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315 estórias

Friday, November 30, 2012

Sissé


Comandante Guélas

Série Colégio Militar


No colégio todos tinham um número, a que a maioria acrescentava uma alcunha, mas aquele era grátis caso conseguissem passar nas provas de admissão, enquanto que esta só aparecia após algum empenho. O tema da aula era o Antigo testamento, o comportamento da turma estava, como habitualmente, próximo do caos, e o padre gritava:
- Silêncio, silêncio…muita atenção, só faço a pergunta uma vez - e continuou. – Quem é que nasceu em Belém?
Um silêncio profundo abateu-se sobre a turma, ninguém ousava responder, sentia-se a tensão no ar, tudo podia explodir a qualquer momento, até que:
- Foi o Zacarias!
O padre gorducho olhou para o pupilo que estava no fundo da sala e gritou furioso, apontando para a porta:
- Zacarias, rua.
Entrou 666 e saiu com uma alcunha, cuja versão atual equivale a uma tatuagem! Nas pinturas de 1975 houve uma novidade, o aluno 361 foi pintado de branco, contrariando a clássica cor preta usada para decorar todos os outros colegas. Sissé trouxe assim outro tom para o caucasiano Colégio Militar, tínhamos agora um camarada mano. Cedo revelou ter uma fixação por Parkers, iniciando logo ali uma coleção, que começou com a dele e foi enriquecida com a dos outros. Diziam ser filho de um “Flecha Negra”, as tropas especiais do 33 na Guiné, que chegaram a marchar com o Batalhão Colegial, na altura em que lhe deram a GOTE, numa cerimónia que decorreu no campo de futebol, sob um sol tórrido, e muitos desmaios a condizer. O camarada-mano 361 trazia consigo um conjunto de mitos, dizia-se que o pai era um colecionador compulsivo, não de canetas como o filho, mas das orelhas dos inimigos. Cedo revelou ter algumas dificuldades de adaptação ao método de ensino colegial, mas nisso não era o único, que levavam os professores à beira de um ataque de nervos:
- Eh pá, este desenho está mais feio do que a ponta da teta de uma preta, - disse o Alcatrão, já perto do fim da aula, acendendo o décimo cigarro com a beata do anterior, que alinhou com as outras na parte da frente da secretária.
- Moçooo, sabes o que é um Jericoacéfalo? É o que tu és, um burro sem cérebro, - e o Semita deixou cair o ponteiro no coco do mano, tradição colegial da justiça sumária que castigava sempre bem, pouco e no princípio, para nunca se ter de castigar mal, muito e no fim, como nos tempos que correm.
 - Bai-te lá sentar, - gritou o Menau, - tu és a desonra dos valores essenciais da república portuguesa, um atentado à razão.
Até o pacífico professor Perdigão, cuja frase preferida era “quanto mais sei, mais sei que nada sei”, e que todos os dias desafiava as leis da física com o seu Datsun 120Y cheio de mossas, ia aos arames com a ignorância do Sissé:
- Explica à turma os efeitos visuais do caroteno.
 O 361 levantou-se, como mandavam as regras, e disse:
- Quando a minha mãe põe os tomates ao sol, -  foi interrompido pelo riso geral da turma, e a sentença do docente:

- És um calhau com olhos!

O Sissé era um aluno pacífico, mas dizia o bom senso para não se meterem com ele. Numa sexta-feira à noite a vontade dos colegas para jogar uma peladinha foi tão grande, mas bola, nem vê-la. E como no Colégio Militar não havia propriedade privada, depois de uma busca organizada deram de caras com a do camarada-mano, e apropriaram-se imediatamente do esférico, uma tradição que contrariava o discurso oficial de que naquele espaço educativo para eleitos, “furto” era uma palavra que não pertencia ao léxico colegial, porque como os gatunos eram de boas famílias não roubavam, descaminhavam-se, por isso no Colégio Militar somente nos descaminhávamos, à grande e à francesa, daí a razão para a existência das firmezas, a banalidade do mal. Porque o plástico do esférico tinha uma consistência chinesa, a dita do Sissé só durou uma ínfima parte da esgalhação. Devolveram-na em farrapos ao local do crime e foram dormir alegremente. O 361 ficou no colégio durante o fim de semana, e quando quis ir brincar com o que era seu, deu de caras com um objeto disforme, sentindo de imediato o fluxo sanguíneo dilatar-lhe as veias, os movimentos cardíacos e respiratórios acelerarem, os músculos contraírem-se, a boca entreabrir-se, o rosto ruborizar-se, mesmo sendo incapaz de ver o fenómeno no reflexo do espelho, e os dedos grandes dos pés revirarem-se. Nessa noite quando fechou os olhos foi assaltado por encantamentos, feitiços e êxtases, perdeu a noção do tempo e do espaço, prenuncio de que algo muito sério iria acontecer. Rolariam orelhas? Na segunda-feira todas as bolas da primeira companhia tinham as marcas de um canivete, exceto a dele que transpirava saúde. 

http://camaradachoco.blogspot.com/2020/07/o-hipnotizador.html


Friday, November 23, 2012

As Noites dos Facas Longas



Comandante Guélas

Série Colégio Militar

O Colégio Militar sempre deu muito de bom, e pouco de muito mau! Por terem feito uma “brincadeira” ao professor de inglês, um capitão, todos os graduados de 1932 foram chumbados e, em vez de expulsos, como pretendia a direção, por causa de um deles ser familiar de uma eminência parda do regime, foram graduados no ano seguinte em furriéis. Na disciplina de Inglês dos anos 70 havia o “American Language Course”, dado no futurista Laboratório de Línguas, com boxes individuais para cada aluno, apetrechadas com uma panóplia de instrumentos, dirigidos por um docente em cima de um estrado, com uma consola cheia de botões à sua frente que, quando se esquecia de desligar os microfones, arriscava-se a ouvir o grito do Fogaça:

- Ó Tabi, chupa aqui!

Na Sala de Cinema, que fazia concorrência a muitos cinemas, o Pequito projetava filmes em francês, mas a maioria aproveitava para dormir, exceto o 69. E tudo isto para tentar fazer com que os Meninos da Luz ganhassem competências extraordinárias no uso da língua. Mas nada vazia concorrência ao “Swedish Sexual Course”, onde umas suecas atrevidas vaziam de tudo para arrebitar os canários da rapaziada, cujos proprietários não davam descanso à bicharada. O roubo, “descaminhamento” para ser mais correto, pois estes meninos não roubavam, das “Ginas”, não representava um ilícito criminal, mas antes um ato de camaradagem, na difusão da arte de bem cavalgar uma almofada. E por causa das malucas tornou-se famoso nos anos 90 o Pija-Man, um super-herói equipado com um pijama turco preto, que as farejava à distância, fechadas a sete chaves nos armários metálicos verdes, raptava-as, esgalhava, e tornava a pô-las no lugar, sem que o proprietário desse pela violação, exceto às vezes algumas páginas coladas. Mas se o gamanço implicava dinheiro ou outro assunto do Índex, abria-se a “Caixa da Luz”, de onde saiam todos os demónios e males do colégio, que davam origem a muitos processos dos Távoras. A memória é uma forma poderosa da experiência involuntária que muitas vezes regressa associada a circunstâncias do presente, como fluxo de instabilidade, o que a torna uma realidade para além do tempo, um fluxo infindável da consciência, com sensações físicas difusas, imagens, odores e sons, com tanta vivacidade e complexidade, que nos fazem regressar ao colégio. Não podemos esconder os nossos pecados, não podemos enterra-los, temos de carrega-los, temos de admiti-los com orgulho. O orgulho não advém da consumação do erro, mas da coragem que é necessária para admitir esse erro. Havia tradições e tabus no Colégio Militar que eram disfuncionais para o espírito de corpo e de camaradagem. Como é que se chegava por vezes àquela loucura e àquele mal em estado puro?

Quando o 401 entrou na sala de leitura da quarta companhia no sábado à noite de um janeiro gélido, porque tinham ficado todos retidos, conforme fora ordenado com a conivência de alguns oficiais, ia com um sorriso confiante, que depois deu lugar a um sorriso apreensivo, que deu lugar a um esgar de sofrimento, um vazio nos olhos, um tremer de medo, exausto, com sede, um tímpano furado à chapada, o sangue a sair em esguicho, uma marca no rosto de uma agressão com uma garrafa de whisky Highland Clan, gamada na Soca ou oferta de algum miliciano acalorado, com dores intensas no cotovelo esquerdo, operado duas semanas antes para retirarem os parafusos, de uma lesão ganha a representar com orgulho o Colégio Militar na Classe Especial de Ginástica um ano antes, atingido agora barbaramente pelas pernas arrancadas às cadeiras, que estavam nas mãos dos psicopatas de ocasião, cegos por um ódio profundo durante toda aquela longa noite, em sentido. O espaço dedicado à “leitura” transformara-se num tribunal inquisitorial, a orgia de violência era a quem mais ordenava, estavam presentes quase todos os graduados da quarta companhia e de outras, e do Comando, com graduação igual ou acima do Comandante de Companhia. E tudo isto porque tinham desaparecido 350 escudos dum armário, 150 escudos do saco preto de outro e uma minicalculadora científica, que apareceu dois dias depois debaixo duma cama, após a ameaça de uma firmeza! Mais tarde o autor deste último roubo foi apanhado com 100 dólares de um colega durante a viagem de curso, depois de terem sido obrigados a formar numa parede da Legião Estrangeira em Nice, onde foram revistados, e confessou também o desvio da calculadora. Para manter a tradição, escolheram aquele que nunca fora subserviente, que não era adepto da graxa, cujo pai nunca presenteara os graduados com lagostas, como aconteceu duas décadas antes, em que um general enchia semanalmente os graduados e os oficiais da companhia com caixas de marisco, cujo filho um dia acusou, durante um desses encontros íntimos com o comando, alguns colegas, de atos indignos, o que fez com que fossem acordados brutalmente às duas da manhã, torturados, uns queimados com cigarros, entregues depois aos oficiais, que continuaram a festa, mas que nunca conseguiram que eles dissessem aquilo que eles queriam ouvir, porque a verdade era só uma. Valeu existir um Comandante do Corpo de Alunos Oficial muito competente, que investigou, e castigou o denunciante e os cobardes com estrelas nos ombros. Assim, como o 402 lhes estava atravessado na garganta, transformaram-no, a ele e ao vizinho de cama, e, portanto, suspeito de ter informações, em sacos de pancada, onde despejaram todas as frustrações da breve vida. Os carrascos só queriam ouvir o “sim”, mas o 401 e o 402 não deviam nada, apesar de teme-los, mantiveram-se firmes, e em sentido, como obrigavam os “regulamentos”, durante toda a noite. E como os ratos são sempre os primeiros a abandonar o navio, um colega também suspeito entregou em desespero uma lista de todos os roubos que fizera desde a entrada no espaço educativo, onde não constavam estes, ganhando assim um bilhete para a primeira fila reservada à assistência na Sala de “Leitura”, sinal de que nestes tempos desconstruídos bastava uma folha de Excell para comprar graduados. Um dos inquisidores por vezes entrava em histeria e soltava gritos efeminados, mostrando que tinha as hormonas trocadas, e por isso tentava ser o mais macho. O 402, o alvo, aguentou-se firme durante vinte sessões. Nunca mais quis saber do colégio, talvez esta verdade traga a reconciliação!

 

 “Zacatraz” aos bravos 401 e 402, que se portaram com “Ardor Guerreiro que se apura”.

Thursday, November 15, 2012

Um dia na vida do Menau


Comandante Guélas

Série Colégio Militar 

No Colégio Militar a maior parte dos alunos estava constantemente a tropeçar em si mesmo, por isso as cabeças borbulhavam diariamente. O Menau iniciou a aula com um discurso que iria fazer na Assembleia. Cada aluno lia uma parte, até ele o interromper e pedir:
- "Pequena obação", - para os medíocres
ou
- "Grande obação", - para os alunos de excelência, raros nesta turma, porque a maioria ovacionava com as palmas e os pés.
Por isso mudou rapidamente de assunto antes que o caos piorasse.
- “Para alguém sou um lírio entre os abrolhos”, - ditou o Menau  ao 4º E, com uma  intensidade emocional que o transformava numa pessoa diferente sem o sotaque do Porto, andando de um lado para o outro no estrado.
- Stor, - chamou o Gordini, pondo o braço no ar, e continuou. – Entre os quê?
- Abrolhos!
- Agrolhos?
- Não é “agrolhos”, é “abrolhos”! – Gritou o Menau, carregando ainda mais no sotaque nortenho, ao mesmo tempo que dava um banho ao Six com uma chuva de perdigotos.
E continuou:
- “E tenho as formas ideais de Cristo”!
- E tem as formas ideais de Cristo? – Interrompeu o Vinasse.
- “E tenho”, TENHO, - respondeu exaltado, engasgando-se com o tabaco que estava a mascar, que guardara religiosamente na bochecha esquerda, sendo obrigado a abrir a gaveta da secretária à pressa, para onde enviou uma soberba cuspidela.
E continuou a ditar o poema “Alguém” do Cândido, mas já com as emoções à flor da pele, que o obrigaram a acelerar o ritmo:
- “Para alguém sou a vida e a luz dos olhos / E, se na terra existe, é porque existo”
- Xisto? – Perguntou o Leitão.
- “XISTO”??????? – Indignou-se o Menau, batendo com o livro de ponto na mesa. – “EXISTO”, “EXISTO”, ó burrico!!!!!
O ditado tinha-se transformado numa brincadeira, havia dúvidas a rodos, o Menau fora envolvido por súbitos clarões, fragmentos curtos de relâmpagos, a voz desaparecera, lágrimas escorriam-lhe pela cara, o docente estava reduzido a um  espetro psicótico, a roçar o niilismo, mergulhado na escuridão angustiante do 4º E, que se transformara numa turma a preto e branco, com muito grão. Prosseguiu! Deu seis de seguida sem interrupções, até que, quando a alma já tinha atingido a homeostasia:
- “Esse alguém abre as asas no meu leito”!
- “…do meu leite??? – Perguntou o Escalope, pondo-se de pé, com o braço tão esticado que parecia querer riscar o teto.
- “NO MEU LEITO”, “NO MEU LEITO”, óh carágo, menino! - Gritou desesperado o professor de Português, em maiúsculas e a bolt, e continuou. – Vós sois uns insensíveis, vós não mereceis as mães que tendes.
Estava na red line, exausto, a voz fora engolida pela emoção, dizia frases imperceptíveis, parecia estar próximo do fim, apoiara-se na secretária, tinha as pernas presas, os olhos ardiam com o sal do suor. Permaneceu mudo durante uns minutos que pareciam uma eternidade, até que disse com uma voz calma:
- Eu cá não sou bingativo, mas quem mas faz paga-mas. Chefe de turma, bai-me buscar um capote, está um frio do carago!
Deu inicio às tradicionais chamadas orais, mas desta vez não aceitou os voluntários, o Horrível, o  Peida-Gorda e o Pitosga que tinham sido escalonados para fazer o TPE, uma forma que a turma arranjara para dar a volta à questão e não ter que estudar muito, e assim ganhar uns valores extra pelo ato de coragem. O Menau abriu então à sorte a caderneta, gesto que há muito não acontecia, e a fava saiu ao Peidão!