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315 estórias

Monday, December 07, 2015

Adeus Colégio, Olá Colégio!



O Comandante Guélas
 Série Colégio Militar

Os tempos de hoje não são os tempos de ontem, por isso os tempos vividos raramente são os desejados. O Colégio Militar já não é o que em tempos foi e nunca mais será o que era. Depois de muitos anos em que se pensou que iria morrer, ele renasce, qual fénix que se ergue das cinzas, e mostra o seu poder através destas estórias. Assim, o Alguidar proclamou a noite de domingo, 13 de Setembro de 2015, com a arrogância do conhecimento, saturado de vertigem política, não sabendo que é a consciência da ignorância que faz avançar o mundo:
- Hoje é um momento histórico!
Dizia então o ministro que cem meninas iriam dormir, pela primeira vez, nas instalações do Colégio Militar, desde a sua fundação em 1803, tendo as mais velhas direito a quarto individual, e as mais novas a camaratas de dez camas. Santa ignorância, o 75 já tinha levado para uma cama, montada na sala do Carioca, a Margarida, que havia de ser jornalista, que Deus a tenha, sua convidada para o Chá Dançante; e também para os lados do campo de aeromodelismo já tinha havido um encontro amoroso entre Meninas de Odivelas e Meninos da Luz. O Alguidar, segundo um dos seus muitos assessores, era um homem de apetites complicados, que queria sempre isto e aquilo, nunca estava satisfeito, senhor de um traseiro melancólico que geralmente decorava, na praia, com uma tanga onde se desenhava um Rambo. Desde que o 281, o Tofa, e outros Meninos da Luz, quase lhe tinham dado um ramalho na Invicta, andava sempre alerta, ao contrário do Bivar que, umas décadas antes, em estado de cio, resolvera levar uma amiga para o gabinete e, com as luzes acesas, brincaram aos polícias e ladrões, ele de botas altas e ela de cuecas atrevidas, com o Chico porteiro a assistir desesperado, naquela noite fria, a tentar desviar as atenções dos cidadãos, ao mesmo tempo que telefonava desesperado para o Maná, agora no papel de oficial de dia, o tenente Ananás, a beber umas bejecas na Soca, pedindo-lhe para avisar o sub que o seu filme só para adultos estava a ter transmissão direta para os meninos rebarbados. Quando o ministro puxou a bandeira do colégio e mostrou ao mundo, um milhão e duzentos mil euros depois, a placa que oficializava a entrada das Meninas de Odivelas no espaço anteriormente reservado aos Meninos da Luz, acabava de convocar o passado. “Momento Histórico”? Momento histórico era se tivessem encontrado o túnel que os ligava a Odivelas, que as traria de manhã para as aulas, e as levava ao fim do dia de regresso ao ninho, com a rapaziada desaçaimada no seu encalço. Com este gesto encerrou o Colégio do Semita (“Psché moço, num monte de esterco fazes nódoa”); do Moreira (“Bós sois piores que os ciganos”), o barbeiro Sabino (com a sua fabulosa unha de 10 centímetros, que o pessoal via pelo canto do olho quando lhes cortava cuidadosamente o cabelo); a roupeira Cassilda, casada com o Labareda, irmão de outro vigilante, o Badalo; o Bivar com o cio a cavalgar no gabinete atrás de uma visita, com o Chico Porteiro desesperado a ver a festa; o Patronilha e a sua fabulosa Júlia, que nem com uma almofada na cara servia para excitar a imaginação dos imberbes; acabou a Rosa; foi-se a prateleira de sonho da Antonieta; o Bata (Bata-Man), adeus Falcão (“piu, piu, és burro”), Menau (“eu cá não sou bingativo, mas quem mas faz paga-mas”), o padre Valdomiro (“Baldomijo”), Dom Dom, Pato Marreco, o tenente Mota, o Camões, Lufas, o Marinho, o Ferreirinha, o Fufu, o Didi, o Pina Lopes (“se marcares o alvo num mapa com o lápis rombo, as bombas caiem ao lado”), o Pequito, o Galo (“ó ordenança o meu cavalo já está arreado?”), o Teatcher, o Mexicano, o tenente Aparício (“tou-me cagando, mete a requisição na caixa”),  o PV1 e o PV2 (“Eh pá, esse desenho está mais feio do que a ponta da teta de uma preta”), Dores, Porky, Carioca (“ó C. lambe-me a pichota”), o Jaiminho (“Quem é que te mandou desmontar”?), Perdigão (“xisto com pernas”), o Bisnau, o Teatcher, o tenente Frade, o padre Américo (“daassseeee”), o Dias Gago (“ó-ó-ó di-di-as-ga-ga-go”), o Pato Marreco, o Tabi (“ó T. chupa aqui”), o Pop, o Isménio Tadeu (“deixo o eléctrico arrancar para depois ir atrás dele e apanhá-lo”), o Animal, o Santola, o Feio, o Gunga (“alguém sabe desenhar um infinito de joelhos?”), o padre Peixoto, o Valentim (“ó senhor aluno tome lá dois supositórios de Buscopan que isso passa”), o Caspa, o padre Castelão,  o Coelho, o João Pequeno, o Nunes (pai da Rosa, que fazia a ronda da noite), o Dias Gago, o Santos, o Fixó, o Meia-Lua, o Abílio, o Miranda (“bom dia menino”), o escultor Brito (o Judas) o Zé Pereira, o Augusto Violante, o Leonel, o Carlitos, o Rosário, o Dentinho. E como no Colégio Militar todos fazem parte do Batalhão, até equinos, que lá deixaram os ossos, são parte das memórias de muitos: Salame, Nono, Tangerina, Rata, Quadrado, Alfange, Eusébio, Patacho, Vapor, Quirina, Cabeça de Mula, 48, o Flipper, assim como as aventuras a eles associados, como a ida ao Campo Grande pela Segunda Circular, com os cavalos à carga pelas bermas de areia, assustados com os carros que lhe passavam razias, tendo um deles chocado uma rede, e outros feito ski nos paralelepípedos mais à frente, e tudo isto com meninos fardados de cotim em cima do lombo; ou descer em fila as bancadas do campo de futebol; ou ir atacar os colegas da esgrima que treinavam no exterior, com uma carga de fazer inveja ao John Wayne. Enfim, coboiadas impensáveis nos dias de hoje onde a rapaziada está ligada por GPS às mães, que no Colégio Militar antigo não passavam da Porta de Armas, perante o olhar autoritário do Chico e o olhar baboso do Bivar, enquanto os filhos estavam no outro extremo da capital, numa qualquer sessão contínua no Olímpia, chegando uns a trazer alguns cartazes que foram afixados na vitrine que ostentava os pontos do “comportamento”; ou a vender bilhetes forjados na tipografia para o “Genesis”, à porta do Pavilhão Dramático de Cascais. Nunca terão o prazer de ver um professor de equitação, de óculos escuros, a entrar de De Tomaso Pantera amarelo e a acelerar até ao picadeiro como se estivesse no autódromo do Estoril, como fazia o Cabedo. Tivessem os Meninos da Luz de hoje posto a mesma cabra que puseram na sala do mestre escola, o Mosca, no gabinete do Alguidar, e ela também teria comido tudo o que havia no gabinete, incluindo os papéis das decisões…e as cuequinhas do ministro, e agora o Comandante do Corpo de Alunos, tal como fazia o Estorninho, continuaria a poder puxar as orelhas de uma turma inteira e a ameaça-los de que iriam ficar detidos no fim de semana, porque pôr um rádio com o volume ao máximo debaixo do estrado onde o professor de Geografia, o Raposo, ia dar aula, era inadmissível naquele colégio com tantos pergaminhos, onde se incluíam as requisições amarelas (“1 camisa de vénus verde”), que obrigava o Manuel, baixinho e com dois dedos curtos numa das mãos, a saltar com destreza, tal como os “Gafanhotos” (“o Dario é o Einstein da Ginástica, consegue transformar merda em matéria” – Reis Pinto), o balcão da cantina, e correr furioso atrás do requisitante. Fica a imagem do Zé Pereira (41 anos de serviço) a deslocar-se a todo o vapor, com um bloco de notas na mão, em direcção ao prevaricador que ousara atirar um copo ao chão, provocando o tradicional grito “PJ”, confrontando-se sempre com um pagamento solidário (“1/50 avos de um copo”). Juntam-se a estas memórias o Datsun 120Y azul-escuro, cheio de mossas, do Perdigão, o Toyota bege do tenente Mota, o Vauxhall Viva, guiado por uma bóina, o Fiat Mirafiori do Dores, o Volvo azul do engenheiro Grijó, o Ford MK1 azul cueca do Chulógrafo, o Citroen Dyane do padre Viana, e muitos outros bólides colegiais. Estamos num tempo em que para se ganhar uma barretina basta saber tocar à gaita, e fazer disso profissão; ou ter o feitio de um coelho, e depois inscrever as crias no colégio. Mas não se encerra uma época sem contar que o tio Zé Júlio, cujo posto era tenente-Coronel, entrou um dia na Soca à beira de um ataque de nervos, com os pés da mesma cor dos do Sissé (o primeiro mano do batalhão), as calças civis a arrastarem pelo chão e todo ele a tresandar ao perfume da Dallas Cowboy, a dama do Bairro Alto que fez as delícias de alguns meninos que se encontravam nos “5 Estudos” para os exames do 5º ano do Liceu, no longínquo ano de 1976, e arreou de imediato no aspirante Costa que se descontrolara a rir, ao mesmo tempo que o encharcava com remédio para a “Tinha”, estragando-lhe a camisa de marca. E esta estória encerra com o Ananás, que um dia foi ao baile de gala fardado de capelão e andou de mesa em mesa a distribuir bênçãos.
O Colégio Militar continuará a definir hierarquias e domínios, mas mais do que isso, continuará a criar espaços de amizade, solidariedade, aprendizagem, iniciativa e coragem, mesmo que nos tempos modernos o 83 seja agora o 283, depois de ter estado ausente um ano noutro colégio por ter medo dos descendentes da Salame. A Luz foi mais forte do que tudo!







Friday, November 13, 2015

Camarada Choco 94 - A Rainha de Copas



Camarada Choco

Aventura 94

Esta é uma estória que trabalha de orelha em orelha, com relações complicadas num tempo e numa parte complicada da Amadora. Por isso o local onde as personagens trabalham é contraditório, de luz, de paixão, de confusão, ou seja, um caos ligado a uma marginalidade que, apesar de tudo, tem os seus princípios.
- Não, não, - gritava o único motorista da Escola para Desaparafusados da Venteira que guiava em pé, mexendo-se no assento, onde se deixara adormecer, depois de ter estado a contar, não carneiros, mas os Desaparafusados que a professora Raquete e o stor Pobre insistiam em levar para o contentor.
Na cabeça dele desenrolava-se uma cena de chicotada ao estilo das “Sombras de Grey”, e tudo porque riscara violentamente a carrinha, que ousara levar até junto dos cavalos, sinal de que desobedecera às ordens da chefe, uma “doutora sem canudo” com valores fluídos, que já só tinha sonos sem sonhos. Valia-lhe o Primo do Choco, um ex-militar que tinha vindo de férias, e que costumava criar-lhe um espaço de possibilidades dentro do autocarro com plataforma. O ambiente estava tenso, o Pitrongas tinha comido as bananas do Fangio Espástico, não se sabendo se se incluía a fixa, já traumatizado por andar com a cabeça pesada depois da Carolina Caracol o ter trocado por outro com mobilidade autónoma. Mas havia algo a formar-se lá para os lados do Bar.
- Espatinha, quero um café duplo, - pediu a Vitaminas, batendo com o punho fechado, e pondo-se em pé em cima do balcão.
Por breves momentos todos sentiram raios, coriscos e trovões, mas mesmo assim ninguém se sentiu iluminado pelos relâmpagos, excepto a terapeuta Giulietta que sentiu a aproximação de um mecânico vindo por detrás e abraçando-a com as mãos besuntadas de óleo.
- I have a dream, - disse a fisio abrindo os braços, e continuou. – Sonhei que um pensamento preso no lado errado da minha cabeça se soltou. Já se questionaram porque é que ainda ninguém se deu ao trabalho de estudar a mente da Empregadora? Com tantos psicólogos, o que é que eles andam a fazer? Pelo menos um está sempre a tocar à guitarra, garanto-vos!
A Vitaminas estava tão repleta de magnetismo, que a terapeuta Giulietta dizia já ser uma consequência das solhas confecionadas pela mestiça, por isso o alarme de incêndio, ao qual tradicionalmente ninguém ligava, acionou-se, trazendo para junto de todos a Madrinha, vista na Festa Medieval em formato de múmia.
- O que é que vem a ser isto, não há trabalho para fazer? – E olhou para o Frade. – Já te disse que tens de dar o exemplo.
A chefe máxima da Escola para Desaparafusados da Venteira era uma pessoa que pensava sempre em coisas impossíveis, pelo menos doze horas por dia, porque as outras doze estavam controladas pela medicação. E a conspiração prosseguiu, no primeiro andar falava-se à porta fechada na "Távola Redonda das Terapeutas":
- Um sindicato, vamos fazer um sindicato, - disse a Vitaminas tirando um papel do bolso e lendo o conselho da Rainha de Copas da Alice - “Primeiro corta-se a cabeça, depois faz-se o julgamento”. – E continuou com os enigmas. - Vou mandar trancar todas as portas, excepto a que tem a chave dourada!
Tirou dum saco uma garrafa de plástico, pôs copos em frente às amigas e deu-lhes goles de chá fora de prazo, vendido pela Chinesa:
- Temos de alargar o campo de ação pela força das circunstâncias! A nossa adversária é controlada por algoritmos e emoções destrambelhadas, por isso nunca quer saber o que se passa exatamente.
E para agravar o algoritmo, alguém ousara atender o telefonema da Madrinha para o Bar da Espatinha em termos inapropriados:
- Churrasqueira da Brandoa, boa-tarde!
Estavam num sítio onde havia sempre vozes e ouvidos por perto, de Desaparafusados e Aparafusados, um diálogo de surdos e mudos que encapotava ruídos, que não deviam ser subestimados. E a prova viva da terrível influência desta atmosfera existencial estava na sala da Brazuca: o Nélinho já revirava os olhos tão bem, ou melhor, do que a Mata Cágados, e já chupava charutos “Habanos” compulsivamente, à vista de todos! Decididamente as fronteiras formais não faziam parte deste espaço que se dizia de reeducação. De repente todos viram sair da orelha esquerda da candidata um raio, que desenhou uma linha reta na sala, e fez voar todos os papéis, ao mesmo tempo que abria com estrondo as janelas, entalando as terapeutas de Faro entre a parede e a divisória, que se deslocara com violência.
A primeira medida mostrava já as diferenças:
- Estão desde já proibidas de impingir o vesgo à terapeuta Giulietta, - gritou.
Ouviram uma voz destoada e áspera, e por isso ficaram todas num estado sem tempo, imóveis e mudas, sem vontade e sem pensamento.
- “Quem está aí”? – Perguntou alguém do fundo do corredor, imitando Hamlet.
A candidata riu-se com satisfação, deixando cair uma lágrima, só uma, que caiu indefinidamente, fazendo-a aperceber-se de que estava no caminho certo. Só um passo leve no corredor quebrou o silêncio inquietante e perturbador.
- Frade, outra vez fora da sala? Já te disse que tem de dar o exemplo. Como castigo vais às compras comigo e com a Fininha, preciso de colaboradores para empurrar os carrinhos do Continente, e porem os produtos no tapete!





Friday, October 02, 2015

Alto e pára o baile!


Camarada Choco
Aventura 93


Aproveito a estadia no Fernando da Fonseca, para onde me levaram já no Red Line, depois de vários meses a gritar em linguagem gestual que estava com dificuldades em usar a minha piroca, para fazer uma transmissão direta ao meu padrinho, tentando convence-lo a atualizar o dia-a-dia do nosso clube, “Os Tubarões do Seixo”, a mítica equipa da Venteira cujo “i” cai à entrada do clube. Antes de me ligarem aos tubos estive lado a lado com a dona Etelvina dos Santos, uma velha de noventa anos que rosnava, e por vezes confessava que estava à espera que a mãe a viesse buscar, e que o médico das urgências teimava em chamá-la pelo altifalante. Por esta altura deve estar no frigorifico! Quando o soro começou a entrar na veia consegui estabelecer a ligação, e a estória apareceu em alta definição. Começo por agradecer à pedagogia antiga por ter dado primazia à “aprendizagem do cagar sozinho em toda a sela” do que o “saber escrever o nome próprio em maiúsculas no final da escolaridade obrigatória”, como exige hoje o Ministério da Educação aos terapeutas dos Desaparafusados. Os rabiscos que sempre fizemos nos papéis, que ainda servem para publicitar uma “Venda de Natal” no Parque Central, uma espécie de limpeza de garagem, sempre obrigatoriamente concorrida, porque a cotação em emoção de um Desaparafusado está sempre em alta, e dá emprego garantido aos familiares dos decisores, descrevem toda uma vivência, que é urgente deixar para memória futura, antes que as “santinhas” me fritem de vez a micro mioleira. Eu sei que sou um manipulador, troco afetos por comportamentos que me são mais confortáveis.
- Alto e pára o baile, - gritou alguém, 
A porta da Escola para Desaparafusados da Venteira abriu-se com estrondo, levada por um vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior de uma alma atormentada. A Dra. Sem Canudo vinha decidida a atazanar a vida de todos, trazendo a reboque espíritos plasmados em enteados, primos, sobrinhos, e vá-se lá saber quantos mais familiares, que naturalmente não existiriam se o Tegretol fosse tomado a horas certas. Usava as usuais predições apocalípticas, sobre a ruína que implicaria serem outros a decidir.
- Dra. Catana, não há festa para ninguém, diga aos cavaleiros, reis, rainhas, de copas, de paus e de espadas, que a festa “Medieval” tem de ser mudada, porque uma minha enteada, …perdão, os ordenados dos meus oprimidos, e dos seus amigos, não estão cá nesse dia, e ainda por cima ela já comprou o fato de “Padeira da Venteira”.
Lá fora, alheia a todas estas movimentações, a terapeuta Julieta acelerava no bólide, tentando assim despachar o carregamento do telemóvel da Ovos Moles, cujo aparelho resolvera desligar-se, pondo a sua proprietária à beira de uma travadinha.
- Prego a fundo, não posso ficar desligada do mundo!
Junto ao passeio o grupo das terapeutas esperava pelos restantes, para o cafezinho da praxe, o momento terapêutico mais importante do dia, uma mesa redonda que obrigava sempre os presentes a uma introspecção em voz alta, cujo tema variava todos os dias. O último, “espelho, meu, espelho, meu, quem é mais desaparafusado do que eu”, tinha revelado verdades assustadoras, desde uma terapeuta inscrita desde bebé como cliente de um centro de profundíssimos, por ter passado uns tempos da infância com a cabeça à banda, um psicólogo bombista, uma com marcas do Além, outra que nasceu tão cabeluda que foi logo ao cabeleireiro, um stor com várias travadinhas no percurso escolar, etc., etc. As confissões foram tantas que a partir de uma certa altura a mesa começou a abanar, pondo em alerta um casal de velhotes que tentava conseguir sobreviver a mais um dia com a perspectiva das pedras da calçada alteradas. Mas a ausência mais notada era a do Frade que, por ser muito próximo da Dra. Sem Canudo, resolvera ir tomar o café na intimidade do gabinete para “dar o exemplo”, como lhe pedira a madrinha.
Foi o cheiro a bafio da Tigreza da Venteira que conseguiu tirar a Dr. Catana da sua próxima viagem à terra do Che, não sem antes ela gritar com o punho no ar:
- No passará!
As imagens das possíveis decisões que teria de tomar, foram desde o arremessar a chefe pela janela, até assá-la num espeto medieval, com uma maçã na boca. Se toda esta confusão habitual em vésperas de eventos levará a momentos orelhudos futuros, não sabemos, nem queremos saber, este foi indubitavelmente o salamaleque com que a exótica e desconcertante coqueluche da Venteira delimitou, mais uma vez, o seu território. Mas encaminhavam-se nuvens negras em direcção à escola da Venteira: alguém, vítima dos efeitos secundários da medicação que andava a tomar, vinha apresentar a sua candidatura, depois de uma das cadeiras do poder ter ficado vaga devido aos condicionalismos da existência!


Tuesday, September 15, 2015

A Maternidade da Luz




Comandante Guélas

Série Colégio Militar
Fomos radicalmente influenciados pelo colégio, todos sabemos de que palavras e imagens se compõem o pensamento de um Menino da Luz, a nossa formação moral foi criada por pessoas que existem no nosso passado e que cabem no nosso presente. Não sabemos o que agora vai acontecer, mas sabemos o que nos preocupa. Nas décadas de 60 e 70 dormíamos uma noite por semana em casa e seis no colégio, por isso as novas gerações nunca compreenderão porque é que a Rosa foi a nossa ninfa, e em casos agudos a Júlia, a mulher do Patronilha, ou a inesquecível Listete e a sua fabulosa cabeça que faria a vez de uma qualquer almofada, a Cassilda, ou a sensual coxa da biblioteca. Nos tempos que correm os ratas só sabem adormecer com o barulho do silêncio, e não ao ritmo de uma desgarrada, não de flatos, que isso é para meninos, mas sim de exuberantes peidos, dados por jovens desaçaimados, com as barrigas cheias de Amarelo nº 2, em que a maioria da camarata, um espaço a transbordar de vida, participava. Hoje em dia até nas pinturas os pais estão presentes, muitos dos putos já vêm pintados de casa com as cores recomendadas pelos dermatologistas, coisa inadmissível nas décadas em que o Moca era rei, em que tínhamos o direito de sentir a tinta plástica a impregnar-se na pele, o ardor da Colgate nos tomates, o frio dos guaches naquelas escuras noites de invernos rigorosos, e os mais sortudos sentir um pincel nº1 carregadinho de tinta plástica branca pelo cagueiro acima, tradição que nos protegeu para sempre das alergias e outras maleitas da geração que agora se tatua indiscriminadamente perante o olhar das mamas, que nessas alturas estão estranhamente ausentes. Nos anos setenta elas só podiam entrar no colégio nas comemorações do 1º de Dezembro, mas não saiam do primeiro andar dos claustros, causando mesmo assim calores libidinosos aos jovens do rés-do-chão, e muito menos interferir, como é habitual nestes estranhos tempos, em que já foram vistas artistas a ir buscar os filhos às formaturas para os tirar dos “malefícios” do sol. E também estão autorizadas a participar nos piqueniques colegiais, em que só o Bolicao, já descascado, é permitido, em vez da lata de atum, do cigarrinho e de umas cervejinhas adquiridas nas visitas de cortesia ao bar de oficiais nos claustros ou à Soca. Seis dias ajudavam a criar cumplicidades, amizades e camaradagem. Quem não se lembra dos concursos de gosmas, que deram origem a fabulosas estalactites, capazes de competir mano a mano com as colunas de Palmira, e que ficaram suspensas durante anos letivos seguidos, cujo recorde saiu da boca do 224? Ou das esgalhações coletivas de frangos durante as aulas do Pequito? Ou dos despiques de mergulhos para as camas, de cima dos armários? E já nem na Instrução Militar os oficiais ousam gritar como o tenente Silveira, “em sentido nem mexe, nem que passe um car…pela boca”, um gordo de óculos, sempre com botas de montar, que nunca se soube se para montar ou para ser montado, que costumava pagar jantares à rapaziada, colocando-a em permanente estado de alerta, porque com toda a certeza que estará uma mãe por perto que irá a correr para o “Livro Amarelo da Aberta e do Alguidar”. E até com a ideia romântica de um “Túnel” a ligar às Meninas de Odivelas conseguiram acabar, trazendo-as para um novo edifício junto à rapaziada, já baptizado como a “Maternidade”. As saídas furtivas do 89, do 165 e do 376, de táxi (se a tradição se mantivesse os seus sucessores iriam de Uber), em direção ao “El Tesón” não passam agora de lendas guardadas para memória futura nestas pequenas estórias em que todos participámos, porque vivemos num tempo em que as causas são discutidas e os efeitos parecem imprevisíveis, que nos dá a sensação de saber tão pouco. Só com a evocação do passado se pode assumir plenamente o futuro, por isso a parte do 4º E que não teve aula do Semita neste dia 16 de Outubro de 1974 desembestou em direcção à piscina, não sem antes ir arrumar os livros, um empecilho à brincadeira, à sala ocupada pela outra metade com inglês, que estavam entretidos a expectorar, alternadamente, para cima do 300. O 191 tocou com humildade à porta e mal ela se abriu, entrou uma turbe desenfreada que em segundos fez o que tinha a fazer, e saiu tal como entrou. Todos? Todos não, o 151 atrasou-se e teve de tocar novamente. Mas quem correu foi o professor Mota, e para a porta, cujo corredor esvaziou de imediato, não sem antes todos gritarem, “Didi, coça aqui”! A chuva dos últimos dias tinha enchido parte do espaço dedicado à natação em junho, por isso o 305 (Vinasse) foi de imediato atirado lá para dentro, ficando com a água pelos joelhos. O 120 teve pior sorte, mesmo reclamando estar com uma bronquite, a água chegou-lhe à cintura, por isso à noite estava fardado de pano porque encontrara a rouparia fechada. O Colégio Militar era totalmente imprevisível, um andaime com rodas que servia para pintar o exterior da sala de música durante o dia, serviu como sequeite durante parte da noite do dia 22, para o 125, o 136, o 151, o 157 e o 191. A brincadeira acabou abruptamente quando chegou a vez do 151 e o arremessaram, com velocidade excessiva, em direcção ao edifício em que o Carioca se esforçava por transformar canas rachadas em rouxinóis, onde o aparelho se desintegrou, não sem antes rachar um vidro e despedaçar outro, obrigando a rapaziada a uma fuga em direção ao geral, antes que a ocorrência fosse relatada por um vigilante ao oficial de dia, o capitão Peidinhas, senhor de um traseiro em forma de almofada.
No Colégio Militar sempre houve portas que se fecharam para sempre e outras que se abriram em lugares inesperados, por isso as queixas futuras irão ser contra as utentes da Maternidade, quando elas lhes invadirem as camaratas a meio da noite, e em vez de lhes darem almofadadas, chocalham-lhes as pirocas!  

Sunday, August 30, 2015

24 horas colegiais

Comandante Guélas

Série Colégio Militar



O Colégio Militar era o dono do nosso tempo, por isso só quem lá viveu é que poderá compreender esta partilha de fragmentos de nós, que nos dão um caráter único que continua vivo nas nossas memórias. E porque há memórias que nos acompanham desde muito novos, criámos uma memória que se confunde com o real. Na mística abundam as palavras “bondade”, “senso”, “equilíbrio”, “determinação”, “coragem”, “brio”, “dignidade“, “honra”, e agora finalmente “beleza”, com a entrada de raparigas. Era um espaço que fervilhava de vida, vinte e quatro horas por dia, sete vezes por semana, com atividades programadas pela instituição e outras dependentes do livre arbítrio dos alunos, desde um Mini a cair na piscina vazia, passando por banhos clandestinos noturnos, como o que ocorreu no dia 24 de maio de 1975, que teve um fim alucinante quando apareceu o vigilante, com uma parte da rapaziada a fugir para dentro do ginásio, onde aproveitou para exercitar números arrojados de circo. O Miranda já tinha andado numa roda viva a tarde toda, com o 191, o 125, o 124, o 151, o 601 escondidos em locais estratégicos da rua de acesso ao picadeiro, atirando para o alcatrão, à medida que passava, latas da Compal, cujo barulho o obrigava a investigar quais os responsáveis pelo delito; passando por “tarzans” das janelas da primeira ou da segunda companhias para cima de molhadas de colchões junto das peças de artilharia, ou “tunnings” com o carro do capitão Caetano, cujos artistas acabaram por ficar detidos para averiguações durante parte das férias grandes; ou atividades de sobrevivência, como por exemplo conseguir chegar à primeira formatura do dia, após o toque da corneta, onde os atrasados optavam sempre por fechar-se nas latrinas e simularem o parto de um valente cagalhão, com os restos do Amarelo do jantar do dia anterior, mas de uma maneira geral não conseguiam enganar os graduados, que davam pela falta dos petizes no pelotão e faziam de imediato revista aos cagadouros, que nestas alturas pareciam estar sempre em hora de ponta, e tal como o algodão a água transparente não enganava, davam ordem aos petizes para irem para a fila do pequeno almoço antecipado, um abrunho entre os olhos para cada um.
As aulas decorriam dentro da normalidade, neste dia onze de janeiro de 1973 quando o Ferrari, professor de Português, apareceu mal disposto e por isso começou a fazer perguntas pela turma, e como não obteve qualquer tipo de respostas aceitáveis, descarregou a raiva no último, o Escalope, ao mesmo tempo que gritava:
- Mas porque é que me esqueci da caderneta?
- Piu, piu, piu, és burro, - exclamava o Falcão, professor de matemática, com a boca colada ao ouvido do Cão.
- O senhor é um xisto com pernas, - classificava, já desesperado, o professor Perdigão com os olhos na cara do Elefante.
- Ó moço, tás ta rir? – Perguntava o Semita no laboratório de Química ao Esperma, que estava divertido com os erros do ajudante, o Morais, também conhecido por Ruca. - Anda aqui à pedra…num sabes nada, bais pra casa com uma bengala.
Numa sala de aula em autogestão, cujo professor tardava em aparecer, e o oficial de dia ainda não tomara uma decisão, jogava-se ao jogo das palavras, mais propriamente uma guerra de dicionários de todos contra todos.
No ano de 1974 o estaleiro das obras que decorriam para os lados do pavilhão de Ciências, transformou-se num espaço de atividades gímnicas não curricularmente previstas, cujo grau de perigosidade estaria hoje a ser comentado pela procuradora Joana, senhora de uma cara que fazia a mulher do Patronilha parecer uma deusa, como um local com um ambiente que “favorece o crime”, mas que naquele tempo servia para tornar a rapaziada rija e apta para enfrentar com determinação o futuro. Por isso quando o 607, o 125, o 653 e o 191 resolveram saltar ao mesmo tempo para a rampa feita de restos de madeiras, cujos trabalhadores usavam para subir com os carrinhos de mão e despejar o entulho num monte, esperando com isso uma reação do material que os colocasse no telhado do pavilhão de Desenho, com queda direta sobre o Pina Lopes, não estavam à espera que as tábuas se partissem com estrondo, atirando os petizes de pantanas, uns para cima de pedras, e outros para junto de madeiras que pareciam pertencer a faquires, semeadas de enormes pregos com as pontas viradas para cima. Durante meses os intervalos eram tomados de assalto por jovens cheios de energia, que agora seriam classificados como “hiperativos”, e em vez de haver somente nos cacifos das camaratas os frascos com o pó amarelo para acalmar as bexigas noturnas dos mijões, estariam cheias de xaropes de “Ritalina”, a droga legal da atualidade, que torna os putos toxicodependentes desde o berço. Nestes tempos idos dos anos setenta para resolver os problemas de comportamento existiam as apresentações à alvorada, as firmezas e outros miminhos reservados para a última formatura do dia. No Colégio Militar um acontecimento fortuito poderia marcar alguém para sempre, que o diga o Alves que em 1936 para lá entrou como soldado durante o serviço militar obrigatório, começando por ser o corneteiro de serviço, nunca tendo conseguido chegar aos calcanhares do magistral cabo Estrela que, segundo a lenda, soprava no instrumento como ninguém, a quem o 15 insistia em tapar a saída de ar de cada vez o maçarico se preparava para soprar na corneta para mandar levantar a rapaziada, ação esta feita com a carícia que caracterizava o espaço educacional, que ameaçava todas as vezes fazer-lhe saltar o corta palha, que já levara um coice de raspão quando tentara limpar a cama dum antepassado do Cabeça de Mula, que lhe tinha posto o nariz à banda. Em 17 de Novembro de 1943 casou-se definitivamente com os Meninos da Luz, e quinze anos depois ganhou a alcunha de “Mirna Loy” devido ao tratamento aos olhos que teve de fazer, cujos pingos davam a sensação de que o soldado passara a pintar os olhos, mania inconcebível para um estabelecimento de ensino que só admitia nas suas fileiras futuros candidatos a cobridores, e não rapaziada que gostasse de pegar de empurrão. Como o destino queria que o soldado ficasse para sempre lado a lado com o marechal, e Ele escreve sempre torto com linhas direitas, uma porta encravada na terceira companhia em 1958 só abriu quando o soldado Alves utilizou, como último recurso, a cabeça em forma de bigorna, ganhando com esse gesto de bravura a alcunha definitiva. E a fama era tanta que em 1994 no Porto, durante um desfile militar com a presença dos Meninos da Luz, o senhor Cândido foi reconhecido pelos antigos alunos, tendo sido obrigado a sair do anonimato onde o tentaram pôr, e acenar para a multidão de camaradas que o saudavam efusivamente:
No refeitório o Horrível acabara de ser intercetado pelo oficial de dia, o tenente Mota, que estava desesperado à procura daqueles que insistiam em imitar o barulho de um peidociclo de cada vez que se afastava, por ter sido visto a rir-se, e como tal ser, por convicção, uma prática diária hoje em dia nos tribunais quando se tenta arranjar um bode expiatório, culpado pelo “ruído de vizinhança”, acusando-o de ostentar um cabelo que se encontrava fora das condições prescritas pelo regulamento, sendo por isso intimidado a apresentar-se ao Ramalho:
- Mas o cabelo não está a tocar nas orelhas, - protestou o aluno pondo-se de pé em sentido, ao mesmo tempo que se apercebia dos risos maliciosos dos colegas.
Mas o estado psicológico do tenente não permitia argumentos desviantes, por isso agarrou, como contra prova, na trunfa que povoava o coco do Horrível, dando-lhe o aspeto de uma cabeça com o formato de um ananás, transitando a pena de imediato em julgado:
- Só sais com um pente zero!
Escovinha? Com o fim de semana à porta e as fêmeas a fazerem fila para serem degustadas pelo maior cobridor da capital? Mas, como um Menino da Luz prevenido valia sempre por dois, neste caso dois cartões de identidade, o que estava na vitrine, exposta nos dias de saída, e de acesso só autorizado pelo comandante da companhia oficial, ou alguém com os poderes delegados, após revista à farda, e o clandestino, que era usado nestas ocasiões, e que isentava da comparência na formatura, com saída imediata após as aulas de manhã de sábado, bastando para isso mostrar a segunda via na portaria, com saída imediata para a…cobrição, antevendo-se já para o Horrível um qualquer prémio colegial futuro pelos vários filhos, netos, clandestinos e afins! Mas nada se assemelhava ao mustache do 144/1888, o Pinto dos Bigodes que, quando foi abatido ao batalhão colegial, levou consigo um bigode tipo piaçaba, cujo uso, por ser moda na sociedade, era autorizado no Colégio Militar, e por isso nenhum Mota o poderia pôr em causa. Enfim, modernices impensáveis nos anos setenta, em que a moda piava mais baixinha, no primeiro ciclo o comprimento do cabelo não podia ser superior aos dois centímetros, limite que passava no segundo ciclo para os quatro centímetros e no ciclo complementar para os seis. Por isso, para sobreviver no sistema usava-se toda a criatividade!