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315 estórias

Thursday, December 08, 2011

Feira da Ladra


                        Comandante Guélas

                                        Série Paço de Arcos



A peregrinação não era a Meca, porque a figura mais parecida com Maomé era o Milhas, e dele todos fugiam como o Diabo da Cruz desde que ganhara a lotaria e que qualquer conversa mais demorada significava que estavam a querer comer por conta da cautela comprada à dona Belandina, irmã do Frederico dos Jornais, mas a um lugar também ele mítico, e mais rentável, a Feira da Ladra. Esta era a “Geração em Branco”, como disse o Pontas trinta e sete anos depois, embrenhada na cultura do Cine-Teatro de Paço de Arcos que presenteava os espectadores com soberbos filmes do Bruce Lee e efeitos 3D, na forma do Todo Boneco, que só atuava quando havia cenas de marmelada, atirando então, não o grito do Ipiranga, mas sim o “espera aí que já cospes”, e não a “Geração Sem Rumo”, que era agora obrigada a gramar com o Centro Cultural de Belém e a sua exposição permanente de ferro-velho, paga a peso de ouro, propriedade de um sapateiro viúvo com sotaque da madeira e aspecto de menino queque de Leião, onde ficava a quinta do pai do Zé dos Porquinhos. E quando se atingiu o número mínimo de tarecos que justificava a viagem e garantia mais uns dias de bejecas, marcou-se no calendário o dia D.
O bólide já estava repleto de quinquilharia quando o senhor Américo colocou o gang na rua, como era habitual, à meia-noite, deixando estes anjinhos à mercê das influências nocturnas, que os transformavam sempre em demónios. Mas tinham de esperar pelas cinco da manhã, altura em que o “Dois Cavalos” do Pláni fazia questão de rumar ao Campo de Santa Clara. O Pontas viu ao longe o seu amigo Zé do Fotógrafo sentado num dos bancos do jardim, olhando para o chão, para o espaço entre os seus pés. Ficou a saber que tudo aquilo se devia a ter sido abandonado, novamente, pela sua Rosa do Ártico, e de novo achincalhado pelo Serapito e o Tonzinho, que desta vez tinham decorado a montra da Jomarte com uma foto sua embelezada com uma armação do tamanho das renas do Pai Natal.
- Vou mas é viver para Cascais, já não aguento mais este peso permanente na cabeça, - disse o irmão do Bigornas quando viu que o amigo se sentara ao seu lado, e lhe pusera um braço pelos ombros.
Criou-se um silêncio insuportável, o Zé do Fotógrafo sussurrava abusos e traumas por sarar. A um dado momento o amigo Pontas, um adolescente elegante e cordial, guardador de muitos segredos e escravo dos bons sentimentos, ofereceu-lhe as palavras adequadas, como era seu costume:
- Não desesperes, na praça há mais!
Quando chegaram a Santa Clara os compradores eram tantos que se atiraram ávidos aos tenrinhos do Capitão Porão, mas não esperavam pela reacção do condutor que continuou a marcha. A turpe não desistiu e foi no encalço do “Dois Cavalos”, de nome Dumbo, uma homenagem às orelhas do proprietário. Por pouco não foram engolidos devido à subida acentuada e ao peso excessivo de quinquilharia.
- Não venda que eu roubo…perdão, eu compro, - gritavam os fregueses do Outlet mais famoso de Lisboa.
Graças a Deus que a seguir a uma subida havia sempre uma descida, e foi isso que o Pláni aproveitou.
- Temos de dar duas voltas para cansar o pessoal, este é o segredo do negócio de Santa Clara, - explicou o ex-menino da Luz.
Mas a turpe já estava habituada a estas andanças, e mal o carro parou foram invadidos por um enxame de velhos compradores batidos nestas andanças, tendo um deles proposto a compra imediata do carro. Indignação! E como é que estes meninos de boas famílias de Paço de Arcos regressariam a casa? De combóio, no meio do povo malcheiroso?
- Nem pensar, - respondeu o maior expert de Paço de Arcos, o Proveta, o primeiro a ter prejuízo, pois no meio da confusão desaparecera a sua máquina de barbear que cortava um pelo de cada vez e metade da cara só numa passagem, tendo ficado com a caixa como recordação.
O grupo interveio, e empurrou a molhada, aproveitando a confusão para fazer uma troca de prendas. Quando o sol acordou o produto do Proveta estava na banca do Coxo da Brandoa, o cinzeiro de latão do Anão do Bairro Alto na loja do Pláni e o saca-rolhas do Meia-Lua da Porcalhota era vendido como peça rara pelo Peidão.
Foi neste dia que a aptidão do Proveta para as vendas se revelou, quando conseguiu vender o biquíni da prima americana a uma velha com umas mamas do tamanho das abóboras da Dona Rosa, mãe do João da Quinta, que um dia teimou com o Pontas que tinha mais lógica pôr uma moeda de 10 escudos nos carrinhos de choque da feira de Paço de Arcos, do que comprar fichas a 5 escudos.
- Caiem-lhe que nem ginjas - disse, com os olhos fixos e elevados, colados no bigode da mulher de olhos pequenos e afundados.
- Acha? – Perguntou a cliente ao ver que nem os pipos conseguia tapar.
O vendedor passou a mão sobre as sobrancelhas, esfregou a testa e respondeu com sapiência:
- Não importa o tamanho do seu decote, desde que olhem para o biquíni.
Estas palavras fizeram-na perder as memórias das palavras e impressionaram-lhe os sentidos, imaginando-se deslumbrante no vasto areal da Cruz Quebrada, e tudo isto devido às circunvoluções cerebrais que batiam furiosamente no crânio, que se deformava com o impacto. Após esta venda lendária o Proveta passou de imediato para um produto arrasador: um aspirador!
- Trabalha? – Perguntou o primeiro e único cliente.
- Um mimo, - respondeu de imediato o precursor da Remax.
- Quero ver, - exigiu o comprador.
- Acompanhe-me.
Dirigiram-se ao café mais próximo e o vendedor encostou a ficha à primeira tomada que viu. O som que saiu da máquina causou uma tensão dramática e um pânico miudinho, e foi por isso que o Proveta puxou de imediato o fio, não fosse tornar-se vítima do seu próprio produto. Vendido!
Não muito longe dali o Pierre Pomme-de-Terre, amigo do seu amigo, tentava vender a Sachs do Bajoulo, que se tinha ausentado para ir compensar a ausência do pequeno almoço com uma soberba Imperial, entregando ao Mocho a parte promocional e aos amigos Ginja, Drenos, Orelhas e Fice o papel de figurantes:
- Amigos, senhores, esta motorizada tem incluído um Kit Sexual, que faz com que acima dos 100 Km / hora o condutor entre em transmissão direta com o cinema Olímpia.
A venda quase foi consumada, o regresso do dono estragou tudo, mas antes tivesse sido, pois nesse verão o Bajoulo deu boleia ao Ginja no Algarve, e à chegada à praia da Oura derrapou na areia, obrigando o pendura a entrar de rastos no parque de estacionamento, deixando parte do calção de banho, a totalidade das sandálias e uma porção do bronzeado, no asfalto.

Friday, October 21, 2011

Espera aí que já cospes

Camarada Choco

Aventura 82

- Dona Pilca, temos um problema, - informou a senhora da fábrica de componentes elétricas.
- Um problema? Mas não lhe entregaram o produto do trabalho dos meus Desaparafusados? Não me digam que o Primo do Cabo Pilas se perdeu, como o Capuchinho Vermelho?
- Não Dona Pilca, a encomenda já chegou, os parafusos vêm com as anilhas e as porcas enfiadas....mas do avesso.
- Do avesso? - Gritou a Dona Pilca, riscando com os nervos um babete forrado de anjinhos, uma encomenda da funerária "Sempre a Abrir", da rua de baixo.
- O trabalho que dei aos seus Desaparafusados vem com defeito. Já não são só os trabalhadores, mas também o produto.
Do outro lado só se ouviu um ranger de dentes.
- Dona Pilca?....a senhora está aí?
- Ainda estou...mas não sei por quanto tempo, - respondeu a velha empresária da Venteira, ao mesmo tempo que simulava com a mão uma degolação geral. - Vou resolver o problema imediatamente e mais tarde entrarei em contacto consigo.
Quando a tecla vermelha do telemóvel foi premida, saiu um grito de raiva tão profundo, que o preto que estava a pintar o prédio deixou cair o pincél em cima do Primo do Cabo Pilas, que com o peso caiu do passeio e fez um entorse. Todos estavam receosos, a Dona Pilca não aceitava a falhas dos seus subordinados, e agora era vista a falar sózinha em todos os cantos da Escola para Desaparafusados da Venteira.
- Só pode ter sido ela, - gritou pela centésima vez para a imagem do espelho, que já não conhecia. ~A fazer-se de amiguinha e por detrás a trocar-me as roscas. Vou tratar~lhe da saúde, enquanto o Diabo esfreganha um olho, - e fez novamente o sinal de degolação.
A Instituição estava insegura. Pela frente entrara a Natali, uma gorila das montanhas prenhe, que tinha vindo pedir satisfações à Chefe Bélinha, por ter de acordar muito cedo todas as manhãs para entregar a irmã na carrinha que ia buscá-la à barraca, um luxo exclusivo dos melhores colégios privados, cujos pais pagavam caro estas mordomias, mas que para os Desaparafusados da Cova da Moura e afins era de borla, porque a conta ia sempre parar à caixa do correio dos portugueses caucasianos. Mas a ameaça também vinha do interior, e tinha a forma de uma distinta senhora de meia idade, que atingira o estatuto da Madrinha Sem caneco, e que já não aceitava "desaparafusices" dos seus Desaparafusados.
- Tenho uma mancha no meu curriculo, e a culpa é vossa, - gritou ao entrar na sala, não sem antes deixar o recado para a vizinha. - Gente como tu como eu ao pequeno-almoço.
- Coitada da Pilca, a mudança de idade está a afetar-lhe os carretos, - desabafou a ingénua Menina Tatrícia para a sua colega Pirosa. - Tenho de dar-lhe a minha solidariedade.
- Não sei se devas, - aconselhou a colega.
- Ai vou, não posso abandonar uma colega de peregrinação numa hora destas, - e encaminhou-se para a porta.
- Isso já foi há muito tempo, a Pilca já se esqueceu, - exclamou a Pirosa, sem tirar os olhos duma revista. - Não vás, é melhor!
Mas a humilde Menina Tatrícia estava decidida a ser solidária com a velha Pilca.Os segundos seguintes foram de silêncio, mas breves, muito breves, porque o grito que se ouviu foi tão alucinante, que até o Rui Monga, que já estava muito mais para lá do que para cá acordou:
- Silêncio, já não se pode dormir eternamente!
As janelas da Sala das Roscas abriram-se com estrondo, levadas por um vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro do espaço. O ferimento que a Menina Tatrícia trazia na mão era de guerra, e da atómica. A única testemunha juramentada do ataque foi a Desaparafusada Vaisnessa, que contou que a Dona Pilca se atirou com tanta raiva à vítima, que despejou toda a pistola de cola, ao mesmo tempo que gritava:
- era aí quele já ospes (tradução: "espera aí que já cospes")!  
 

Monday, October 17, 2011

O Delinquente



Camarada Choco

Aventura 81

O dia era de festa, o glorioso ia jogar na catedral e o Fangio Espástico não queria perder pitada do evento, a começar pelo voo da Vitória, uma águia com dificuldades em aterrar sobre a pata direita. Por tudo isto justificava-se que entrasse com a cadeira diretamente pelos fundos da carrinha, gritando de imediato para o pai:
- oe o é no alarador, arálho!
Quando chegaram à Luz o lugar exclusivo para os Desaparafusados ainda estava vago, apesar dos gritos alucinantes e do fumo que saia do alguidar vermelho. A porta traseira da Renault abriu-se com estrondo, e o Fangio Espástico saiu em cavalinho e acelerou em direção ao inferno, deixando para trás o motorista. Chegou na altura em que a sombra da ave de rapina engolia a multidão.
- enfica ampeão – gritou, ao mesmo tempo que travou a fundo perto do limite da varanda destinada aos sócios com problemas nos carretos. – Amos encer, arálho!
O inferno tinha tomado conta do Estádio da Luz quando o pai do Fangio Espástico se juntou ao filho, depois de se cruzar com o segurança que um ano antes tinha gamado a foto do Mantorras autografada com um “x”, que fora oferecida ao filho.
- Trabalho aqui há vários anos e o raio do preto coxo nunca me deu um autógrafo, mas porque este só mexe os olhos dá-lhe um poster, e ainda por cima pede-me para entregá-lo ao Desaparafusado.
 No exterior outro Desaparafusado tentava desesperado arrumar a viatura, mas não havia nenhum lugar VIP disponível. Até que descobriu uma oportunidade:
- Este Renault está com o desenho da cadeira caducado, - disse, com um sorriso solidário, carregando no botão com ligação direta ao 112.
Catorze minutos depois atendeu uma voz alterada, de alguém que não conseguira ver na televisão o golo do Benfica.
- A minha fralda está a transbordar, enviem imediatamente a polícia para o estádio do glorioso, - gritou o benfiquista Desaparafusado, ajeitando o rádio na orelha esquerda, uma vez que não tinha a direita.
O reboque chegou depressa e nem os apelos solidários de alguns Aparafusados demoveram o agente de fazer cumprir a lei. A carrinha do pai do Fangio Espástico deixou a Luz às cavalitas da autoridade, e o Desaparafusado queixoso, com o selo em dia, arrumou triunfante o “|Mata Velhos”, e saiu a correr em direção ao inferno, esquecendo-se da sua deficiência, mas não o local destinado aos da sua espécie, perto do relvado.
- etam o Antorras a ogar, arálho, - gritou o aluno com mais neurónios da Venteira, dando um chuto involuntário na cabeça de um anão que estava sentado num iogurte.
- Façam a vontade ao deficiente, - berrou o coxo do mata-velhos, dando uma palmada benfiquista no joystick da cadeira do Fangio Espástico, que avançou para cima do anão, que já tinha recuperado a anterior posição, ficando desta vez entalado dentro do frasco do "Danoninho".
Como se tornara um hábito o Glorioso chupou o tutano dos adversários e isto teve um efeito metafísico na assistência encarnada, Aparafusados e Desaparafusados: o coxo saltou de alegria durante alguns minutos, o treinador Jesus conseguiu discursar dez segundos sem dar um pontapé na gramática, o Fangio Espástico deixou de falar com a pronuncia  “bolotas na boca” e conseguiu pronunciar na perfeição a sua palavra favorita, “Karalho”, e muitos outros “efeitos benfiquistas”. Mas algo não estava nos planos do nosso herói da Venteira: a ausência da carripana que o levara à festa! O pai já tinha sido posto ao corrente da situação, o “Correio da Manhã” vinha a caminho. O coxo do “Mata-Velhos” voltou a arrastar a perna e deu toda a sua solidariedade ao colega, lamentando não poder ficar na manifestação por impedimentos físicos, causados por falta de cevada nas veias. A câmara do jornal esteve grande parte da noite a disparar, e por momentos o Fangio Espástico já se via a caminho da série “Bolotas com Farinha”, destinada a adolescentes com carretos chamuscados. A buzina do carro do pai apagou-lhe a alucinação e ele saiu do Alguidar da Luz com mais palmas que o seu colega Mantorras!      

Tuesday, September 20, 2011

Simplesmente Anoa


                                 Comandante Guélas


                                             Série Paço de Arcos
 
Quando a mãe do Pitrongas ficou com o Pinto só para si, depressa se mudou de armas e bagagens para a vivenda do velhote, e num abrir e fechar de olhos pôs um par de patins à governanta, uma concorrente perigosa, substituindo-a pela Anoa, um caniche em forma humana, que necessitava de um banco para fazer a salada de tomate e muitas outras refeições. A nova criada tinha por companhia o Tareco, um gato castrado que para ela era mais cavalo e companheiro. Mas o trabalho da Anoa não se resumia só à cozinha. Nas horas vagas era os ouvidos e os olhos da patroa. Nestas ocasiões montava então vigia na porta do jardim e nada lhe escapava na vizinhança. Quando o senhor Zé da Fruta apitava, lá se aventurava a atravessar a rua e, na companhia de outras sopeiras das redondezas, aproveitava para aumentar o rol de informações, que diligentemente entregava à chefe no final do dia. Até que um dia a rotina se alterou por completo, quando o Vaca Prenhe regressava a casa no carocha dos pais. Por momentos os dois olhares cruzaram-se e fixaram-se. Das orelhas do rapaz, que tinha acabado de ser pai do Cabeça de Ananás,  saiu fumo preto, um sinal inquietante. Pôs prego a fundo, subiu com metade do carro o passeio, decidido a transformar a meia-leca numa bonita toalha de bidé. Quando a Anoa se apercebeu que tudo aquilo era real e não um pesadelo saltou, no último segundo, para a proteção da ombreira do portão, tendo sentido ainda a deslocação do ar do bólide, que lhe levantou a saia tamanho Barbie. O exemplo foi terrível, o Graise imitou o mano, mas com mota, e desafiou os amigos. Estava assim lançado um novo desporto, o “abafa a anã”, que pôs a Maria em estado de alerta permanente e perto do suicídio, da borda do passeio. Não tinha descanso, a qualquer hora do dia arriscava-se a ser passada a ferro, tanto por quadriciclos como por motociclos. Reagia a qualquer barulho, passava a vida a correr para a proteção do jardim. Já nem a carrinha do senhor Zé da Fruta era um lugar seguro. Parecia o cão do Pavlov! E o risco aumentava quando a patroa, uma obsessiva compulsiva pelas limpezas, e mãe do único adolescente com um neurónio da Costa do Estoril,  a mandava ir varrer o passeio, depois de ter deixado o vasto jardim a brilhar. Mal via o carocha preto, que estava em constante sobe e desce, ao longe, abandonava tudo, incluindo a sombra, e corria para trás do vaso com o manjerico. Para a obrigar a sair da toca, o Graise e o Peidão, o adolescente mais bem comportado da vila, arranjaram uma estratégia infalível: passaram a trazer os sacos de lixo da vizinhança e a despeja-los dentro e fora do logradouro do Pinto, pondo a mãe do Pitrongas à beira de um ataque de nervos, e a Maria em estado de limpeza permanente. As razias aumentaram, o alvo estava num vai-e-vém constante, e qualquer dia a vila acordava com a toalha de bidé espalmada no alcatrão. E eis que um dia a Anoa resolveu acusar o irmão do Graise e do Vaca Prenhe, cunhado do Peidão, o único nas redondezas com um cromossoma extra no par vinte e um, de atirar o lixo para dentro do logradouro…às três da manhã. Quando soube a novidade a patroa agarrou na criada meia-leca e irrompeu pelo almoço dos vizinhos, apontando o dedo acusador ao último dos dez irmãos, que confundiu a Maria com um Peru, que para ele representava o Papão, e fugiu para debaixo da mesa. O Vaca-Prenhe ainda tentou atirar as culpas para cima do desgraçado do cunhado, mas foi de imediato posto no lugar de onde não tinha saído:
- Que miséria a acusar um menino tão educado e com bons princípios morais, que não se pode defender. Tenha vergonha do que diz! – Gritou a mãe do Pitrongas agarrando na Anoa e virando as costas aos vizinhos.

Thursday, July 21, 2011

Um pincel fora de prazo - III

 Camarada Choco
 Aventura80
Só "Joventude"
  
O Pintor acordou sobressaltado e sentou-se na cama ofegante e cheio de angústia. Sonhara com a surdidez do bordel onde nascera. Acendeu a luz e viu a sombra das malas que lhe tinham posto à porta. Tocou na testa e pareceu sentir duas proeminentes pirâmides absolutamente distintas. Olhou para o espelho do apartamento acanhado, em que nem os seus próprios fantasmas cabiam, e nem consolo estético teve. Em cinquenta e muitos anos de vida não tinha ido a lado algum, a Brandoa estava-lhe impregnada na pele. A seu lado dormia a EMA, uma rapariga de encher, atafulhada de remendos, zarolha, peganhenta, vítima da alarvidade do dono. Apertou-a com raiva e ela deixou sair um pouco de ar, em tom jocoso.
- Estás a gozar comigo? – Gritou, pondo-se em pé na cama carunchosa. – Andas com outro, aposto que é ele, – e pôs as mãos na testa.
Engoliu em seco e sentiu o sabor de sinapses estorricadas e o aroma torpe do cubículo que lhe servia de habitação. Era um falhado compulsivo, que se contentava com objetos comezinhos e ilusões de grandeza. Fez uma retrospetiva da sua vida remediada, medíocre, comovente, com variações sobre diferentes tipos de solidão, que foram diferentes formas de humilhação.
- Estou exposto ao fracasso, ao fracasso à vista de todos, já só alguns Desaparafusados acreditam em mim… e eu neles, - disse, falando contra si mesmo, para insultar a vida e para se insultar a si próprio.
Fez então um jogo de adivinhações e viu-se transformado num utente da Escola. Qual seria o seu equivalente? O Choco? Nem pensar, o Choco era um triunfador, colecionava vitórias atrás de vitórias, enquanto que ele, o Pintor, tivera sempre propensão para os exercícios negativos, fracassos, precaridades e embustes. O Filete? A cor era parecida, mas o africano não tinha a malvadez insatisfeita de pessimista que levava a uma periclitante visão do mundo. Foi sobressaltado pela imagem do Zé Tó, com uma vasta cabeleira de caniche e um modo de manifestação niilista, decadente e apocalítica.
- Eu? O Zé Tó? – Tornou a gritar, com uma nuvem de raiva a toldar-lhe o olhar.
Sim, era essa a verdade, o Pintor viciara-se nas febres do ego, estava em estado de depressão há demasiado tempo, não havia nada que não tivesse tentado para sair do buraco negro onde nascera, mas nada parecia funcionar para levantar o Pintor do torpor, da solidão, do silêncio, do estado catatónico.
Debruçou-se sobre o trabalho, um Diploma, e encalhou:
- “Juventude”? Como se escreverá? – Questionou-se, coçando a carapinha ensebada com alcatrão, para esconder a velhice. – Pensa Pintor, já não és aquele com o diploma da 4ª classe, mas sim o “dótor” com o nº 12 das Novas Profissões.
Mas como era pessoalmente inseguro e angustiado, atirou com raiva a EMA para o tapete:
- Vadia!
O gesto que demonstrava que nunca entendera as regras da vida social fê-lo optar pela palavra que derivava de “jovem”:
- É claro que se escreve “JOVENTUDE”!








Thursday, June 16, 2011

A Guerra dos Pitrongas




                       Comandante Guélas


                                     Série Colégio Militar



A campainha tocou na casa do velho Peidão, e quando este ícone paçoarcoense abriu a porta, deu de caras com o Piitrongas, acompanhado pela tia, a ex-rainha das meias do Rossio, cuja fortuna tinha estado até agora garantida para os dois sobrinhos flamingos, o que estava ali, senhor de um só neurónio, e o outro que se intitulava catedrático anglo-saxónico, cátedra trocada pela ocupação selvagem da casa do Pinto, o último homem a servir-se da sua mulher, uma vez que ele fizera questão de vir cá baixo buscá-la, alguns meses depois de ter ido para o “Condominium St. Peter”.
- Se me ouvires gritar à noite é porque o meu Pitrongão está a tentar-me matar, - disse a velha ao incrédulo Peidão, recolhendo ao carro.
Os carretos da senhora já tinham tido melhores dias, mas ultimamente estavam a riscar-lhe o côco e a alterar-lhe a perceção do mundo. Escolhera como alvo o sobrinho mais velho, a quem uns anos antes tinha telefonado para os states a informá-lo da morte do vizinho, que não tinha herdeiros, mas fora o responsável pela fuga da sua mulher, a Rosinha, que tivera pena do velinho e se oferecera para ser a governanta dos seus inúmeros bens após a sua morte, que esperava que fosse breve. E foi, mas para ambos!
- Tens de vir tomar posse, - explicou a tia ao Pitrongão uns anos antes. – O Pinto e a tua ex-Rosinha deram o berro, e o rebento que tu pensas que é teu, mas não é, é o único herdeiro.
- Mas, tia…
- Nem mas, nem meio mas, tens de fazer o que eu te estou a mandar. De fortunas percebo eu.
E percebia! Caíra nas graças do velho das meias do Rossio quando era sua empregada, porque fora a única que se sentara a jeito no colo do patrão, hábito que ele desenvolvera no final de cada mês no dia do pagamento dos ordenados. Foi casório para toda a vida, e património destinado em testamento para os irmãos Pitrongas. Mas tudo se alterou quando a velha tia meteu na cabeça que o Pitrongão andava a roubar-lhe as jóias, que ela misteriosamente era vista a esconder numa caixa de bolachas na despensa. Nem estas testemunhas serviram de atenuante, e o nome do sobrinho mais velho saiu do papel e foi considerado persona non grata. A parte intacta do cérebro tomava sempre a dianteira nestas ocasiões solenes, mesmo na altura em que o deserdado obrigara a tia a comparecer perante um juiz, que a considerou apta para todo o serviço, incluindo permanecer encartada, gesto que há anos não fazia, mas que agora teimava em repetir, apesar da sua avançada idade.
- Deixa-a guiar, é da maneira que o problema fica logo resolvido na primeira esquina, - aconselhou-o um amigo. – Com um bocado de sorte na curva irá a passar na altura o meritíssimo.
O Pitrongão achou-se injustiçado e  resolveu recorrer da decisão.
- Até as testemunhas me traíram, - confidenciou ao velho Peidão, quando o apanhou uma noite a pé em direção à vila. – Nunca falei com elas, como é costume nos anglo-saxonicos, e eu menti e elas disseram a verdade.
O ato falhado apanhara o ex-herdeiro da parte das piugas da tia em falta,
- Para a próxima pergunta-lhes se querem ir a tribunal, - atirou o velho Peidão, o mais sensato cidadão de Paço de Arcos, em jeito de despedida.
Soube-se no dia seguinte que a velha aproveitara as contradições para avançar com um anexo do veredito, aceite de imediato pelo juiz, que declarava os pitrongas excluídos das mudanças diárias das fraldas da tia, atribuindo a nobre tarefa aos herdeiros da parte do falecido marido, que há anos fugiam deste imbróglio como o Diabo da Cruz. Acabou por ser o Pitrongas a fazer a muda, pois a empregada contratada fugira a sete pés e os responsáveis estavam incontactáveis.