miguelbmiranda@sapo.pt
315 estórias

Sunday, April 10, 2011

Um pincel fora de prazo - I


Camarada Choco
Aventura 78
 O Pintor Alienado

Trabalhamos sobre o sonho, a alucinação e a memória. É um território em que a imaginação e a realidade estão ao mesmo nível, ao ponto de já não serem capazes de os distinguirem. E foi assim que o  pintor alienado viu um rapaz atlético, alto e espadaúdo, de olhos vivos, capazes de engolir todas as fêmeas presentes no Festival da Canção do Intendente. Tocou ao de leve no reflexo e com a ponta dos dedos os lábios. Ainda teve tempo de ver os olhos rasgados a luz, e um sorriso de marfim. Desviou o olhar da água da retrete e ficou de frente para o espelho. Foi envolvido por súbitos clarões, fragmentos curtos de relâmpagos, fantasmas reais, que o transformaram a preto e branco, com muito grão, num espectro psicótico, a roçar o niilismo, mergulhado na escuridão angustiante dum WC duma taberna da Brandoa profunda, partilhando a solidão dos sentimentos. Havia no pintor alienado uma inquietação, não se insinuava qualquer linha de fuga imprevista, estava num estado de insanidade porque tinha tomado consciência da humilhante situação a que chegara. Os segundos passaram um a um. Olhou para o velho patético com cor de caixote de fruta do MARL e cabelo de caniche tinhoso que estava diante de si, e não fez um gesto, não disse uma palavra. Sentou-se na retrete e tornou a observar o seu reflexo. Para ele o amor era um lugar estranho em que o tempo era medido pelo número de cuspidelas.  O pintor alienado pertencia a uma casta incapaz de navegar em espaços não analógicos. Já não via as coisas mas o espaço em volta delas e por isso sentiu que os seus sentidos estavam a perder a unidade, a sombra escura nos seus olhos luminosos mostravam que o sentimento era carnal. Era uma das mais sérias crises de dimensão psicanalítica.
- Não aceito o que me foi oferecido, - gritou, levantando-se e pondo as mãos nas hastes de veado com que a alucinação da andropausa o tinha presenteado.
Acreditar nestes estados psicóticos tinha sido um imperativo de sobrevivência deste ressabiado da Brandoa profunda com laivos de doutor. A convulsão era agora muito maior que a vida, e por isso tirou rapidamente o telemóvel clandestino das cuecas borradas e discou o número. Deu dois toques e desligou.
- Não…este não, vou escolher outro.
Olhou pela janela e viu um sol branco. Reviu-se na sombra de uma árvore centenária. Estava sem nenhuma perspectiva de integração. A palidez da pele do homem sem rosto não deixava dúvidas de que já não havia um pingo da pouca razão que os genes lhe tinham dado. Saiu da zona do cagatório e viu a sua sombra passar por si arrastando os pés pelo soalho. Sonhou com palavras, imagens e cores de um tempo que nunca existiu, onde uma mulher emergia súbita e gentilmente da leveza do ar, lhe sussurrava ao ouvido com frases que corriam, paravam, recuavam, avançavam, desapareciam e reapareciam. Foi acordado pelo flato de um dos colegas do bagaço. Estava tudo desfocado, desproporcionado. Sentiu um estranho, não corpóreo, porque não podia tocar, mas que podia escutar e encarar como um concorrente. Viu então a imagem da vítima do momento, e foi com  uma vigorosa alucinação que o tonto interminável, habituado a viver no lixo, tocou na tecla de chamada do telemóvel clandestino, cheio de dedadas acastanhadas. Quando a nova vítima da mais alta inutilidade da Brandoa profunda atendeu, as emoções espontâneas do pintor alienado de paredes da Brandoa fizeram-no gritar frases soltas com estrondo, levadas por um vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro de uma retrete. Revelou-se neste momento alguém com um Q.I. abaixo de anémona, um lixo insano.