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315 estórias

Saturday, July 31, 2010

O Massinhas


Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


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O Massinhas nascera sissioso e parecido com o Manelinho dos livros da Mafalda, ou seja, tinha porte de leitão. E para agravar, o interior do coco estava em curto-circuito permanente sendo por isso o alvo ideal para os netos da Dona Ludres, generala por parte do marido. Para o Nódi, o Gui e a Ninani o melhor presente que a vovó lhes poderia dar era convidar a sua grande amiga Maria Alice, pois com ela vinha sempre acopulado o já famoso Massinhas, que significava farrobadó para os netinhos de oiro da generala e consulta garantida no dia seguinte no psicólogo do costume, para o visitante. Mas houve um dia em que o farrobadó se assemelhou a uma bomba atómica, e este teve consequências desastrosas para este petiz que vivia um século atrasado. E tudo se passou no último minuto da visita! Até lá o Massinhas já tinha ficado a apanhar toda a tarde, não compreendendo porque é que a pedra que decidia o cargo lhe cabia sempre em sorte, e de cada vez que iniciava a contagem, já era tradição, os outros fugiam para dentro de casa, zona interdita ao Jogo da Apanhada, e iam ver televisão. O Massinhas desesperava, fazia quilómetros no vasto jardim, e isso reflectia-se na sua cara, que acentuava cada vez mais a cor de leitão. Quando já estava desconfiado, apareciam todos a tocar no coito e festejavam a vitória. Os adultos que conversavam animadamente na relva sentiam nestas alturas a tensão, a quezília, o conflito, a aversão, a violência, a crueldade, o desespero, a dor, a destruição, do pouco juízo do Massinhas que, geralmente, soltava de rajada todos os palavrões que aprendera com o pai, também ele com graves problemas de asfixia emocional. Mas nestas alturas o petiz já parecia um sapo que inchara até atingir o tamanho de um boi e as suas meditações eram sempre viscerais. E havia uma altura em que os adultos tinham o bom-senso de se separar. Foi num destes momentos, quando o Massinhas se preparava para descer a escadaria de acesso ao exterior que o Gui se aproximou e lhe pôs a mão no pescoço, convidando-o a ir à garagem ver a sua Play-Station que ficara em casa. O golpe estava montado. O tio Peidão, que já devia ter idade para ter juízo, mas nunca o encontrara, tinha-se posicionado atrás de um carro com uma máscara diabólica de um ser verde, e aguardava pacientemente a chegada da canalha. Até a Santinha, a tia mais linda do mundo, estava ao corrente do plano e optara por ficar no jardim, junto aos adultos, a limpar a piscina, para assim tentar subir pontos na consideração da sogra, a Dona Ludres (generala por parte do marido), detentora exclusiva da moral e dos bons costumes do alto de Paço de Arcos. Quando se apercebeu da chegada do gang à garagem o tio Peidão colocou a máscara à pressa, mas não foi preciso, porque o Massinhas estava a olhar para lá e apanhou um cagaço tão grande que soltou um grito assustador, e saiu a correr e a deitar fumo pelas orelhas, passando pela Santinha tão rápido que só parou no colo da avó, aliás, aterrou, porque saltou. Mas não teve muita sorte, pois a dona Maria Alice, senhora absoluta da Porcalhota, mal sentiu água no carrapito em forma de ananás que lhe decorava a cabeça forrada de areia, atirou de pantanas o netinho para a relva.
- Monstro, eu vi um monstro na garagem, – gritava o Massinhas, procurando alguma alma caridosa que o protegesse da visão aterradora do inferno que presenciara.
Mas a sua fama estava de rastos, não tinha credibilidade alguma, foi por isso que o avô, o coronel com cara de papagaio, gritou palavras pesadas:
- Este miúdo está cada vez mais estúpido. Agora até vê monstros!
O Massinhas tinha sido atirado para um universo virtual e no seu Cérebro inconstante plantara-se um monstro verde difícil de extirpar.
No terreno já andava o fiscalizador da verdade, o antropomórfico investigador e visionário, pai do Gui, um ex -Cabo destituído de contradições, falhas ou hesitações, omnívoro, mas acima de tudo o sintonizador oficial da dona Ludres (generala por parte do marido), que insistia em comprar aparelhos chineses para poupar dinheiro para as inúmeras viagens que fazia ao longo do ano. Ele vira o seu filho entrar na garagem abraçado ao Massinhas, depois de ter estado toda a tarde a tentar matá-lo, e desconfiou. Olhou para um e viu um estranho anjinho, criado e educado pela sogra, e olhou para o outro e viu um morcego com a alma amarfanhada e o rosto a arfar, abraçado à mãe, a tremer por todos os lados e a espumar da boca.
- Aquilo não vai lá nem com um camião de psicólogos, – pensou, tentando arranjar uma explicação para aquele minuto fatal.
- A culpa é dele, o meu neto está cada vez mais estúpido, – insistiu o avô papagaio, já de pé. – Não se incomodem, isto é uma nódoa para toda a família.
Tudo foi esclarecido com a verdade, após o regresso do investigador do local da tragédia. O ex-Cabo do General, e favorito da generala, que só não conseguia sintonizar o “sonotone” da avó da esposa, ambas surdas que nem portas, aproximou-se dos presentes e explicou:
- O mistério já está esclarecido – disse, puxando o peito para fora e abrindo as asas. - Foi tudo uma grande coincidência. Na altura em que eles iam a entrar na garagem caiu uma lata da garrafeira e assustou-os.
- Eu vi um monstro, eu vi um monstro, – insistiu o Massinhas, desesperado. – Há um monstro na garagem.
- Levem daqui o miúdo antes que envergonhe mais a família. Palerma, – retorquiu o avô papagaio, agora ainda mais vermelho que o neto, e também a espumar da boca.
A verdade do Cabo prevaleceu durante três longos anos, o Massinhas dormiu largos meses na cama da mãe, e o Psicólogo fartou-se de facturar. Nunca mais os avós o trouxeram à casa da Dona Ludres (generala por parte do marido), mesmo com os convites insistentes dos seus netinhos de oiro.

Friday, July 23, 2010

Penina à Noite


                         Comandante Guélas
                                 Série Paço de Arcos


Era nesta classificativa do Rali de Portugal que se soltavam todos os demónios que habitavam dentro das pessoas. E os “meninos de boas famílias” de Paço de Arcos estavam cheios deles. Após o bólide ser engolido pela noite serrada, depois de ter tornado dia, por breves segundos, uma pequena parte do asfalto, e o seu ruído ensurdecedor ter obrigado os demónios a fugirem assustados para as suas casas, tudo voltava a cair na escuridão da Penina. Era nestas alturas que a festa retornava à estrada. Um Tarzan sobrevoou o povo na sua liana, mas o grito tornou-se aflitivo quando ela se partiu logo a seguir a ter atingido a vertical do alcatrão, obrigando o selvagem a uma aterragem forçada, e de costas. As lanternas acenderam-se e descobriram que o morcego era o Xinoca, o acólito mais alcoólico da vila, e que nem um “pio” soltava.
- Se não o tirarmos dali vamos levá-lo para casa em forma de tapete oriental, - disse o Olho Vivo, com uma vista no chinês e a outra no decote duma desconhecida.
Bastou passar um copo a transbordar de cachaça pelas suas narinas, para que o preferido do Capitão da Quinta Divisão voltasse à vida e corresse apressado para o seu garrafão, que o aguardava em cima do barranco. O chinês tinha ficado desidratado com a queda. Quando já se ouvia ao longe o roncar de mais um bólide, eis que outro artista aparece no palco, fazendo questão de presentear o público com uma pega de caras. Tinha feito mal os cálculos e acabou por ser atirado à valeta, não com o impacto, mas sim com a deslocação do ar. O Peidão aproveitou mais esta pausa para tentar entrar em contacto com o Zé Pincel via Walkie–Talky, que tinha ficado na base a guardar os “peidociclos”.
- Pincel, aqui Peidão, escuto!
- Rrrrrr…rrrrr.
- Pincel…estás a ouvir-me?
- Rrrr…dão..ou…tomar uns copos.
- …copos???...Guarda o aparelho no bolso..
- Rrrrrr
Finda a comunicação, mais duas horas de prova. Depois foi a terrível descida. O Mac Macléu Ferreira estava mais para lá do que para cá e o seu peso era incomportável com os corpos franzinos dos amigos. A opção tomada foi deixá-lo a dormir na vala e ir buscar uma mota. Quando chegaram à base foram recebidos por um Zé Pincel com o capacete integral na cabeça e em estado etilizado que nem lhe permitia conhecer os amigos, muito menos o paradeiro do aparelho. Desapareceu na escuridão e só ouviram algum tempo depois o motor da sua Zundapp em alta rotação a desaparecer na noite fria e escura da Penina. Foi nessa altura que a estrada foi aberta ao público e os únicos a subirem foram os membros do Gang de Paço de Arcos. O Mac Macléu Ferreira só foi descoberto meia-hora depois, após difíceis buscas ao longo da valeta.
- Ficou sem cara, - gritou o Zé do Fotógrafo, ex- cozinheiro-comando, irmão do Bigornas, gerente da mais importante loja de fotografias da vila de Paço de Arcos, a Jomarte, “onde a sua cara de cu fica uma obra de arte”.
O mistério foi esclarecido quando olharam melhor para o adolescente caixa-de-óculos loirinho. A cara estava tapada pelo jantar, que tinha saído sem pedir licença. Veio à boleia do condutor mais sóbrio do grupo, o Velhinho, que o levou de imediato para o Hospital de Cascais, porque necessitava urgentemente de uma dose de glicose. O Mac Macléu Ferreira teve direito a uma unidade, enquanto que o seu motorista Velhinho, o sóbrio, gramou com duas. Entretanto na serra procedia-se a outra busca, o Walkie–Talky do Peidão. A sorte estava do lado dos bons. Um elemento do grupo que pernoitava alinhadinho debaixo de uma árvore contou-lhes que umas horas antes tinham sido atacados por um desconhecido, que lhes dissera ser lutador de Karaté e quisera praticar com eles a arte milenar.
- Tivemos de nos defender daquele louco, que para o Karaté não parecia ser dotado, acabando por tentar acertar-nos com este rádio.
O Zé Pincel apareceu no dia seguinte com a cara toda inchada e, segundo explicou, tivera um acidente de mota. No entanto não foi capaz de explicar como é que a mota e o capacete nem um risco tinham. Quanto ao Mac o Velhinho contou que o tinha levado a casa, aberto a porta e perguntado se estava bem:
- Estou rijo, - e avançou, batendo com a cabeça na parede, com tanta força, que a mãe acordou.
O motorista pirou-se, pois não queria que o vissem sóbrio, dava mau aspecto.