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315 estórias

Thursday, September 01, 2016

Cebolada


Comandante Guélas

Série Colégio Militar


Nunca correremos o risco de não existirem mais estórias por contar. A memória é uma forma poderosa da experiência involuntária que muitas vezes regressa associada a circunstâncias do presente, o que a torna uma realidade para além do tempo, um fluxo infindável da consciência, com sensações físicas difusas, imagens, odores e sons, com tanta vivacidade e complexidade, que nos faz regressar ao colégio. Assim, os acontecimentos que o Cebola protagonizou numa atribulada noite, que terminaram com uma visita de pijama, não programada, ao gabinete do oficial de dia, viveram até agora guardadas algures no cérebro deste bravo que, apesar de viver em cativeiro, procurava sempre a liberdade. O cheiro do fumo de um cigarro qualquer naquela noite de despedida dum ex camarada na escuridão dos claustros, transportou-o para um fim-de-semana dos anos setenta, e para uma vontade imensa de um chuto de nicotina, que poderia ser uma realidade caso tivesse dinheiro. Mas os bolsos estavam vazios! Os Meninos da Luz eram profundamente humanos, ou seja, caóticos, complexos e contraditórios, cujos dias eram vividos ao ritmo de quem tinha pressa, nenhum obstáculo os detinha, por isso o Ricochete, o café da vizinhança ao alcance de um pequeno salto, foi rapidamente substituído por uma visita de cortesia ao bar dos cães nos claustros, bem conhecido do Gordini, do Cavalo e do Baginha. Quase ao mesmo tempo que o 360, entrou o soldado que acabara de fechar o estabelecimento, e que já se tinha despedido do Chico porteiro quando se lembrou que se esquecera duma “Gina” na parte de dentro do balcão. O Cebola ouviu um barulho atrás de si e deu de caras com um maçarico atónito, que pensou estar a sofrer os efeitos do whisky marado da garrafa do Aparício, que lhe davam a ilusão de estar a ver um dos artistas da revista mais vista na Luz. O 360 saiu em voo pela janela da casa de banho e trepou até ao telhado do pavilhão do primeiro e segundo anos. Nessa altura já não levava só um soldado na sua peugada, mas uma resma deles, que tinham vindo dos lados da Formação após o sinal de alarme. Corria solto por cima do telhado empurrado por um ar carregado de ódio, até dar de caras com uma claraboia, que mais parecia uma toca, para onde mergulhou como uma lebre, mesmo sendo um coelho. Fechou os olhos diante do esplendor intenso da dureza da queda, como a Alice do país das maravilhas, nem as rajadas de luz a amaciaram, sentiu as ondas gravitacionais do buraco negro e a membrana fina da anomalia quântica, estava envolto numa escuridão de caliça, pedaços de madeira, telhas, pregos, caruncho, antevendo um futuro muito pouco promissor, sabia que a sua cotação lá para os lados do São Pedro era de sinal negativo, o Cebola era vítima de um conflito insanável entre o vício e o dever, por isso o santo nunca colocaria um  Patronilha distraído a aparar-lhe a queda, na sua cabeça desenrolava-se um torvelinho de imagens, de tempos sobrepostos, veio-lhe à memória, como se fossem as últimas, as palavras sábias do Semita: “Moçooo, sabes o que é um Jericoacéfalo? É o que tu és….um burro sem cérebro”. E quando todas as recordações e sentimentos da vida colegial apareceram com o mesmo deslumbramento da primeira vez, através de portas que se fechavam e de outras que se abriam em lugares inesperados, o chão firme foi-lhe devolvido e, em vez do santo com barbas longas e amareladas junto aos lábios, apareceu-lhe um Moreira, um fâmulo vítima de incontáveis arrastões quando abria o armário de metal para dar início ao negócio clandestino das bolas de berlim, mil folhas, chocolates e outras iguarias colegiais: “Bós sois piores que os ciganos”. Sentiu um cheirinho malandro e uma ligação direta ao hipotálamo, “sedeusnossosenhoroajudasse”! Naquele impasse absoluto ouviu um rumorejar de vozes cruzadas de ódio e rancor, antevendo um futuro incerto naquela natureza hostil, por isso não se resignou a uma espera infinita. Nunca soube como, mas uns segundos depois o 360, que já colecionava no currículo colegial várias experiências limite, ia em pura liberdade pela Azinhaga da Fonte abaixo, com uma corrida solta, perseguido pelos ecos da guerra, que vinham longe. Entrou estilo zombie pelas latrinas da quarta companhia e desfaleceu aos pés do Primo Orelhas que estava a fazer a barba, e que o encaminhou para a cama, onde conseguiu vestir o pijama e dirigir-se para o oficial de dia, o Silveira, que tinha dado o alarme ainda o Cebola corria pelo telhado. Sem provas contundentes, ameaçou chamar a Polícia Judiciária Militar, e foi a partir desse momento que o 360 iniciou as negociações para se entregar. Por isso o mínimo que se pode exigir à Nintendo é que lance um ser virtual lá para os lados da Luz, um Pikacebola, porque tudo isto não se deve a uma qualquer tecnologia, mas sim à força e à história dos Meninos da Luz, e à partilha deste segredo longamente guardado.
- Este rapaz merece um 20 a Educação Física, - foi o único elogio que recebeu no Conselho Pedagógico, dado pelo Lâmpada Fundida, o tenente Dario!