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315 estórias

Thursday, December 20, 2012

Cine-Luz

Comandante Guélas

Série Colégio Militar



Recuperar as memórias sagradas e preciosas, que nos abrem as portas do Colégio Militar, relembra-nos que somos exilados do nosso passado, e por isso precisamos de o recapturar. O Cine-Luz era um micro-cosmo, um mundo onírico em que imperava um cheiro intenso a cavalo, coisa inimaginável nos estranhos dias que correm em que tudo traumatiza. As quartas e quintas-feiras à noite eram sempre destinadas às sessões de cinema, que decorriam a seguir ao jantar num espaço existente junto das cavalariças do Colégio Militar, a Formação. Para a 1ª e 2ª Companhias estavam reservados filmes softs, mas para a 3ª e 4ª  já eram atrevidos, principalmente quando o decisor passou a ser o padre Viana. A "Quadrilha Selvagem” teve um efeito brutal na libido de muitos, pois a cena dentro duma pipa atestada de vinho tinto fez entrar pelos olhos, a seco e sem preliminares, um par de mamas vivas, que os colocou a todos, por breves milésimos de segundos, na pele do herói, com a Marilyn Monroe da Luz, a fabulosa Rosa. Os espetadores não resistiram à tentação e encheram o recinto, que se pretendia cultural, de opiniões impróprias para um estabelecimento de ensino com tão grandes pergaminhos. E ainda por cima na plateia alguém que estava na última fila deu um chuto na cadeira da frente, não se sabe se com as cuecas ao rubro, fazendo com que todas as outras até ao palco caíssem como peças dum dominó, obrigando o oficial responsável, aspirante Felício, a mandar interromper a sessão, para pôr em ordem o saloon…perdão, o espaço cultural, dando ordens para que as luzes se acendessem, vendo nisto uma forma de impressionar a sua convidada especial. A Rosa ficou assim exposta à parte do batalhão colegial mais sensível, dir-se-ia que a moça que uns minutos antes nadava dentro de uma pipa de vinho tinto com os seios a sorrir, tinha-se materializado naquele espaço com cheiro a cavalo, a convidar todo o cineteatro para o pecado:
-          Porque é que aquele dentolas, que caiu aqui de pára-quedas, tem direito à Rosa, e nós não? - Resmungou alguém da plateia. - Temos de fazer-lhe uma visita de cortesia um dia destes.  
A “Quadrilha Selvagem” tinha dado assim início ao desencadear de acontecimentos, que iriam dar lugar, meses mais tarde, a um dos mais famosos enredos do Colégio Militar, local único de grande intensidade, cheio de sentimentos e sensações pessoais, que nos dias que correm teria direito a uma longa-metragem do Manoel de Oliveira, com estreia exclusiva no teatro D. Luís Filipe. A sessão dos mais novos também não se ficou atrás, trazendo à cena um herói da fita chamado Alfredo, um mentiroso compulsivo. A partir desta data todo aquele que exagerasse numa história ficaria conotado com esta personagem, e o azar calhou ao único docente responsável por todo o batalhão, o padre Miguel. Exagerou num relato e a turma respondeu com um arregaçar das calças, sinal de que estava a meter água, ao mesmo tempo que todos remavam com os braços. No exterior alguém foi o responsável pelo acender do rastilho:
- Carioca chupa-me a pichota, - seguido de um biqueiro na porta.
Optou por distribuir umas bordoadas valentes nos da primeira fila, em vez de perseguir o bandido em alta velocidade como era costume. “O Homem que matou Liberty Valance” enterrou-se em profundidade nas memórias dum Menino da Luz, sucessor da única vítima de atropelamento na parada, pelo colega 384, com carta e carro, na cena em que os intervenientes comeram uns bifes maiores que o prato, quando comparados aos bifes da testa fornecidos pelo Pintado aos alunos. Daqui para a frente sempre que dava de caras com um bife, lembrava-se do “Liberty Valance” e do seu Colégio Militar. As sessões de cinema eram um dos momentos mais aguardados da semana, e não se reduziam ao filme propriamente dito, mas a todo um ritual, desde a marcha, com passagem obrigatória pelo espaço público, até ao inebriante cheiro a equino, às tradicionais operações stop dos graduados aos mais novos que ousavam ir comprar Bolama ao bar durante o intervalo, ao Six a vomitar do balcão diretamente para a plateia, e outras atividades pedagógicas exclusivas deste colégio que tivera no seu seio o Agapito, herdeiro duma coroa que já não existia. E um dia no regresso um grupo de adolescentes civis, sentados num banco do jardim, resolveu “gozar com a tropa”, e um comandante de pelotão, o Grilo, ordenou “alto”, “esquerda volver”, e ameaçou-os com um “destroçar”. Valeu a intervenção do Felício, que afoguentou o inimigo, impressionando ainda mais a sua acompanhante, a Marilyn de Carnide, musa exclusiva dos Meninos da Luz, filha do dono das galinhas responsáveis pelos ovos que davam fama à iguaria da Luz: o Amarelo!
  

Friday, December 07, 2012

A Rosa da Luz






Comandante Guélas

Série Colégio Militar



O Colégio Militar deu-nos tudo em demasia, até o amanhã. No trajeto entre a Parada Marechal Teixeira Rebelo e a Parada Marechal Serpa Pinto, passando pela Enfermaria, muita coisa podia acontecer. No pavilhão de Química a aula do Semita estava ao rubro, o engenheiro distribuía bordoada com o ponteiro ao mesmo tempo que gritava:
 - É gado, é gado!
 Dava notas:
- Levas uma “bengala” para casa e o teu colega uma “bicicleta"!
 Oferecia conselhos pedagógicos:
 -  Esta disciplina não é uma cadeira, é uma chaise long onde o aluno se estende à vontade! 
Fazia diagnósticos:
- Moçooo, sabes o que é um Jericoacéfalo? É o que tu és….um burro sem cérebro!
Dissertava:
 - Nesta turma uns dormem de olhos fechados, outros de olhos abertos!
Distribuia miminhos:
- Psché moço, num monte de esterco, fazes nódoa!
Um dia o Minhoca explodiu e o engenheiro Grijó sofreu um atentado:
- Espero que morras, assim não tenho de ir estudar Física - gritou, atirando-lhe um limão e escondendo-se atrás da sebe da Enferma. 
E havia mais docentes a lecionar:
- Piu, piu, piu, és burro, - gritou o Falcão, professor de matemática, com a boca colada ao ouvido do Cão.
- O senhor é um xisto com pernas, - classificou, já desesperado, o professor Perdigão com os olhos na cara do Elefante.
O pequeno chalé foi morada da musa do batalhão de rebarbados dos anos cinquenta do século passado, que nunca nenhum menino a viu mas sentia-lhe o cheiro, e com ele imaginava-a num corpo feminino com uma boa tranca, pandeireta de sonho, uma prateleira que os punha sem freios à noite nas camaratas, com as camas a ranger e as almofadas a gemer, por isso gritavam sempre pelo seu nome de cada vez que regressavam em formatura: “Oh Elsa!”, e sentiam um gostinho. Nos anos setenta a musa tinha o nome de Rosa e era de carne e osso, e deu origem a uma estranha e intensa relação, ela era uma rapariga sem raízes e sempre em fuga, num paraíso onde não pertencia a nenhum, mas estava nos sonhos de todos. A Rosa e os Meninos da Luz tinham sido destinados a olharem-se e a divergirem de todas as tentações, que os levavam muitas vezes a cruzarem-se como dois ponteiros de um mostrador de um relógio ao meio-dia. Foi uma relação extraordinária, num tempo e numa parte do mundo complicada. Por isso o local onde viviam era contraditório de luz, paixão, confusão e caos, estava ligado a uma marginalidade que, apesar de tudo, tinha os seus princípios. Havia também a Lisete, senhora de uma testa imprópria para devaneios, também conhecida por Listete, ou a mulher do Patronilha, que não tinham direito a participar nos sonhos destes adolescentes que estavam fardados de cotim de domingo à noite até sábado à tarde. Antes destas musas os pensamentos iam para as meninas do reformatório vizinho, que os obrigavam a inscrever-se em ações de caridade, e tudo isto à conta da Conferência de São Vicente de Paulo, de quem o colégio era membro, para assim lhes poderem sentir o cheiro a maresia quando tinham autorização para sair fardados de terylene. O levantamento das necessidades era feito pelos capelães civil e militar, que mandavam entregar o dinheiro e os géneros às pessoas referenciadas de Carnide. E um dos alcoólicos, perdão, acólitos, tinha o número 95 e um dia, desesperado para ir fazer uma boa ação, antecipou-se e abdicou da aula do Carioca, um padre com uma personalidade pouco espaçosa, cujas aulas de música decorriam sempre sob tremenda pressão, onde se desintegrava com facilidade. Mas como no Colégio Militar as penas eram instantâneas, sem direito a recurso, o Comandante do Corpo de Alunos oficial, o Maneta, condenou o aluno o Coiote a uma chapada, uma carecada e uma privação de ida ao cinema. O 120, o 125 e o 191 como não cantavam, tiveram ainda tempo, depois de distribuído o produto, de irem fazer uma visita de cortesia ao minimercado, para se abastecerem de Bolama, metade comprada e a outra metade escondida na boina, que estava presa ao blusão. Mas voltemos à nossa rosa, que era vista com regularidade num gabinete junto aos claustros, para gáudio da rapaziada, que aproveitava para arregalar o olho de dia e esgalhar o frango à noite. O pai chamava-se Nunes e era o hortelão do colégio, deslocava-se sempre num trator, que costumava levar várias camadas de alunos pendurados, que o obrigavam a parar várias vezes para os enxotar com palavrões e à pedrada. O “Amor” também era muitas vezes o tema da última formatura, que se seguia ao jantar, juntamente com outras atividades lúdicas, como por exemplo as “Firmezas”. Na altura da distribuição do correio, carta mais amaricada era de imediato aberta, e lida em voz alta para toda a Companhia, que o diga o camarada Coiote quando a namorada, uma Menina de Odivelas descoberta num Chá Dançante, lhe enviou a declaração de amor num envelope às florzinhas e perfumada. A relação foi assim posta em risco porque o pai da donzela, administrador da Shell, fazia um controle apertado à filha, principalmente se lhe cheirasse que atrás das suas saias andava um Menino da Luz, com as hormonas aos saltos e uma semana inteirinha fechada no colégio. Felizmente o “Todos por Um, Um por Todos” também dizia respeito aos funcionários, que neste caso tinha o apelido de Domingos, e fazia umas horinhas extras na empresa do papá da menina. A pedido do Coiote passou a trazer as cartas entregues pela menina, e a levar as escritas pelo 95, sem haver necessidade de passar pelo Geral da Companhia. Mas um dia os limites foram forçados e alguns foram longe de mais e resolveram fazer uma surpresa à Rosa a caminho do ginásio, durante o tempo de exames, mascarados de múmias, depois de terem desviado ligaduras da enfermaria, e de intensos treinos durante meses. Uma das versões conta que o namorado, fã dos filmes do Bruce Lee, tentou proteger a sua Rosa da Luz, mas não se saiu lá muito bem; a outra refere o irmão, que ficou instantaneamente chéché com a paulada que levou, tendo os gritos da diva chamado a atenção dum vigilante, que veio de imediato a correr em seu auxílio, provocando a debandada das múmias e o despertar do mano, que o atacou com um biqueiro nos queixos, pondo-os à banda. Foi decretado o “Alerta Vermelho” e o galanteador alferes Felício conduziu os interrogatórios, tendo entregue ao Sub Oliveira, para impressionar a Rosa, por quem arrastava a asa, uma lista com os nomes dos arguidos, incluindo um que estava de baixa na enfermaria com um traumatismo no coco. O colégio estava à beira de um ataque de nervos, o Galo via atrevidos em todas as esquinas, ameaçando de imediato com cargas de cavalaria, e a Rosa gritava de cada vez que um Menino da Luz se aproximava um pouco mais, violando a distância de segurança. Com a imediata “prisão domiciliária” dos mais velhos, os índios fizeram jus aos seus pergaminhos e deram um passo em frente. Só um não o fez porque tinha ido à missa, talvez confessar-se, e quando tomou a decisão já era tarde de mais, tinha-se atingido a data definida pela chefia, que ditou de imediato a pena: uma expulsão e várias desgraduações! Quanto à Rosa, depressa foi ultrapassada pela Maria João da biblioteca, também com boa tranca, pandeireta de sonho, e uma prateleira com o dobro do tamanho que fez com que a rapaziada passasse a dedicar-se mais ao estudo. Com o tempo o encanto desvaneceu-se, o Colégio Militar, antes exclusivo para machos, foi inundado de saias e com isso desapareceu o fruto proibido.