Ego do Conan Vargas, mesmo que a resposta tenha sido uma aceleração em seco, cujo fumo acertou em cheio na cara do Trovão, que ia a passar. Antes de descolar, porque era de um voo que se tratava, passou a mão pela cabeça para verificar se ainda tinha cabelo e fez um checklist das curvas da vila que iria fazer no dia seguinte: curva do Manel da Leitaria, Curva do Trambolho que seria mais tarde batizada Curva da Rosa Cambalhota, em memória do Pilas, do Vélinho e do Serapito, que nunca mais seriam os mesmos.  Sentiu então um impulso, um ímpeto, um incitamento, e o Renault16 de cor branca, BU–13-78, saiu a guinchar. O Bigornas, que ia no banco de trás, ouviu o barulho da mioleira do condutor a ferver, estilo fumarola e teve um pressentimento terrível: no dia seguinte poderia não haver a fila interminável à porta da Jomarte. E ainda por cima tinha uma surpresa para os clientes: não um novo livro de quadradinhos que demorava sempre meio-dia a ler, mas sim um Curso Completo de Gestão. Quem fosse para a fila no primeiro dia do mês seria atendido no dia 31 às 14H00! Antes de rumar definitivamente, e pela última vez, a Cascais, o Renault 16 de cor branca, BU-13-78, guiado pelo Fangiovargas, cruzou-se com o Opel 1200 Caravan do Fangiocoelho, Menino Élinho para os amigos, que o tinha gamado pela centésima vez, e atingira agora os 120 junto ao Manuel da Leitaria. Quando entrou na marginal, na cabeça de Conan Vargas já rodava outro filme, imaginava-se no circuito do Mónaco ao volante de um Mc Laren, e quando ultrapassou o senhor Manuel da Fruta, que ia calmamente para casa no seu triciclo com caixa à frente, viu o Emerson Fitipaldi no seu Lótus, a seguir apareceu o Velinho e o Mini Clubman FF-62-88, que tinha ido às boxes para beber um sumo de cevada , como habitualmente, e que fazia a vez do Niki Lauda e do seu Ferrari. Na recta da praia de Carcavelos, já com fumo a sair das orelhas, ultrapassou o Serapito e o seu Opel Kadett EU-13-12, e avistou o Peugeot 304 paçoarcoense BM–18-35 a fazer a vez do James Hunt, mas ultrapassar o Pilas era uma tarefa quase impossível, apesar de ir só a 160 Km/h. O Renault 16 de cor branca, Bu-13-78, guiado pelo ex pára-cozinheiro de nome Conan Vargas, agora travestido de Fangiovargas, entrou a ganir e a rodopiar na curva do sanatório, completamente desequilibrado devido ao facto do Bigornas e a sua volumosa cabeça, que lhe dava o nome, estarem colados a um extremo do banco traseiro. Quando a lateral do motor bateu no poste, com um valor de 30 contos, o Escoto amolgou o tecto com a cabeça e dos olhos do Zé do Fotógrafo saíram vários flash multicolores, enquanto que o Conan Vargas gritava a tabuada dos 3 (3x1=4, 3x2=8, 3x3=15…), acompanhada de ratés de origem indeterminada. Mais uma volta e nova porrada, desta vez no muro e com o poste no encalço do carro. Aqui o Bigornas deixou de ter dúvidas e preparou-se para o mergulho final no mar, agarrando com sofreguidão a pesada tola, que o iria arrastar, com toda a certeza, para o fundo escuro do oceano, tal como uma poita. Seria o fim da Jomarte e de tudo o que ela significava para a Praceta. Mas contra todas as leis da física, o Renault 16 de cor branca e matrícula BU-13-78 ficou colado à parede, perpendicular, e apanhou com o pesado lampião na zona do motor. Nem um arranhão sofreram estes garbosos paçoarcoenses, que acabaram a noite a chupar no Santini!




Monday, October 11, 2010

Fangiocoelho



Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
O Menino Élinho nasceu com um sonho entranhado, em que se via sentado ao volante dum Porsche Carrera, tendo acrescentado mais tarde à lista um soberbo Opel Manta 1900. Assim, acelerava em tudo onde se metia, desde o carro a pedais até às máquinas de flippers do Manuel da Leitaria, tendo gripado várias. Muitas foram as vezes em que o que o Professor Coelho deu de caras, não com a tabuada, mas sim com desenhos de Ferraris. O seu corredor favorito era da terra e dava pelo nome de Pinguim. O irmão do Pingalim corria em duas rodas, “no autódromo do Estoril, e por convite” explicava, e para não deixar dúvidas mostrava sempre as cartas que lhe eram enviadas, com selos nacionais e remetentes estrangeiros, pormenores que só um chato como o Carlos Ponta ousava denunciar. Assim, para o Menino Élinho o Pinguim era um modelo, estilo Elvis Presley, que era impossível igualar, a não ser que a modalidade competitiva fosse outra: as 4 rodas! Já se via na Feira Popular em parceria com o Pinguim numa dupla imbatível e famosa, um numa mota e outro num Ferrari, dentro do Poço da Morte, ambos vestidos com fatos de leopardo e máscaras do Zorro. E foi numa destas ocasiões que as aulas da Escola do Coelhinho tiveram de ser interrompidas: o Menino Élinho fizera um desenho, em vez da tabuada dos 3, de dois artistas vestidos de tigre à porta do Café do Papagaio! O Professor Coelho fora obrigado a ausentar-se do estabelecimento de ensino para ir falar com o padre, alegando que o jovem paçoarcoense deveria estar possuído pelo demo, pois o desenho, além de pornográfico, atentava contra a moral e os bons costumes da vila, pois mostrava dois meninos muito amigos com vestidos femininos. Mas, contra tudo o que era de esperar, o clérigo mostrou um interesse guloso em conhecer os jovens, e o Professor Coelho fugiu assustado para a toca, que já estava num rebuliço tão grande, que o tecto da Papelaria Dani ameaçava ruir a qualquer momento. O tempo passou e o Menino Élinho cresceu, muito à conta das batatas fritas da Dona Rosa, vendidas em saquinhos compridos de papel encerado, produzidas na fábrica “Pim Pam Pum” na Avenida, e das “Bolas de Berlim” transaccionadas pelo Senhor José na praia, e guardadas com carinho na sua caixinha branca de duas gavetas. Mas o sonho nunca esmoreceu, e já crescido andava sempre a acelerar no Opel 1204 Caravan do pai, pensando estar no seu eterno Porsche Carrera, muitas vezes substituído por um Opel Manta 1900, conforme a alucinação do momento. Mas para ter acesso ao Opel Caravan teve de fazer uma cópia das chaves e ia busca-lo sempre à noite quando os pais já estavam recolhidos e convencidos de que o seu Menino Élinho tinha obedecido ao “Vamos Dormir” da RTP. Nem tudo foram favas contadas, pois muitas foram as ocasiões em que ao regressar a casa o Fangiocoelho deu de caras com o lugar ocupado por outro carro. Nestas ocasiões a manhã do pai nunca era pacífica, pois o senhor jurava que tinha estacionado o carro ali e ele estava acolá. “Estás a fazer confusão”, explicava de imediato o filhote, todo preocupado. O ponto alto desta preciosa carreira atingiu-o numa certa noite no Largo do Jardim, às 4 horas da manhã, na companhia do Maia e da Tina. Andava a mostrar aos amigos o seu próprio bólide, quando o casal de pombinhos que o acompanhava lhe pediu para os deixar dar uma volta sozinhos, um possível ensaio para a vida futura de casados. O menino Élinho saiu do carro, puxou de um cigarrito, e foi logo encadeado pela figura mítica do neto do Bruce Lee, o Kovac’ Olhões, trazendo-lhe à memória a visita de cortesia que anos antes fizera com guerreiros amigos à barraca dos gelados ali tão perto. Nem ouviu o chiar dos pneus, sinal de que o Maia tinha colado o acelerador ao chão do bólide e a sua Tina às costas do banco. Quando o carro passou por ele a deslocação do ar apagou-lhe o cigarro, mas o Kovac’ Olhões era mais forte do que o vento, e por isso o Menino Élinho nem se apercebeu dos pedidos de socorro do seu querido pópó. Mas um barulho infernal trouxe-o de novo à realidade. Foi quando o Maia se despistou e entrou pelos caixotes de lixo que estavam em frente da Sede do Real Clube de Paço de Arcos.
- Até a traseira do carro empinou, - explicou a Tina, ao mesmo tempo que tentava endireitar o vinco do pára-choques frontal.

Sunday, October 10, 2010

O Submarino III


O Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
 
A Regata da Açorda

 
O quotidiano da tripulação do “Submarino” não é assim tão normal como pensamos. O comandante da embarcação ficara toda a noite a preparar a estratégia para a regata, empunhando um candelabro com velas, de olhos fixos no retrato do Patrão Lopes, a porta de entrada do seu espírito sonhador. Boacara sempre tivera uma paixão bela, simples e frágil por aquele lobo-do-mar com estátua em Paço de Arcos. Estava agora num trapézio sem rede, assinava a sangue e na primeira pessoa, porque pretendia uma sublime transformação dos seus homens, exigindo-lhes agora o quarto lugar, a contar de cima, numa regata de vinte e sete, em vez do habitual primeiro, a contar da cave. Naquela noite viu universos inteiros de regatas, e foi com convicção que na manhã seguinte se dirigiu à tripulação alinhada no convés, comunicando-lhes mais por gestos do que por palavras. Discursou com uma fúria tão feroz, que nem reparou nas grades de sumo de cevada que entravam clandestinamente no saco do soro do velho Saul, directamente para o beliche do Mac Macléu Ferreira , uma espécie de Poppey, que comia lulas recheadas em vez de espinafres. No momento da largada a voz subiu-lhe com insistência, persistência e resistência, chegando a ameaçar encerrar a tripulação no convés com as cuecas do Bajoulo, caso não trouxessem para a Marina de Oeiras um certificado a atestar o quarto lugar, não tendo no entanto reparado no riso fininho da tripulação, e no ar embasbacado do velho Saul, que tinha acabado de engolir uma carica, arrancada apressadamente com a dentadura.
- Hoje as nossa preferências não são o habitual convívio no convés, mas sim o quarto lugar, - disse, ao mesmo tempo que alguém dava início ao esquentamento duma açorda que entrara clandestinamente no Submarino.
- Comandante Boacara, hoje trouxe uma surpresa, uma refeição energética que não vai deixar a tripulação adormecer, quebrando-se assim a tradição destes lobos-do-mar.
- As minis estão proibidas a bordo, e tudo com elas relacionado, como “Galinha com Cerveja”, “Pato Bock”, “Cadelinhas embebidas em Tinto”, “Gelado de Rum”, alimentos anti-regata. – Gritou o proprietário do Submarino, espreitando com raiva para as mochilas dos amigos.
- Calma patrão, isto é uma simples açorda feita com pão, - explicou o Velho Saul, ao mesmo tempo que tomava uma pílula energética.
- E o pão foi embebido em quê?
- Água, só água!
- E açorda é condimentada com quê?
- Piripiri.
- Piripiri, um afrodisíaco? Nem pensar. Para mastro basta-me o do barco, não preciso de canas da índia, - gritou, colando a boca aberta na testa do Velho Saul, deixando sair uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do seu interior obscuro.
O grito apanhou o marujo Mac Macléu Ferreira a meio do sono, na precisa altura em que enchia com a boca uma “Sereia Acompanhante”, da marca “Use e Abuse”, tendo-se precipitado do beliche para anões a ele destinado, onde dormia com tudo dobrado, batendo com estrondo no fundo do Submarino, que fez uma volta de 180º. Foi por isso que o Chefe Máximo do Submarino achou estranho cortar a meta três horas antes e em primeiro lugar, com a tripulação a festejar o feito heróico, só comparável à chegada do Pedro Álvares Cabral ao Brazil, também ele vítima de uma açorda traiçoeira. Mas do Submarino espera-se tudo, e a atracagem foi diferente de todas as outras. Mac Macléu Ferreira foi incumbido de saltar para a doca com um cabo na mão, mal a proa do navio passa-se à vertical da primeira madeira, evitando assim que o mesmo fosse marrar mais à frente. Ao nosso herói das lulas recheadas faltava um pormenor: as lunetas com 5 dioptrias cada e uma barriga atestada de açorda e minis clandestinas. Saltou antes, muito antes, logo à entrada da Marina de Oeiras, que estava atestada de tios e de tias, e ficou preso na corda, pendurado com a cabeça a roçar na água e uma catrefada de Robalos no seu encalço.


Monday, September 27, 2010

Campeonato de Futebol de 5


 Comandante Guélas
Série Paço de Arcos


Para o Milhas a responsabilidade era enorme: o “sogro” tinha financiado a inscrição, após o seu pedido, no Torneio de Futebol de 5 do Pimenta, que iria decorrer no pavilhão do Clube Desportivo de Paço de Arcos e para ele só havia um objectivo, oferecer a taça ao Galego. Passaria a comer lagosta ao pequeno-almoço, santola a meio do dia e camarão ao deitar. A primeira medida que tomou foi auto-nomear-se capitão da equipa e contratar o Capitão para adjunto. O treino inaugural foi marcado para as 8 horas de uma segunda-feira num campo lavrado e inclinado, no Alto de Paço de Arcos. Por volta das 12 horas iniciou-se a sessão com o número mínimo de atletas, os madrugadores, e incluiu o João Gordo que ia a passar, vindo directamente de um bar de Cascais. O Milhas começou por transmitir o seu desagrado quanto à assiduidade e ameaçou despedir todos os presentes se tornassem a não cumprir o horário imposto.
- Já pagaste a inscrição, – disse o Chico Sá, o ponta-de-lança mais dorminhoco da região que mantinha uma estranha dieta desportiva, borrachas escolares.
Foi assim retirada a ameaça de despedimento colectivo, pois o Milhas arriscava-se a não ter equipa para representar o estabelecimento do “sogro”. Deu início à actividade, entregando a tarefa ao adjunto, que nem teve tempo para dar a apitadela, pois a equipa do Estudante Focas já ia a meio da ladeira, em situação de contra-ataque, enquanto que a bola tinha acabado de entrar na aldeia da Terrugem e os filhos do Manelinho do estrume, assessorados pelo Ánhuca, preparavam-se para gamá-la. Só desistiram da ideia quando viram uma chuva de calhaus a aproximar-se das suas cabeças. O treino acabou, as equipas estavam na parte debaixo do campo, no vale, e recusavam-se a subir. Aliás, já não havia quórum, o João Gordo tinha aproveitado o balanço da descida e fugira para casa da tia.
Quando o torneio começou a equipa estava na máxima força, o Charlot tinha sido o guarda-redes seleccionado, devido às suas 10 diopetrias, a Becas era a enfermeira e o Capitão estava sentado com a braçadeira de Treinador. O resto estava ao balcão do bar a atestar-se de bejecas. O Milhas nem queria acreditar quando o árbitro deu inicio ao jogo. Estava ele e o guarda-redes!
- O que é que o meu sogro vai pensar, – gritou, dando ordens ao adjunto para ir buscar o resto da equipa.
Quando a equipa adversária já estava a ganhar doze a zero, o árbitro interrompeu o jogo e advertiu o Charlot de que não podia estar de costas, mesmo estando a ser muito mais eficaz nessa posição. O guarda-redes ainda tentou explicar que era uma forma de protesto por os colegas estarem a render pouco, mas a ameaça de expulsão fê-lo mudar de atitude. Entraram mais seis golos sem resposta. Quanto ao Milhas, saiu do pavilhão à beira de um ataque de nervos e marcou um treino para as oito horas do dia seguinte. Nem o Capitão apareceu. Com as estrondosas derrotas seguintes, a equipa foi ganhando fama e enchendo o pavilhão, até que o Chinoca num dos jogos tropeçou na bola e enfiou-a na baliza da equipa adversária. Foi a apoteose final, todos se levantaram. A fama da equipa de Futebol de 5 do galego ultrapassou as fronteiras da vila e a Taça de Bom Comportamento, a maior, foi levada em braços pela equipa do capitão Milhas, que continuou a protestar e a marcar treinos punitivos para as oito da manhã. Mas o azar continuou a bater-lhe à porta: ganhou a Lotaria!


Monday, September 20, 2010

Um Oficial Encurralado

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos
A notícia correu depressa, o ex-adolescente mais certinho da vila, o Peidão, ia casar-se, e os membros do Gang dos Meninos Ricos de Boas Famílias e Caucasianos de Paço de Arcos (G.M.R.B.F.C.P.A.) desejaram “boa-sorte” à noiva, a Santinha. Mas surgiu um problema: não havia lugar para todos, os futuros sogros do que pensavam ser o noivo mais cobiçado da Costa do Estoril queriam poupar na boda. Foram de imediato confrontados com a solução mais óbvia: os velhos saltavam, para dar lugar à juventude…e que juventude! Acabavam-se assim as madames de cabelo à “Moisés”, com fatos a cheirar a naftalina, pérolas de plástico, cachuchos de roscas e prendas miseráveis, acompanhadas por cavalheiros com dentaduras descaídas e que estavam mais para lá do que para cá, encharcados em Pritralon 2000, as criancinhas penduras não faltavam ao infantário, e às tias da aldeia prometia-se enviar os restos em “tupperweares”, para elas e para os bóbis. A festa assim rejuvenescia e com toda a certeza que seria muito mais original. Mas nunca ninguém imaginou o quanto original ela iria ser, nem o próprio Hitchock! A autorização para mais uns quantos foi dada na véspera e o Peidão e a Santinha convidaram todos e mais alguns, prometendo arranjar lugares disponíveis, nem que para isso tivessem de raptar durante alguns dos inúmeros familiares. Até o Bigornas trouxe um coirão que ninguém conhecia, mas que ele insistia ser a namorada de há muito, esquecendo-se de que no gang só havia registo da eterna Kika, uma alemã que só se lembrava do namorado quando precisava de alguém para lhe levar a bilha de gás da porta de entrada para a cozinha, nas traseiras, cruzando-se sempre com o Camaleão, irmão do Estalinho, que acampara à porta da Lentes, dentro do “Mustang” do pai, o saudoso Tio Chico, que dizia sempre com orgulho ser pai de “quatro matulões”, esquecendo-se que o filho Trovão tinha um metro e meio. Os convites de última hora foram feitos como os primeiros, de boca em boca e à porta do Pica, porque para os noivos poupar nas mariquices dos convites significava mais lugares à mesa para os amigos. Mas mesmo assim ficaram muitos esquecidos e alguns traumatizados. O dia D chegou e quando o Peidão acordou tinha ao seu lado a sua grande paixão, a mártir de nome Santinha, com quem vivia em pecado há já vários meses, para grande desgraça da mãe desta, a Dona Santola (uma “Santinha ao quadrado”, segundo classificação do jovem). Despediram-se e combinaram encontrar-se no altar para regularizar a situação com os céus. A boda teve lugar na Quinta da Granja em Sintra, pois o pai do noivo era o chefe da força que guardava os ares do país, excepto os que o filho costumava largar, e para o Orlando, o comandante, este era o dia mais feliz da sua vida, pois talvez estivesse aqui a grande oportunidade para progredir na carreira: dar todo o conforto ao filho do chefe! Na véspera do grande acontecimento paçoarcoense fez uma visita guiada às instalações, incluindo a ala mais in do palácio, os aposentos “reais” datados do século XVII, recentemente restaurados, e colocados de imediato à disposição dos noivos, para que os inaugurassem a seguir à boda. Até a retrete, onde muitos nobres tinham arriado faustosos cagalhões, se encontrava recauchutada e selada para os fundilhos do Peidão e da Santinha. Mas ao noivo, que não ligava muito a estas mariquices da História, o que lhe chamou à atenção foi o corredor dos aposentos dos oficiais, paredes meias, que estava forradinho de extintores , um por cada porta.
- Se o gang vem aqui, o Orlando manteigueiro será despromovido e passa a ser o Cabo Pilas , - pensou. – Vamos ficar longe destas tentações com a cor da maçã do Paraíso!
Como já era de prever a chegada do noivo foi acompanhada de um coro, de “Peidão” e muitos “Peidão”, que se estenderam à cerimónia na igreja, felizmente dirigida por um paçoarcoense padre que teve o bom-senso de acelerar o ritmo.
- Se queres falar com o meu irmão, até às 20 horas está no convento e depois passa directamente para o bordel, - dissera aos noivos um mês antes o adolescente Serapito quando estes escolheram o seu mano para lhes abençoar a vida de pecado.
E os gritos foram tantos que os meninos de boas famílias de Paço de Arcos ficaram com as goelas secas, vendo-se obrigados a porem-nas de molho mal tiveram oportunidade. O avô do noivo, pioneiro da aviação, juntou-se à festa e levou um amigo que conhecera, o engenheiro com cara de leitão. Nunca mais ninguém os parou! E foi nesta altura que um oficial da base foi encurralado na casa de banho, pois resolveu ir verter águas antes de um lote de meninos ir verter também as suas. Quando descobriram por baixo da abertura da porta do cagatório os seus sapatos e as calças em baixo, aproximaram-se. O Graise bufou-se durante meia hora e no intervalo entre cada petardo o Velhinho batia na porta e gritava:
- Então, então, estão aqui crianças!
O de lá nem tossiu nem mugiu, e assim ficou até que os copos dos meninos ficaram vazios e tiveram de ser recarregados. No andar de baixo a festa ia rija, o Pilas cavalgava pelos vastos corredores do palácio, enquanto que os noivos apanhavam a seca do costume, fotos e mais fotos com aves raras pelo meio. O fotógrafo era o irmão do Bigornas, e como o noivo não lhe prometera nada, excepto um almoço à conta dos sogros, simulou fotografias que nunca chegaram a aparecer. No final aconteceu aquilo que o Peidão e a Santinha temiam!
O Vaca Prenhe, cunhado do noivo depois de ter presenteado a Dona Ludres com um netinho fora de tempo, o Cabeça de Ananás, resolveu praxar o Peidão nos aposentos reais. Um minuto depois de entrarem entrou também a boca dum extintor, comandado pelo Graise, e encheu o espaço de um nevoeiro serrado, que obrigou metade do gang a refugiar-se no wc selado. E selado ficou, porque aproveitaram a confusão para verter águas para onde estavam virados. A sogra da Santinha nem queria acreditar, do quarto saia fumo branco, não porque houvesse Papa, mas sim porque todos os extintores estavam agora vazios. O Orlando não podia actuar, e por isso teve de ir o chefe que colocou todos os “meninos de boas-famílias” no exterior para minimizar os estragos. E naquela zona havia uma grande piscina atestadinha de água cristalina, que foi para onde se dirigiu o gang para se refrescar. Um minuto depois já havia jovens em cuecas a voar da prancha, incluindo a Santinha que foi atirada de vestido de noiva. O ponto alto desta banhada colectiva foi quando o Pilas baixou as cuecas e ofereceu a fruta a uma velha que espreitava escandalizada num canto do edifício:
- O que tu queres está murcho, - gritou o adolescente que, para constituir família, teve de ir viver em reclusão para o Porto, sendo agora um pai com grave amnésia em relação ao seu passado na vila mais gloriosa da Costa do Estoril.
A história deste casamento imemorável correu de boca em boca pelas damas militares, como já era tradição no ramo, e chegou como escândalo ao colo da filha de um deles, que nunca vira os noivos, mas era como se tivesse estado na boda.

Sunday, August 29, 2010

Olá Fresquinho


Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


Mais uma vez o Cine-Teatro de Paço de Arcos não deixava o crédito em mãos alheias e apresentava ao exigente público paçoarcoense, pela vigésima vez, o fabuloso filme com Bruce Lee “O Sinal do Ko Lhão”. Quando deu de caras com enorme cartaz pendurado na porta, o Menino Élinho deixou-se encartar pela pose desafiadora do chinês, espécie só vista no ecrã, e por momentos encarnou no herói, vendo-se no coreto da Avenida, vestido de pauliteiro de Miranda, a aviar os filhos do Manelinho do Estrume. Regressou à realidade quando sentiu o toque do Gilinho no ombro a avisá-lo que a campainha já tinha tocado. Mas não subiram sem antes se abastecerem de saborosos amendoins, cujas cascas seriam arremessadas mais tarde para a plateia, interceptando primeiro a luz da projecção, para assim criar efeitos especiais na tela. Até nestas modernices da actualidade a gloriosa vila de Paço de Arcos foi pioneira! Quando as luzes se apagaram o público reagiu, e os pirilampos dos guias-bilhetes acenderam-se em sinal de advertência.
- Álhi, Tópitói, - gritou alguém, avisando os espectadores da presença do mais célebre bombeiro da vila, que zelaria pela segurança do recinto.
Os “Filmes Castelo Lopes” deram as boas-vindas aos presentes e nas cenas das apresentações todos ficaram a saber que o Roberto Carlos iria aparecer numa longa metragem a cores, seguido dum fabuloso Zorro a preto e branco, numa sessão 2 em 1, estratégia comercial, também pioneira da vila mais famosa da Costa do Estoril. O Nico, que estava sentado entre o Menino Élinho e o Gilinho, aproveitou a escuridão momentânea e atirou, não uma casca de amendoim, mas sim uma escarreta misturada com pedaços do fruto e da crosta, ambos torrados. O primeiro intervalo chegou, e Bruce Lee nem vê-lo. O Paulo Abelha já ressonava, e o Ruizinho do Pombalino estava com o rabo dorido, mesmo estando sentado na zona mais in do Cine Teatro de Paço de Arcos. A correria ao bar foi a do costume, havia proibição de fumar na zona do público, não uma medida ambiental, mas uma exigência do bombeiro que temia que uma fagulha pudesse incendiar aquela mistura quase irrespirável de cholé, sebo, sovaco, bufas, arrotos, e outros gases potencialmente inflamáveis. Quando a campainha tocou, a correria foi geral, vinha aí o Bruce. O Menino Élinho endireitou-se e ainda teve tempo para simular um golpe de karaté, que passou a rasar o nariz do Gilinho. Como era de prever, a cena do “Sinal do Ko Lhão” começou com uma troca de beijos entre um camponês esfarrapado, que todos sabiam ser o herói, e uma linda chinoca vestida com umas cortinas, minada de pó-de-arroz e com uns pauzinhos cravados no cocuruto, cena esta que alternava com a da chegada dos maus, que desciam a montanha que circundava a aldeia, a galope. As bocas estavam coladas, e todos os movimentos alternavam com as línguas, que não se viam.
- Espera aí que já cospes, - gritou o Todo Boneco, como já era tradição, do meio da plateia.
Os pirilampos acenderam-se e o prevaricador foi avisado de que para a próxima era convidado a sair.
- Álhi, Tópitói, - gritou outro mais acima.
Mais avisos, seguidos de outros gritos, até que o público mais culto se manifestou, pedindo silêncio. Foi nessa altura que o gangue do “Pim Ga Lim” chegou às casas e partiu tudo, excepto o Bruce Lee, que conseguiu fugir e jurou vingança.
- Conta comigo, – gritou o Menino Élinho entusiasmado.
- Para quê, só se for para o jantar, – provocou o Gilinho.
- Duvidas que eu partia o Pim Ga Lim todo se o apanhasse no Coreto?
- Tu nem uma porta partes, – gritou o Ruizinho do Pombalino.
- Lá fora falamos. Aposto uma caixa de gelados!
O desafio estava lançado, depois da vingança do Bruce Lee viria a desforra do Menino Élinho. E não demorou muito, pois o Bruce Lee parecia estar com pressa e rebentou num abrir e fechar de olhos com toda a província natal do Pim Ga Lim. E uma vez na Avenida o desafiu foi lançado:
- Aposto que não és capaz de deitar aquela porta abaixo, - desafiou o Gilinho, apontando para a barraca dos gelados “Olá”.
Não obteve resposta porque o Menino Élinho saiu a correr em direcção ao alvo, ao mesmo tempo que se via no ecrã em câmara lenta. A guardar a casota estava o Pim Ga Lim e lá dentro encontrava-se prisioneira a fabulosa Sapo. O estrondo foi enorme, mas nada cedeu. O Gilinho riu tanto que acabou por se desequilibrar e bater violentamente com a cabeça na porta, que saltou dos ferrolhos. Por breves segundos o grupo ficou paralisado, os gelados estavam ao alcance de todos. E foi isso que aconteceu! A barraca foi tomada de assalto e cada um agarrou numa caixa.
- Agarra que é ladrão, - gritou um popular.
Foi a debandada geral, o Gilinho e o Menino Élinho seguiram em direcção à sede velha do Clube Desportivo de Paço de Arcos, enquanto que os outros optaram por outros caminhos alternativos. Mas de uma coisa ninguém prescindiu: dos doces, pois correram e chuparam ao mesmo tempo, diz a lenda! Mas voltemos aos heróis principais. Ambos entraram pelo clube, é um facto, mas actualmente divergem na modalidade que se estava a jogar, o Gilinho diz que é damas, o Menino Élinho opta pelo xadrez, pormenor que nos dá a idade actual destes paçoarcoenses. Este deu logo de caras com o primo Albertino, que desafiou de imediato para um jogo, mas que lhe disse para ir montando o tabuleiro enquanto comprava tabaco. Para a história da vila ficou registado que o Menino Élinho tinha sido visto a jogar xadrez sozinho, talvez devido aos efeitos nocivos de algum gelado marado. A perseguição aos outros elementos do Gangue do Karate prolongou-se pela noite dentro, e teve como cenário a linha do comboio. Quem assistiu a toda esta cena foi um par de namorados sentadinho num banco do jardim, a Marina da casa galega e o Pinando!


Tuesday, August 24, 2010

A Viagem


                        Comandante Guélas

                                       Série Paço de Arcos



O Peidão, o adolescente mais bem comportado de Paço de Arcos, tinha por vizinhos um gang de dez irmãos, vizinhos por sua vez do Milhas, o mais infeliz rapaz da Costa do Estoril que, tal como o Calimero, nascera com um grave problema metafísico que o levava sempre a questionar-se: “porque é que eu vim para este mundo? Na rua de cima habitava Mac Macléu Ferreira, dono de uma soberba mota de competição, cujos acessórios eram feitos com tábuas das caixas de fruta que o Zé dos Porquinhos deitava para o lixo. E a máquina era tão potente que ele tinha de ajudar com os pés de cada vez que regressava a casa. Nem o escape de rendimento, feito com latas de salsichas “Isidoro”,o dispensaram alguma vez de usar as faluas. Só quando descia o monte é que este Fangio loirinho, de olhos azuis e dioptrias não contabilizadas, se sentia um profissional. Como o andamento do Gang dos Meninos Ricos e Caucasianos de Paço de Arcos era estonteante, às vezes precisavam de fazer estágios, e muitos deles foram feitos em São Quintino, a quinta do gang dos dez, lá para os lados de Torres Vedras. E foi numa dessas ocasiões em que o Chico Sá, que ia a guiar uma carrinha citroen GS atulhada de malta e bagagens, viu a vida a andar para trás, pois o Focas conseguira pôr uma aldeia a perseguir o carro, a tentar pendurá-los num poste, com o carro incluído. Recuemos um pouco!
O senhor Américo nem queria acreditar no que via. Do Citroen saia cada vez mais gente, arrumada no meio de uma quantidade infinita de malas. Como já era tradição, antes de qualquer viagem tinham de picar o ponto no “Pica”, o café mais in da vila, o berço da maior parte dos adolescentes nascidos nos anos sessenta, que largaram os biberões por altura da Revolução, e que as únicas pistolas que dispararam foram aquelas com que vieram ao mundo, uma tentação para um Capitão vindo directamente da Quinta Divisão para tentar ensinar aos petizes o manejo das ditas. Em São Quintino passava-se sempre o mesmo, pregar cagaços atrás de cagaços ao mais jovem elemento do gang dos dez irmãos, que tinha substituído a terrível figura do Papão, tão comum no resto do país, pela do Peru que o obrigava, nas noites em São Quintino, a dormir com a luz acesa. Nestas ocasiões os cortes de energia eram constantes, e a confusão permanente. Recuemos! O senhor Américo agradeceu aos céus quando viu o carro a partir, pois algumas ovelhas negras do rebanho acinzentado iriam estar ausentes da vila, e isso significava alguma paz e tranquilidade. Quando entraram na marginal, o Focas deu um flato tão grande que obrigou os amigos a permanecerem com a cabeça de fora até à praia de Caxias. A condução era feita a meias, não que o Chico Sá, o motorista, saísse do lugar, mas sim porque o Focas, o co-piloto, tomava conta do volante para que o amigo pudesse fumar calmamente um cigarrito. Quando já estavam mais perto de Torres Vedras do que de Paço de Arcos, para descanso desta e azar da outra, o Focas pediu para pararem junto a um café, onde estavam todos os habitantes de uma aldeia. Abriu o vidro e levantou o braço a pedir ajuda. O Chico Sá pôs o ponto-morto, puxou o travão de mão, acendeu um cigarrito e encostou-se à porta. Ninguém questionou a estranha necessidade do amigo em querer entrar em diálogo com os autóctones. Talvez precisasse de dados para alguma cábula futura.
- Por favor, - chamou o Focas com o sorriso mais doce, os olhos mais brilhantes e a voz mais meiga da Costa do Estoril, que só ele conseguia fazer.
Um rapaz de buço saltou da mesa e aproximou-se todo solícito do carro dos “estrangeiros”. Por momentos ficaram dois olhares embevecidos frente a frente, mergulhados num sonho. Até que:
- Qual de vocês quer levar no cú? – Perguntou a seco, sem preliminares, o mais fabuloso boxista de Paço de Arcos.
Por momentos num estado sem tempo, imóveis e mudos, sem vontade e sem pensamento. O Chico Sá, que já estava meio a dormir, acordou sobressaltado, o buço do aldeão levantou-se e atrás dele veio o lábio, ficando à mostra o único canino existente, no fundo dos seus olhos viam-se clarões raros, os amigos, primos, tios, pais, sobrinhos e vizinhos, absorveram a pergunta. O Focas manteve o sorriso angelical, porque o tempo ainda não passara por ele, o amigo motorista correu em pânico para o acelerador, depois de ter engolido a beata, as amígdalas do autóctone eram agora visíveis por todos, os vidros das portas subiram a todo o vapor, a populaça começou a reagir. De repente toda a aldeia ganhou uma velocidade de movimentos, unida às raízes da sua raiva, pela urgência de uma justiça rápida que pendurasse os forasteiros e o carro no poste mais próximo.
- Arranca, - gritou o Focas quando sentiu o bafo da aldeia.
A confusão era tão grande que o Chico Sá não conseguiu enfiar, durante breves, mas potencialmente fatais, segundos, alguma mudança. Fugiram in extremis com um exército circunspecto e severo no seu encalço, disposto a cometer um crime.