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315 estórias

Wednesday, May 04, 2011

Um pincel fora de prazo - II


Camarada Choco
Aventura 79

II - O Todo Boneco


Algures numa taberna da Brandoa profunda saiu um vulto num movimento de oscilação de alguém a tentar recuperar o equilíbrio, que denunciava o esforço de um urubu a procurar um corrimão ao qual se segurar. A queda fez um som cheio, molhado. A depressão da andropausa estava a transformar o pintor alienado num indigente existencial. Olhou para trás e deu de caras com a parede forrada com as fotografias da Ágata que o obrigavam a usar constantemente a mão. No caixote de lixo repousava a pintura fanhosa da italiana, por quem ele fora atormentado e gozado durante vários meses. Julgara-se um Michelangelo, mas não passara de um Emplastro. Veio-lhe à memória a tentativa falhada de participar uns anos antes numa exposição de pintura na Cordoaria Nacional, de onde fora expulso pelas tias que, ao olharem para os quadros, viram logo tratar-se de um pintor típico do fundo das garrafas de vinho. Fora condenado pelos genes para todo o sempre a não passar da ignorância, da melancolia, na incapacidade de se concentrar duradouramente na vida, que era áspera e agreste. Estava demasiado assoberbado com os problemas existenciais, que estes lhe explodiram nas cuecas. O pintor alienado de paredes da Brandoa profunda movimentava-se agora em círculos, porque tinha uma acumulação não libertada de prazeres culpados.
- Esta não me tiras, – gritou, carregando com raiva na tecla com ligação directa ao culpado:
- SOS Voz Amiga, em que posso ser útil?
- SOS?? Então não é o ladrão de amantes?
-Ladrão de amantes???
- A ucraniana….as frangas …já não arrebita.
O psiquiatra puxou da caneta e pôs um “x” na indicação “bizarra falta de juízo”. A chamada telefónica estava a ser feita por um homem que toda a vida conhecera apenas a linguagem do conflito, precisava de odiar, mesmo que isso implicasse deitar fogo a si próprio. Vivia à socapa, com um olho na vida e outro na polícia. O lambe-cus estava a chegar ao fim da linha, tomara finalmente consciência da imagem que tivera toda a vida, e estava envergonhado, desesperado, não aguentava mais viver assim assolado pelo flagelo da sua origem na Brandoa profunda.
- Já nem na taberna os meus amigos do bagaço acreditam que sou arquiteto, – continuou o queixoso. – E até já descobriram que o meu Labrador, com que tento impressionar as cabeleireiras, é um rafeiro.
Mais um “x”, mas desta vez em “Perturbação Social Intensa”. O pintor de paredes da Brandoa profunda perdera a pouca auto estima, estava desmoralizado, deprimido, já nem o Latrinas e o Pirolito, colegas de curso de “guaches a mijo”, acreditavam nele e nas suas conquistas virtuais, já nem o bagaço conseguia disfarçar a sua grave perturbação de ansiedade. Deu lustro ao cachucho de latão a imitar o ouro.
- Ainda está aí? – Perguntou o psiquiatra, com a esperança de que o pintor disfuncional tivesse ido lamentar-se para outra freguesia.
-A minha flauta já não encanta ninguém – gritou, com uma voz pindérica.
Eram complexas as circunstancias em que se desenvolvera a sua gestação existencial, em subúrbios clandestinos e mal cheirosos da Brandoa profunda, que o levaram a desenvolver um passo foleiro e trôpego, com uma silhueta alquebrada e uma prosa analfabeta.
- Fique sabendo que estou a escrever um livro, – urrou, tentando esfregar as nódoas profundas de cor amarela das calças pretas compradas nos indianos do Martim Moniz.
E disto isto com raiva desligou, ficando sentado no chão a coçar a próstata e a lembrar-se da oxigenada da imobiliária.