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315 estórias

Tuesday, December 20, 2022

Caim e Abel

 


O Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Futebol P.A. 55

Caim e Abel

 

Os vikings tinham o deus Odin como referência, que significava “o bêbado”, os jogadores do Futebol PA tinham o Pingamisú, cujo significado era alcoólico …. perdão, “o acólito”! Por isso no ano de 2022, que se aproximava do fim, a organização desportiva, que tinha como representante máximo Daniel Martins de Almeida, foi agradavelmente surpreendida pelo tio Kiki:

- Trago aqui uma ninhada, cujo líder treinou com o Platini, que irá refrescar a qualidade do jogo.

Dez minutos depois do começo já um dos petizes tinha aviado vinte vezes no irmão, o pai havia-se despistado cinco vezes em marcha atrás e o genro não passava dos dez centímetros de impulsão junto à baliza adversária. Até o saudoso Biblot conseguia mais!

- Os putos vieram de onde? – Perguntou o Fininho quando viu passar, à sua frente e em voo horizontal, pela vigésima primeira vez um dos filhos do Platini, ao mesmo tempo que na outra ponta do campo o Espalha despistava-se, após tropeçar na sua perna esquerda, e gritava por falta, tentando anular o golo marcado pelo Zé das Cápsulas.

- O Caim e o Abel vêm de Cascais, - respondeu o Tio Kiki da Pampilheira.

- Caim e Abel? Os nomes não me são estranhos, - retorquiu o Sabão, primo do Sabonete, benzendo-se.

Os rapazes tinham vindo diretamente do paraíso para fazer um upgrade no Futebol PA, e vinham carregados de Trítio da cabeça aos pés, contrastando com os jogadores a carvão, incluindo o pai Platini que, antes de jogar, teve de limpar o carro das impurezas deixadas pelos petizes na noitada anterior. A escolha das equipas para o último jogo de 2022, no campo de Tires, perto da Rosa Grilo e com vista para os aviões que descolavam ininterruptamente carregados de fardos, foi feita com base no linkedin dos jogadores. O ritual repetiu-se, o Peidão colocou uma pedra numa mão, porque caso escolhesse com o Cinzento não poria nenhuma, mas com o tio Kiki era impossível, e ela saiu ao jogador da Pampilheira. Mesmo assim tentou outra tática:

- Se escolhes o Peter nunca poderás ficar com o Zé das Cápsulas, que se inscreveu, mas ainda não chegou, e pode não vir caso os gémeos tenham fugido do carro outra vez:

- Escolho o Peter, as chuteiras chinesas que os padrinhos Fininho e Espalha lhe deram no Natal do ano passado não têm travões, e isso é uma mais valia!

Equipa do Kiki: Peter, Sabão, Sabonete, Balão, Cabeça de Ananás, Espalha, Abel, Dedão.

Equipa do Peidão: Fininho, Zé Miguel, Zé das Cápsulas, Platini, Taroulo, Caim, Rafão.

O Choné ainda veio ver o jogo, mas devido à vergonhosa prestação do filho Taroulo, o Calcinhas inscreveu-se mas como precisava de fraldas para jogar foi proibido, foi-se embora com vergonha.

- Só o Maninho Ensina é que me dá alegrias!

O tio kiki marcou mais golos, mas perdeu, o Caim fazia anos, por isso ficou com os dois golos do Abel. Escolher a parte certa da Bíblia também fazia parte da tática do Futebol PA.


Saturday, August 13, 2022

Os Cromos do Futebol P.A.

 

O Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Futebol P.A. 54

Se conseguisses ver a tua vida desportiva de fio a pavio, o que é que farias? O Futebol PA sempre foi uma fábrica de campeões, por isso quando o ardina António Jorge deu o jornal ao Pingamisú e este leu que o filho fazia a “receção perfeita que lhe permite preparar o passo seguinte”, deixou cair uma lágrima e um pingo de mijo de emoção. E para agradecer a todos aqueles que mostraram ao seu descendente como não se devia jogar à bola, abriu a caderneta de Cromos do Futebol PA e deu de caras com o nº 1, o Abafador, na pessoa do Capitão Porão, o mais velho jogador, um Eusébio paçoarcoense, seguido do nº 2, o Presidente, afastado do primeiro a pedido deste mas junto ao nº 3, o Choné, o Robocop da bola e pai de uma resma de futebolistas: o 91, Trazfácil, o 92, Maninho Ensina, o 93, Taroulo e o 94, Calcinhas, que trouxeram uma nova maneira de encarar o jogo após a passagem do milénio. Com o indicador fez uma festa nestes últimos amigos e agradeceu:


- Obrigado por não terem ensinado nada, tal como eu, à minha reforma dourada, perdiz, petiz, petiz, quero eu dizer, - e olhou para o biberon à procura do grau alcoólico do meio-gordo branco.

E por causa do biberon deu de caras com o nº 4, o Bibelot, uma espécie de Trovão que insistia sempre em jogar na grande área adversária para marcar golos de cabeça. Quando viu o nº 5, o Mac Macléu Ferreira, sentiu um vento a puxa-lo, teve uma visão imperfeita que lhe revelava o segredo de algo que acontecera suspenso na geografia intemporal dos sonhos. O caixa de óculos loirinho era um diabo em campo (um pré-Ricardinho, o nº 69, aquele que ameaçava sempre para a direita e desenvolvia para a esquerda), deixava o esférico passar e só depois ia atrás dele, nunca o alcançando. O nº 6 era o Caveirinha, um predador de golos de cabeça que aconteciam quando tropeçava na linha do guarda-redes e caia desamparado para a frente. A seguir a ele vinha o Vitorioso, o lendário Fininho, senhor todo poderoso das leis do jogo que lhe deram mais vitórias do que jogos na elitista modalidade Futebol PA, única em Portugal. A servi-lo estava o nº 8, o Tio Kiki, sempre elogiado pelo mestre com equipamento de árbitro:

- Bate tu, que bates bem!

Seguiam-se os 3 da mesma ninhada, o 9, 10 e 11, Marinheiro Pai, Chico Marinheiro e Faisão, também conhecido como Judite de Sousa. O desabafo do Pingamisú disse  tudo sobre a arte de manipular as bolas desta Ínclita Geração:

- Porra, ainda bem que o puto era pequeno nesta altura – e passou rapidamente de folha.

Apareceu-lhe o 12, o Laranjão, que um dia quis fazer picadinho do Caramelo (o 54), cunhado do Doutor Sopapo (o 52) que tentou fazer o mesmo ao Esferovite (o 601), e o 13, o Fenómeno, o Brinca na Areia, o único capaz de ganhar ao Fininho, até que se casou e foi pai de duas tangerinas. O 14 era o Dic, um jogador com o nome do próprio cão, que só parava na rede de cada vez que investia sobre o esférico:

- Até te babavas, - disse o Pingamisú, limpando os cantos da boca.

O Estalinho e o Zé da Tapada, o 15 e o 16, eram os únicos cromos que estavam dentro de um ringue em vez dum relvado, jogaram mais com as mãos do que com os pés. O 17, o Chinoca, teve a carreira mais curta do Futebol PA, lesionou-se no único aquecimento que fez e jogar com bolas passou a ser só nos sonhos do Abafador, que acabou abafado pelo 55, o Pona, o único jogador que era escolhido mesmo que não aparecesse. O nº 56 chamava-se Kiko, e era sempre a terceira equipa em campo, porque jogava sozinho, do princípio ao fim. O amigo Antenas, o 57, depressa se fartou do Futebol PA, que considerava uma cambada de malucos e optou pelos das quintas-feiras, a elite dos coxos, onde constava o 76, o Carcaça, o mais hilariante dos atletas que alguma vez jogou no Olimpo paçoarcoense e, por não ser um deus do esférico, abandonou envergonhado a modalidade exclusiva da vila de Paço de Arcos.

- Vocês são tantos que eu não tenho tempo para continuar, a garganta está seca, preciso de hidratar, - exclamou, fechando o livro, arrumando-o junto a uns “Lusíadas”, e encaminhando-se para o frigorífico.

Mas eis que lhe caiu aos pés um pedaço de papel com uma nota do 191, o Peidão, que dizia: "Deves 10 euros de quota"!       


Sunday, June 26, 2022

À Sombra de um Chaparro

 



O Comandante Guélas

Série ISEFL 7

No dia 25 de junho do Ano da Graça de Dois Mil e Vinte e Dois reuniu-se a Turma 2 do ISEF 81/86 debaixo de um chaparro que dizia ser centenário, mas afinal era do IKEA, após indicações preciosas do Campeão Nacional de Milho aos Pombos, o primeiro reformado do grupo, o trapezista Carlos Pedreta, que no passado chegou a falar alemão e a convidar enfermeiras para o pecado, mas graças ao apoio incondicional do seu amigo e colega político, conseguiu sintonizar à pátria lusa:

- O local é intuitivo, Arraiolos, Pinhal dos Noivos, na Terra dos Vinis, na Rua dos Alegrias!

Estiveram presentes no evento, segundo indicações das 1000 fotos enviadas pela Cucharra, a própria, o trapezista, o vereador, o cobridor das Caldas, o stor Lopes, duas Senhoras de Lisboa, uma Tia da Costa do Estoril, um intelectual de Ponte de Lima, o segundo reformado, que trouxe a tômbola com as rifas dos ucranianos, e um alentejano de Beja. O Parrilha entrou, como já é tradição, a chiar, pelo meio das vinhas, perseguido por todas as fêmeas caprinas da região, inebriadas pelo volumoso cabelo e por um par de óculos Pierre Cardin, que lhe mantinham o estilo libidinoso do passado:

- Vocês vão todas ter de pagar a gasolina, tal como fez a minha professora de Dança Clássica, - gritou para as lãzudas.

O vereador Anselmo também apareceu pelo meio do campo, do seu campo, adquirido durante a sua fase política.

- Amanhã vou casar um dos meus filhos, - informou orgulhoso.

Logo aí abriu-se um debate:

- Algum dos do ISEF?

Veio à memória de todos o tórrido “menáge à trois” com a Glórinha do refeitório e a Blandina da biblioteca. Mas o que chamou à atenção foi o chaparro humano que, de cada vez que se dirigia ao Lopes ou ao intelectual, chamava-lhes Jacques, e perguntava pelas fotocópias:

- Eu cai de costas, ele marrou recentemente com o carro contra uma árvore, - esclareceu o Trapezista.

Na vasta ementa predominaram os produtos regionais vegan, sumo de uva, pão, queijo das meias do Melo Barreiros, enchidos de soja e sopa mijona, “caramela” para o organizador. Após a refeição o Chaparro quis ir com os amigos do Jacques aos caracóis, e por pouco não apanhou uma congestão de tremoços:

- Ainda não nota a diferença, e assim os bichos ganham mais um dia - informou o Pedreta que, além de Campeão Nacional de Milhos aos pombos, conforme referido acima, é um ambientalista radical da Associação dos Amigos dos Reformados e dos Caracóis.

Houve ainda tempo para uma ação de solidariedade, pois a partir das 18H20 os presentes teriam necessidade de começar a tomar comprimidos com efeitos secundários indeterminados, a colecta para a entrada da compra de um terreno junto ao Guadiana. A construção do lar “Anjinhos do Jamor” irá ser uma realidade e um local diário para estes almoços!       


Tuesday, June 07, 2022

Conflito de Interesses

 


O Comandante Guélas

Série Colégio Militar


Os Meninos da Luz investiram sempre diretamente nos extremos, por isso não roubavam, “descaminhavam”, e neste espaço educativo cheio de pergaminhos era à grande e à francesa. Por isso quando o gangue mais famoso dos anos setenta do século passado entrou no bar dos oficiais para mais uma visita de cortesia e deu de caras com outros intrusos ficaram escandalizados. E ainda por cima ambos tinham entrado pelas janelas, vá-se lá saber porquê, porque um deles tinha a chave, gamada há muito pelo Picanço durante as obras de renovação do espaço, antevendo uma necessidade futura:

- Que ousadia é esta? - Gritou o 240, o Al Capone lá do sítio. – Este território é exclusivamente nosso, a mercadoria pertence-nos, não pode desaparecer tanta, vão gamar para outra freguesia, ou sofrem aqui e agora uma firmeza.

A voz do Rita saiu da jugular, sangrando com violência nua e crua, sem lamechices, acompanhado pelos seus fiéis escudeiros Dáni e Cebola, em posse aristocrática e espiritual, num tom que tanto servia para amedrontar ou para debitar um zacatraz estilo Adamastor, exclusivo do bardo 69, o número mais vergonhoso do Colégio Militar, e único aluno que marchava com os braços à altura dos ombros e os calcanhares a castigar o alcatrão, mesmo sofrendo pontapés na peida dos camaradas da turma como era habitual, tendo-se vingando mais tarde nas bifas e nas suecas de Lagos. E continuou:

- As garrafas são exclusivamente nossas, é delas que bebemos a cultura colegial que nos dá alento para mais “descaminhamentos”, temos uma posição moral de ocupação.

- E nós, nem um Martini? – Desabafou o 27, sabendo que nada podiam fazer contra o Rita e os seus sicários.

Fez uma leitura rápida das expressões insanas do 240, 360 e do 661 e apercebeu-se que tinham de reduzir-se a uma passividade acrítica perante a superioridade dos camaradas, que acabavam de declarar o estatuto de invadidos.

- Vocês limitem-se aos bolos do Moreira, porque este é terreno sagrado, nem Deus entra.

E para manter a moral dos seus sicários elevada, o 240 fazia questão de os presentear todos os meses com botas topo de gama desviadas de um sótão num edifício vizinho dos claustros com vista para a Azinhaga da Luz, que mais tarde colapsaria durante uma fuga do Cebola (Camarada Choco & Comandante Guélas: Cebolada). O Gangue do Rita tinha urgência em “descaminhar”, porque esta atividade era, no fundo, o alicerce da vida cultural dos Meninos da Luz. A rapaziada tinha necessidade de estar sempre em movimento: dar biqueiros na porta da sala onde o Carioca ensaiava, para obrigar o padre a sair furioso em perseguição dos prevaricadores, decidido a fazer-lhes a folha; interromper a marmelada ao tenente Mota com a namorada no seu Toyota 1200 cor de diarreia; pendurarem-se no trator do pai da Rosa quando ia em direção ao picadeiro, para o obrigar a parar por excesso de gado; fazer emboscadas aos magalas que iam entregar os filetes no bar dos claustros; participar em atos de fé às obras primas feitas em cartolina no pavilhão de trabalhos manuais, sendo a mais famosa a Torre Eiffel do 69, que teve o mesmo destino da Catedral de Notre-Dame; ir “desencaminhar” clorofórmio ao Valentim para atirar sobre as galinhas do Nunes. E tantas, tantas outras atividades culturais que criaram uma dinâmica única que nos fez crescer e definiu aquilo que é, e sempre foi, a identidade do Colégio Militar.