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315 estórias

Tuesday, July 19, 2005

O Canivete Suiço

                           Camarada Choco
                                             

Estava eu calmamente a enfardar uns abrunhos na minha querida irmã, quando de repente um relâmpago atravessou de lado a lado a minha alucinação de fim de tarde e trouxe-me à memória, mais uma vez sem o meu consentimento, as palavras da doutora sem canudo dirigidas ao stor pobre:
- Vem aí um rapazinho superdotado, enviado pela Segurança Social, para nos ajudar; tem uma família muito complicada e quer trabalhar para poder continuar os estudos; ajudem-no.
A primeira vez que vi o dito cujo, lembrei-me de imediato do meu colega Pitrongas, mas um Pitrongas com a mania que tinha três canudos, segundo tinha dito a doutora sem canudo. Estava a dissertar com o jardineiro Virgulino acerca das virtudes do nabo e da cenoura na cura das hemorróidas e, como bom superdotado assumido, fazia referências à medicina chinesa. Foi nessa altura que revelou ter sido o discípulo preferido dum tal Confuso da Brandoa. Azar do senhor Virgulino, pois nessa altura resolvera ir regar as plantas da entrada no preciso momento em que o Fenómeno chegava à escola. Graças a Deus que um corte milagroso de água o fez afastar-se do local, a correr e a espumar.
- Coitado deste jardineiro, o problema dele deve ser muito grave; juro que vou usar todas as técnicas que aprendi no Curso de Ciclismo por Correspondência, para lhe consertar os carretos. Parece não haver muitas diferenças entre a cabeça dele e uma roda pedaleira – profetizou o novo inquilino, entrando pelo estabelecimento adentro.
À sua espera estava a madrinha sem canudo, orgulhosa desta nova aquisição.
- Quando o Ministro vier cá entrego o Choco a uma das tias, fecho a porta da sala, ele dorme um bocadinho, como fazem sempre os outros, e uma hora depois tiro-o de lá, apresento-te a Sua Excelência como sendo aquele que entrou e tu recitas ali mesmo umas vinte oitavas do Camões; de seguida faço uma descrição pormenorizada dos métodos pedagógicos usados na minha propriedade...esquece...nesta Cooperativa.
- Ok tia, eu também quero pertencer ao clube dos teus fãs !
- Para já quero-te apresentar ao pessoal da Secretaria.
Puxou bruscamente pelo super sobrinho e atirou-o de rompante para cima da capitã da equipa, que nem teve tempo de trincar o seu lindo quequinho.
- Dona Sãozinha, aqui está o super dotado de que lhe falei !
- O quê isto, senhora doutora sem...
- Dona Sãozinha, dona Sãozinha...
- Perdão, perdão, com...com...
- Mas custa-lhe muito lembrar-se !??
- Caneco...caneco...esta cabeça já está a carburar mal !
E como toda esta cena durou cinco segundos, o Ferrari humano ficou entregue à sua sorte, tendo aproveitado o tempo morto para formatar o computador da Chefe da Secretaria. Aparecia agora no monitor o Virgulino em tronco nu, estilo sardinha em lata. A cada toque no rato a imagem mudava, mas o tema era sempre o mesmo: de perfil, de cócoras, de gatas, atrás duns arbustos, em pino, etc.,etc.
- Os pagamentos, as folhas de pagamentos electrónicas – gritou a dona Sãozinha, empurrando o Emplastro para fora da Secretaria.
Mas, dos pagamentos electrónicos nem sinal. Só lhe saia a figura apolínea do jardineiro.
- Chiça, só me faltava isto. Está aqui todos os dias ao vivo e agora também em formato electrónico.
Só com a ajuda do senhor Pintor é que tudo voltou ao normal. Lá fora, a tia admoestava o super sobrinho:
- Não entras mais ali dentro, foste um menino muito mau !
- Mas, eu sou um Super Dotado tia.
- Está bem, está bem, mas não mexas mais nos computadores. Eles já são muito antigos e não estão adaptados a gente como tu. Aproveita o tempo e vai pedir instruções aos professores de Educação Física. Hoje ainda vais para a colónia com alguns meninos desaparafusados, e vais ter que reeducá-los na praia.
- E eu até tenho o Curso Superior de Pino e Cambalhotas dado pela farinha Pensal. O Seleccionador Nacional de Futebol é treinado todos os dias por mim. Ensinei o ABC do Futebol ao Eusébio, quando ele tinha 6 anos.
- Vê-se logo que és um super dotado ! Aprendi isso na universidade que me deu o caneco...o canudo.
E o Pitrongas II encaminhou-se para o ginásio, orgulhoso pelo elogio recebido da sua tia madrinha dos canecos.
Toc, toc, toc, bateu decidido.
- Posso entrar, professor ? – Perguntou ao stor rico com bigode.
- Quem és tu ?
- Um Super dotado enviado pela doutora – respondeu de rajada.
- Um Super dotado !?? Já ouvi chamar-vos de tudo, agora de “super dotado”. Deve ser uma nova técnica de integração.
- Sim, sou a novidade do Verão !
- Chiça, agora também enviam desaparafusados super aparafusados ! – Resmungou o Mestre. – Mas o que é que tu queres ?
- Um aconselhamento técnico, caro colega. Eu vou para a colónia e desejava saber se devo fazer “alongamentos” ao “reeducandos” ?
- É pá, deixa-te de “super dotações” e vai mas é passear com os teus colegas para a praia.
Nem mais uma verborreia saiu da boca do Super aparafusado. Encaixou a marcha atrás e saiu do espaço gímnico, atracando de popa no Virabicos, que ia a passar.
- É pá, vê lá por onde andas, ó Picasso da Moita – buzinou o artista.
- Andava à sua procura, ó senhor Animador. Eu hoje à noite tenho de apresentar uma peça no Teatro Fechado do São Carlos e ainda não escrevi a obra. Poderia sugerir-me um tema ?
O Virabicos olhou de lado para o Presunto que estava a bloquear-lhe a passagem e respondeu:
- Escreve uma peça sobre “Heroísmo”.
- “Heroísmo” !? Então posso contar a fantástica ajuda de um Super dotado à Marinha de Guerra Portuguesa.
- Ouve lá ó Coisinho Super aparafusado, não te estiques.
- Esticar-me !?? A única vez que me estiquei foi durante a subida ao Evereste. Eu só vou contar a minha aventura do fim de semana passado ao largo do Cabo das Tormentas, no farol da Guia.
Ainda o Virabicos compunha a túnica e já o Pitrongas Encenador II lhe entregava os textos.
- “O Jovem e o Adamastor “ ?
- Sim, é o relato real do meu último fim de semana. A Marinha pediu-me para os ajudar a recolher os bidons e os contentores daquele cargueiro que naufragou em Cascais.

“O Jovem e o Adamastor”
“ Um navio proveniente do Iraque, despejou vários contentores com produtos químicos ao largo da pacata vila de Cascais, em Portugal, na Europa Ocidental. As ondas tenebrosas estavam a empurrar os bidons de soda cáustica, para as rochas. Se explodissem, poderiam matar as criancinhas e os velhotes de Cascais...”

- Isto está um pouco exagerado, ó Super Dotado, - disse o Virabicos, interrompendo a leitura.
- Exagerado, eu !?? Então, o senhor não sabe que a soda cáustica é uma arma química específica para matar criancinhas e velhotas de bigode !??
- Soda cáustica !?? Dá-me a impressão que tu és, é um cáustico !
- Não, não, eu sou é um Super Dotado.

“Os valentes marinheiros portugueses recusavam-se a enfrentar o perigo e a defender a pátria. Foi então que o Senhor Primeiro Ministro resolveu consultar as Páginas Amarelas, e descobriu o indivíduo certo, no capítulo dos Fenómenos Atmosféricos. Um helicóptero atirou-o ao mar e o herói trouxe para terra o maléfico armamento, conseguindo ainda apagar à chapada um bidon que resolvera incendiar-se. E como estava com o fato de mergulho do Batatoon, de 20mm de espessura, ainda trouxe para o Presidente da República meia dúzia de santolas e trinta camisinhas com musgo, para fazer uma salada.”

- Chiça, deves ter bebido um bidon de soda cáustica ! – Exclamou o Virabicos, assoando-se à túnica. – É melhor ires ensaiar.
- Eu agora vou mas é ao bar ensinar a tirar bicas à dona Espatinha.
Pelo caminho ainda corrigiu os traços artísticos dos vários picassos que decoravam as paredes e acertou a taxa de cloro do tanque. Ainda teve tempo para ajudar o Choco e o Fangio Espástico a urinarem, um para a retrete e o outro para o lavatório. Aproveitou também, já que tinha as massas nas mãos, para lhes fazer uns alongamentos. Quando cruzou a porta do bar apresentou-se:
- Bom dia dona Espartinha, eu sou o célebre Super Dotado, enviado pelos deuses da Segurança Social. Venho aqui afinar a máquina do café, pois tirei o Curso Superior de Borras, na Universidade da Matacanha. A partir deste momento vão começar a jorrar as bicas mais deliciosas do Continente Asiático. Cinco minutos depois, deixou atrás de si uma sempre alegre tia Espatinha à beira de um ataque de caspa e a dar os “bons-dias” em alemão. Da máquina de café saiam agora tremoços e torresmos com chantilli. Mas o Super Dotado estava imparável! Ajudava agora a tia Piúlia nos Arraiolos, tinha-se apropriado do trabalho do Balbas e dava lições de tricot a uma surda-muda. Revelou-lhe que o seu sonho era costurar para fora, mas a tia Piúlia nem o ouviu, pois estava mais para lá do que para cá, como já era costume.
O acto final deste Canivete Suíço Existencial deu-se durante os ensaios do Virabicos. Pediu para assistir, foi proibido manifestar-se, e a meio da festa, e porque ninguém estava a prestar-lhe atenção, simulou um desmaio.
Conclusão: é preferível ter um risco num cromossoma, do que um borrão na Alma !