miguelbmiranda@sapo.pt
315 estórias

Tuesday, February 11, 2014

A Arte de Bem Cavalgar toda a Sela


Comandante Guélas

Série Colégio Militar



O Colégio Militar definia hierarquias e domínio, mas mais do que isso criava espaços de amizade, solidariedade, aprendizagem, iniciativa e coragem. Assim “toda a sela” era prenúncio de queda do cavalo. Por isso "sobrevivência"  dependia da ordem de chegada, e quando o toque da corneta avisou o fim da aula a turma saiu a correr em direção ao picadeiro, sem se despedir do docente, que preferia vê-los bem longe. Saíram todos? Todos não, o 601 ficou retido pelo professor de matemática, disciplina que não era muito do seu agrado, e com a qual a partir desta data iria cortar definitivamente as relações. O tenente coronel Cabedo já estava no colégio e tinha trazido, mais uma vez, o Lamborghini do irmão, que roncara na reta para o ginásio. Estava a fazer galopes curtos com o Flipper quando os alunos chegaram. Alinhados numa das paredes do picadeiro, guardados por soldados, estavam os cavalos do costume: o Salame, a Nono, a Rata, o Quadrado, o Alfange, o Eusébio, o Patacho, o Vapor, a Quirina, a Tangerina, o 31, o 48…
A Nono teria de ir no fim da fila, apesar de ser muito mansinha, pois não aceitava ter colegas a apalpar-lhe o traseiro, respondendo sempre com fabulosos pares de coices. E o Salame gostava de dar-lhe dentadinhas na garupa, nunca de soube se de amor ou de ódio, sem contar com as cangochas inesperadas que atiravam sempre ao tapete o aluno mais distraído. Na Rata bastava um toque nas vértebras sacras para que ela se empinasse. O Quadrado já tinha no currículo o braço partido do 80, o Alfange também dava coices, o Eusébio, todo branco, tinha mau feitio, o 31, também conhecido como o Cabeça-de-Mula, não perdoava uma, enfim, eram todos “bons equinos”. Na semana anterior o 581 e outros colegas tinham tido uma aventura alucinante, quando receberam ordens para levar uns quantos cavalos ao hipódromo do Campo Grande. Saíram pela Estrada da Luz e embrenharam-se pela 2ª circular, misturando-se com o trânsito caótico. Na zona do Estádio Universitário, com bermas largas de areia e ervas o instrutor deu ordem de “galope”, e foi nesta altura que o cavalo do 581 desembestou, só parando quando chocou contra a rede que delimitava o espaço desportivo. À chegada ao local ainda houve tempo para patinagem, nos paralelepípedos que forravam a estrada. Mas a aventura do 317 também era digna de registo, pois recebera ordem do Ataíde para ser o fila-guia ("muito bem, agora A-H") e descer as bancadas do campo de futebol com o Quadrado, que na semana anterior partira o braço ao 80 (Camões), depois de ambos terem levado, ainda dentro do picadeiro, uns valentes coices da Nono que aparecera, sabe-se lá porquê, com o 298 a tentar chamá-la à razão, após um galope muito confuso, de frente, aproveitando a ocasião para cumprimentar o colega e o seu jovem cavaleiro. O cavalo do 317 estava zangado com a “rapariga” e quem levou com o mau feitio foi o aluno que, no momento em que descia as escadas do campo de futebol foi literalmente cuspido pelo equino de encontro ao chão duro, tendo sido esta a quinta e a derradeira vez, pois o traumatismo craniano não o deixou prosseguir carreira. Mesmo assim ainda montou com o Ataíde aos berros. O 467 era um ás na “arte de bem cavalgar toda a sela”, por isso tinha sempre a mania de inventar, recebendo com frequência um cartão amarelo do instrutor:
- O senhor está a mijar fora do penico! 
O 601 nem queria acreditar quando entrou na aula de Equitação e viu que só sobrava um cavalo, o Cabeça de Mula, também conhecido como o 31, propriedade da GNR e rejeitado por esta para o ensino dos seus homens, mas adequado, sabe-se lá porquê, aos Meninos da Luz. Empinou três vezes durante a aula, e à terceira foi de vez, o Gordini sentiu no lombo a textura e o cheiro da serradura que forrava o picadeiro.