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315 estórias

Saturday, June 29, 2013

A Alma dos Meninos da Luz



Comandante Guélas

Série Colégio Militar


O 246 dos primórdios do século passado, e mais uns colegas, foram um dia, em representação do Colégio Militar, a um jantar a uma escuna francesa fundeada junto a Lisboa, com o nome de “Zacatraz”, que trazia a bordo alguns guardas-marinhas tirocinantes espanhóis, tendo por companhia oficiais portugueses. No fim da refeição serviram um vinho do Porto, que foi muito apreciado e bebido. A uma dada altura o comandante levantou-se e fez um breve discurso  que foi finalizado com três gritos:
- Zacatraz, Zacatraz, Zacatraz !
- Olé, Olé, Olé, - responderam os espanhóis.
- À Votre Santé, - finalizou o anfitrião.
A cena ficou gravada nas memórias dos Meninos da Luz, e no fim dos jantares especiais passaram a gritar “Zacatraz, Zacatraz, Zacatraz”, seguido de “Olés”, finalizando com “À Votre Santé”.
Mas, como estamos no reino do Colégio Militar, a outra estória também tem como cenário o porto de Lisboa, a mesma data, tendo os alunos sido convidados para uma visita, no fim da qual a guarnição francesa se despediu com um grito de saudação. E como os visitantes eram do mesmo calibre do célebre 3º E do Ano Letivo de 1973 / 1974, recorro a estas personagens para descrever a cena. Assim, o Peidão (191) não se fez rogado e gritou, depois de ter olhado para o nome do navio:
- Zacatraz, Zacatraz, Zacatraz, - com uma intensidade a anos luz do bardo do curso de 1971, o 69 (Fernandinho).
 A que de imediato responderam o 120 (Cabedo), o 121 (Pejó),o 125 (Horrível), o 136 (Macaca), o 151 (Escorpião), o 157 (Becas), o 191 (Peidão), o 224 (Fogaça), o 280 (Minhoca), o 299 (Camélia), o 300 (Elefante), o 305 (Vinesse), o 307 (Escalope), o 320 (Vaca), o 328 (Cão), o 384 (Leitão), o 470 (Lory), o 485 (Pitosga), o 488 (Sorridente), o 601 (Gordini), o 607 (Six), o 652 (Xoxo), o 653 (Bétis), o 664 (Barrada), o 666 (Zacarias), o 667 (Loira) e o 668 (Peida Gorda):
- Traz, Traz !
Mas o Gordini, que tinha queda para o francês, não se ficou por aqui e gritou:
- Allez allez à votre santé !
Falar dos Meninos da Luz é recordar fragmentos, ficções, fantasmas, encontros afetivos de acasos partilhados. Forçam-se os limites das verdades adquiridas, porque estas estórias deixaram sempre resíduos no local. Por isso a estória do célebre grito de guerra do Colégio Militar segue para meados do século, com a ajuda dos figurantes do futuro. Passou então a ser gritado pelo bardo de serviço, depois dos dois “Traz”:
- ALA, ALA.
A que respondiam:
- Arriba.
E finalmente:
-  Allez allez à votre santé.
A que o Six (607) acrescentou, “Allez”, sinal para se avançar rapidamente para o Amarelo, uma mistura de raspas de bifes de cavalo, com ovos mexidos das galinhas do pai da Rosa, tudo regado com muito vinagre, para cortar o sabor do verdete. Por isso quando quiseram ouvir a alma dos Meninos da Luz, gritem "Zacatraz", da mesma maneira que encostam o búzio ao ouvido, para escutarem a alma do mar!




Saturday, June 15, 2013

Rali da Luz





Comandante Guélas

Série Colégio Militar



O Colégio Militar é feito de sonhos, tem várias dimensões, tem algo de misterioso, de mágico, de hipnótico, de fascinante, de sedutor e de sinistro, o seu nome tem todos os desvarios e todas as errâncias, todas as grandezas e todas as decadências. Mas não fingimos ser o que não fomos.

- Vamos dar uma volta no carro do Chulógrafo, - disse o 357, dando uma palmada na bola de espelhos, pronta para bombar no Chá Dançante do dia seguinte.

Estava lançado o desafio, o Ford MK1 azul cueca, do senhor Delgado, fotógrafo oficial do Colégio Militar, que dormia calmamente junto ao campo de futebol de 5, iria ter uma noite alucinante. A lima do corta unhas do 66 enterrou-se, sem preliminares, na ignição do Cortina, e este acordou sobressaltado. O aquecimento foi feito até ao campo de futebol de 11, com passagem obrigatória pelo Pavilhão de Ciências, mas quando sentiram a terra batida, onde muitos tinham apanhado grandes secas de desfiles, o piloto pôs o acelerador a fundo, mostrando aos sete magníficos que o acompanhavam, a maioria espalmada no banco de trás, as suas extraordinárias performances, ganhas ao volante da autometralhadora que decorava a parada junto às companhias, tantas vezes empurrada para a colina onde se erguia o ginásio, descendo depois, com a lotação esgotada e a blindagem forrada de meninos pendurados, vestidos de cotim, ao sabor da gravidade. O Ford Cortina MK1 azul cueca, propriedade do Chulógrafo, o fotógrafo oficial dos Meninos da Luz, dançava com estrondo no campo pelado, levado por um vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro do carro onde todos, o 357, o 308, o 557, o 248, o 79, o 522, o 335 e o 66, controlavam a ansiedade com um sorriso no rosto, ao mesmo tempo que balanceavam de encontro aos vidros, à medida que os ângulos de ataque mudavam, ao sabor dos humores do piloto. E toda esta cena estava iluminada por uma magnífica lua cheia, cuja luminosidade foi temporariamente ofuscada por uma nuvem de pó espessa, que criou um efeito especial, onde o carro parecia correr, parar, recuar, avançar, desaparecer e reaparecer. Saíram da arena, passaram pela piscina, com uma atividade clandestina frenética, onde os antigos contam que um dia foi lá parar um carro, e aceleraram em direcção ao campo de obstáculos da equitação. Uma sombra vaga apareceu-lhes no horizonte, o 66 controlou a ansiedade com um sorriso no rosto e uma calma no corpo, ao mesmo tempo que se aproximavam da autometralhadora que descia, mais uma vez, furiosamente a rampa de acesso aos refeitórios, forrada por uma massa de cotim cintilante. O piloto estava decidido a ultrapassá-los, por isso obrigou o bólide a pôr a língua de fora, e o Patronilha a correr, pois caso não o fizesse seria com toda a certeza confundido no dia seguinte com um gato em formato de tapete. Finda a primeira etapa, seguiram-se outras, cada uma com um motorista diferente. Quando entraram na última reta da derradeira volta o 357, agora o piloto oficial do Ford MK1 azul cueca, viu tudo desfocado, desproporcionado, uma aura de luz fantástica, com cores e brilhos, toldou-lhe a razão, sentiu que os seus sentidos estavam a perder a unidade, gritou quando se apercebeu que estava a perder os contornos da estrada e ia passando a ferro o Meia-Lua, o carro parecia um barco no mar alto, por isso a proa embicou  para o campo de futebol de 5, onde a rede se abriu graciosamente com a ajuda do carro do Chulógrafo, o fotógrafo oficial dos Meninos da Luz, levando à sua frente, em pedaços, a baliza, que ainda cheirava a nova, tudo acompanhado de relâmpagos, fragmentos curtos e súbitos clarões. A noite espessa voltou, o 308 tentou encontrar algum interruptor que lhe acendesse uma luz, o 522 pediu ajuda para o ar, as emoções espontâneas fizeram-nos gritar frases soltas e curvas, foda-se”, “caralho”, “o Cortina está todo fodido”. O 66 olhou pela janela e viu uma lua branca, tocou ao de leve o vidro e com a ponta dos dedos os lábios. Desviou o olhar e ficou de frente para o retrovisor, onde viu o seu reflexo, e os olhos rasgados e os sorrisos de marfim dos colegas. Sentiu-lhes as respirações ofegantes, a geraldina do Cortina do Chulógrafo tinha acabado.