Comandante Guélas
Série Colégio Militar
Os
Meninos da Luz viviam em permanente diálogo com a vida e com o mundo, foram
poucas as situações que não abordaram, eram fazedores do impensado, por isso
recorriam a atividades próximas da poesia. Somos gigalôs das memórias, porque
estas estórias têm a participação de muitos. Se nos dias de hoje formos ao Bar
Spell e King na Formação ainda sentimos o cheiro a cavalo. As aulas
de equitação no Colégio Militar eram sempre um campo de batalha em que todos os
Meninos da Luz compreendiam a gesta dos seus violentos antepassados. Tudo começava no Largo da Luz onde seguiam em
procissão bichos com os carretos gripados, em direção à Azinhaga da Fonte, no
fundo da qual entravam no colégio e no respetivo picadeiro. Davam coices nos
soldados, nos colegas e faziam riscos nos carros. E às vezes extraviavam-se e
só apareciam lá para os lados de Monsanto na zona da Marreca. Para se conseguir sobreviver a uma aula de equitação a ordem
de chegada era fundamental, e quando o toque da corneta avisava o fim da aula a
turma saia a galope em direção ao picadeiro.
O Cabedo estava a
fazer galopes curtos com o Flipper quando os alunos chegaram. Alinhados numa
das paredes do picadeiro, guardados por soldados estavam as cavalgadura
militares do costume: o Salame que mordia, a Nono, uma égua mansinha que
gostava de dar coices, a Rata, uma égua branca que dava cangochas quando lhe
tocavam na garupa, o Quadrado, de cor castanha e feitio muito vivo (partiu o
braço ao 80), o Alfange, uma máquina a disparar coices, o Eusébio, que
tinha mau feitio, o Patacho, o Vapor, que num desfile com fato de
cerimónia e com a presença do Presidente, quase lhe tatuou uma ferradura na
cara após uma valente cangocha quando a excelência saía do carro, a Quirina, a
Tangerina o Único, o 31, o 48, enfim, tudo bons quadrúpedes.
O
581 e outros camaradas tiveram um dia uma aventura alucinante, quando receberam
ordens para levar uns quantos cavalos ao hipódromo do Campo Grande. Saíram pela
Estrada da Luz,
embrenharam-se pela 2ª circular, misturando-se com o trânsito caótico e na zona
do Estádio Universitário, com bermas largas de areia e ervas, o instrutor deu
ordem de “galope”, e foi nesta altura que o cavalo do 581 desembestou, só
parando quando chocou contra a rede que delimitava o espaço desportivo. À
chegada ao local ainda houve tempo para patinagem artística nos paralelepípedos
que forravam a estrada.
- Montar – ordenou o
Jaimito dando início à aula de equitação, colocando-se estrategicamente num dos
cantos do picadeiro, e ordenando ao soldado para se posicionar no canto oposto.
Nem deu tempo à
rapaziada para se sentarem adequadamente, ergueu o chicote no ar e iniciou as
hostilidades. Os quadrupedes arrancaram em debandada, um dos instruendos
depressa ficou pendurado, com uma mão no arreio e com um pé no estribo, até que
um barulho ensurdecedor ecoou pelo picadeiro, sobrepondo-se aos gritos e
relinchos. O 480 acabara de ceder à força centrífuga.
- Quem é que mandou
apear? – Gritou o Jaiminho com um ar de macho, aproximando-se do aluno
- Eu não aguento mais, meu capitão.
-
Já lá para cima.
De
novo o chicote a fazer gritar o ar, o 480 saiu agarrado
em desespero ao cepo da sela.
A aventura do 317 também foi digna de
registo, pois recebera ordem do instrutor para ser o fila-guia, e descer as
bancadas do campo de futebol com o Quadrado, depois de ambos terem levado,
ainda dentro do picadeiro, uns valentes coices da Nono que aparecera, sabe-se
lá porquê, e após um galope muito confuso, de frente, aproveitando a ocasião
para cumprimentar o colega e o seu jovem cavaleiro. O cavalo do 317 estava
zangado com a “rapariga” e quem levou com o mau feitio foi o aluno, que sentiu
nas costas o chão duro do campo da bola. O 467 era um ás na “arte de bem
cavalgar toda a sela”, por isso tinha sempre a mania de inventar, recebendo com
frequência um cartão amarelo do instrutor:
- O senhor está a mijar fora do
penico!
- Galope - ordenou o
Dores. – Tirar os pés dos estribos, pôr as rédeas ao pescoço e as mãos em cima.
E no caminho estava
um cavalete que tinha de ser ultrapassado, e quando o Vinasse aterrou de costas
na serradura, limitou-se a dizer:
- Senhor aluno,
agarre o cavalo e monte!
No fim ordenou:
- Vão dar uma volta
a passo pelo exterior para secarem os cavalos!
Os Meninos da Luz
eram rapazes cheios de sonhos, de
nobres, galantes e vãs fantasias com as Meninas de Odivelas, por isso
deram início a uma temerária aventura ao estilo D. Quixote: um ataque frontal à
metade da turma que se encontrava a praticar esgrima no exterior do ginásio.
Ouve um minuto de silêncio quando ambos os grupos se encontraram à distância.
Após este tempo de reflexão a turba de quadrupedes comandados por bípedes
sentados nos seus costados lançou-se com furor num galope em direção à floresta
de fatos-de-treino acastanhados com o emblema da Barretina no coração.
A estória acaba na
outra ponta do colégio com um docente a distribuir ponteiradas a bípedes que
tinham imitado em coro o relinchar de quadrúpedes durante a aula de química
prática:
- É só gado, é só
gado, - gritou o Semita.
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