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315 estórias

Thursday, July 21, 2011

Um pincel fora de prazo - III

 Camarada Choco
 Aventura80
Só "Joventude"
  
O Pintor acordou sobressaltado e sentou-se na cama ofegante e cheio de angústia. Sonhara com a surdidez do bordel onde nascera. Acendeu a luz e viu a sombra das malas que lhe tinham posto à porta. Tocou na testa e pareceu sentir duas proeminentes pirâmides absolutamente distintas. Olhou para o espelho do apartamento acanhado, em que nem os seus próprios fantasmas cabiam, e nem consolo estético teve. Em cinquenta e muitos anos de vida não tinha ido a lado algum, a Brandoa estava-lhe impregnada na pele. A seu lado dormia a EMA, uma rapariga de encher, atafulhada de remendos, zarolha, peganhenta, vítima da alarvidade do dono. Apertou-a com raiva e ela deixou sair um pouco de ar, em tom jocoso.
- Estás a gozar comigo? – Gritou, pondo-se em pé na cama carunchosa. – Andas com outro, aposto que é ele, – e pôs as mãos na testa.
Engoliu em seco e sentiu o sabor de sinapses estorricadas e o aroma torpe do cubículo que lhe servia de habitação. Era um falhado compulsivo, que se contentava com objetos comezinhos e ilusões de grandeza. Fez uma retrospetiva da sua vida remediada, medíocre, comovente, com variações sobre diferentes tipos de solidão, que foram diferentes formas de humilhação.
- Estou exposto ao fracasso, ao fracasso à vista de todos, já só alguns Desaparafusados acreditam em mim… e eu neles, - disse, falando contra si mesmo, para insultar a vida e para se insultar a si próprio.
Fez então um jogo de adivinhações e viu-se transformado num utente da Escola. Qual seria o seu equivalente? O Choco? Nem pensar, o Choco era um triunfador, colecionava vitórias atrás de vitórias, enquanto que ele, o Pintor, tivera sempre propensão para os exercícios negativos, fracassos, precaridades e embustes. O Filete? A cor era parecida, mas o africano não tinha a malvadez insatisfeita de pessimista que levava a uma periclitante visão do mundo. Foi sobressaltado pela imagem do Zé Tó, com uma vasta cabeleira de caniche e um modo de manifestação niilista, decadente e apocalítica.
- Eu? O Zé Tó? – Tornou a gritar, com uma nuvem de raiva a toldar-lhe o olhar.
Sim, era essa a verdade, o Pintor viciara-se nas febres do ego, estava em estado de depressão há demasiado tempo, não havia nada que não tivesse tentado para sair do buraco negro onde nascera, mas nada parecia funcionar para levantar o Pintor do torpor, da solidão, do silêncio, do estado catatónico.
Debruçou-se sobre o trabalho, um Diploma, e encalhou:
- “Juventude”? Como se escreverá? – Questionou-se, coçando a carapinha ensebada com alcatrão, para esconder a velhice. – Pensa Pintor, já não és aquele com o diploma da 4ª classe, mas sim o “dótor” com o nº 12 das Novas Profissões.
Mas como era pessoalmente inseguro e angustiado, atirou com raiva a EMA para o tapete:
- Vadia!
O gesto que demonstrava que nunca entendera as regras da vida social fê-lo optar pela palavra que derivava de “jovem”:
- É claro que se escreve “JOVENTUDE”!