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315 estórias

Thursday, March 31, 2016

O Carro de Aluguer

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


O primeiro elemento do Gang a ter a carta de condução de veículos automóveis foi o Pilas, tirada na Escola de Condução do Cruz, lá para os lados do Campo Pequeno. E não foi preciso ir a nenhuma aula teórica e as práticas foram poucas. O padrinho Cruz confirmava as presenças antes de se marcarem os exames na DGV. Eram estas as condições por se ter morada na região mais importante da Península Ibérica, a encantada vila de Paço de Arcos, onde praticamente todos conduziam desde os 10 anos. O analfabruto do pai do João da Quinta nunca teve a carta mas isso não o impedia de fazer colecções de motas e carros. Até ao dia em que o filho lhe tirou um dos bólides da garagem, com a ajuda dos amigos, todos a empurrarem, tendo pegado engatado lá para os lados da vacaria. A viagem foi sempre a abrir até Caxias, tendo acabado abruptamente de encontro a um carro estacionado, depois do João da Quinta se ter distraído com uma moça de bigode que passeava atrevidamente, com os pêlos das pernas ao léu. O facto dele guiar em pé, para assim poder ver a estrada, também não ajudou muito. O Cocciolo, que ia no lugar do morto, bateu com os cornos no vidro, mas não teve lesões aparentes. Segundo o Graise, um expert na matéria, que estava sentadinho atrás do motorista e se apoiou na sua cabeça, para não ser projectado contra o seu cabelo oleoso e cheio de penas de galinha, “as consequências para a saúde mental do Cocciolo só se tornaram visíveis anos mais tarde, quando ele demonstrou enormes dificuldades em ultrapassar a adolescência”. Carro imobilizado, fuga imediata! Foram todos? Todos, não, restou o filho do proprietário do veículo, momentaneamente impossibilitado de se mover, porque o seu único neurónio estava atordoado devido ao impacto do Graise, sendo por isso incapaz de enviar uma ordem de jeito às pernas.
- Quando chocámos ainda o ouvi gritar, “mãe dá-me uma carcaça que eu estou cheio de traça”, – disse o Peidão para o Pontas durante a fuga em direcção à casa do Jorginho, que dava nessa noite uma festa, com a presença do irmão adoptivo, o Alice, que tinha vindo com a Descolonização e trouxera com ele os primeiros de muitos charros que iriam colonizar a vila e acelerar a ida para a cova a muitos.
Quando a populaça deitou a mão ao João da Quinta, ele ainda não tinha recuperado a consciência de si próprio e da coça que iria levar do pai. Dito e feito, foi obrigado a ir ao “pão por Deus”, cujos fundos iriam reverter para o arranjo do “Ford Taunus Carrinha Verde Alface”.
A carta de condução do Pilas dava direito a tudo. Até para alugar um carro marado numa agência clandestina, enchê-lo de amigos e de malas, e rumar ao Algarve prego a fundo, com o Botelho a mandar vir por causa da posição da mala: estava virada a Sul e ele queria que ela apontasse para o Norte Magnético. Enfim, cada maluco com a sua mania! Mas na véspera da viagem para sul, parte do gang deu de caras com o “xaço” do Mayer, que estava estacionado lá no alto, “meio-abandonado meio-com-dono”. Foi-lhe aplicada a lei de “barcos vazios no alto-mar” e a porta aberta contribuiu para a entrada, mas o volante trancado impossibilitava o passeio. O estudante Focas estava na máxima força, representava o produto final de uma mistura desportiva explosiva: Boxe e Karaté. O barulho de algo a torcer foi quebrado com o desmaio do volante e da direcção no colo do “Cassios Clay de Paço de Arcos”, acompanhado por um espectáculo de fogo pirotécnico que saia dos fios em curto-circuito. A corrida começou de imediato mal o travão-de-mão deixou de cumprir a sua função. Estavam no alto, não precisavam de motor para nada. O “xaço” atingiu a velocidade do som logo na recta e quando fez a primeira curva, todos se aperceberam que o Focas não fazia questão de usar os travões. Iria até à desintegração total. O Chico Sá abandonou de imediato o “Ferrari”, o Graise também, o Pontas “idem aspas aspas” e quanto ao Peidão, que ia no meio, não conseguiu sair, porque o estudante Focas já tinha encostado o carro a um muro e impossibilitou-lhe a fuga. Só se viam fagulhas a sair do bólide. E eis que, contra todas as expectativas, o motorista guinou o volante, obrigando o Renault a fazer um ângulo de 90º, ficando de frente para o muro do jardim dos senhores doutores vermelhos. O Focas saiu como se tivesse carregado num botão de ejecção automática e o Peidão escapuliu-se no limite, conseguindo ainda ver, do ar, o embate do carro no muro. Um levantou as quatro rodas e o outro abanou como uma bailarina. Durante uma fracção de segundos reinou o silêncio. A maioria estava borrada, apesar de estarem quase todos na fronteira para a idade adulta, e como tal responsáveis pelos seus actos. Mas como o período ainda era de revolução, poder-se-ia sempre dizer que tudo isto consistia num protesto contra os “chalés burgueses”, mesmo que todos habitassem em chalés, e este muro em questão pertencia a pessoal íntimo e amigo da “classe operária”. O mini-gang dispersou misteriosamente deixando o carrito onde estava, mas no dia seguinte o Renault estava a dormir profundamente dentro de um buraco de uma obra, lá para os lados das escadinhas da estação, com o rabinho para o ar e cercado de rudes trabalhadores, impossibilitados de cavar. Teria feito os últimos cem metros da vertiginosa descida por conta própria ou os meninos-ricos tinham-se reorganizado e acabado a tarefa a que se propuseram? Uma pergunta sem resposta, pois todos juravam que a sua participação nesta brincadeirinha de jovens recentemente libertados pelos Capitães de Abril, que os safaram de irem jogar às escondidas com os turras, tinha acabado no momento em que o “chaço” marrara contra o muro. No dia da partida rumo ao Sul os turistas levantaram-se cedo, atestaram o carro com a gasolina encontrada nos depósitos dos bólides que estavam aparentemente abandonados nos passeios na noite anterior, e foram todos buscar o Botelho a Nova-Oeiras, que tinha feito um pedido especial de entrada com descrição na rua onde morava, pois o pai andava muito traumatizado, porque o filho insistia em marrar com o Mini de cada vez que saia de casa para ir passear com os amigos, lá para os lados de Cascais. Uma semana antes tinha conseguido chegar ao destino sem qualquer precalço e quando se preparava para estacionar o carro num parque lá para os lados do “Senhor Balão”, assustou-se com a salva de palmas que os amigos lhe dedicaram e em vez de desengatar o carro, tirou o pé da embraiagem e marrou contra o muro. Por momentos ficou um silêncio sepulcral, mas depois as palmas continuaram, mas desta vez para aplaudir a tradição e não a excepção. A entrada do Pilas foi à Leão, o carro guinchava e fumegava por tudo o que era buraco, Nova-Oeiras veio toda às janelas.
- Obrigado Pilas, – agradeceu o Botelho colocando a mala na bagageira, viranda para Meca.
A viagem até ao Algarve correu sem incidentes, o carro foi sempre a ganir e os passageiros em farra permanente. O destino não contemplava nenhum acidente para estas datas, apesar de o estarem permanentemente a provocar. A primeira paragem foi na praia da Oura onde pernoitaram. O auto-gang agarrou nos sacos-camas e montou acampamento junto a uma falésia. Após as duas da manhã os meninos ricos de Paço de Arcos foram recolhendo aos aposentos à medida que iam chegando. O Pilas foi o último e, para manter a tradição, fez nova entrada à Leão. Vislumbrou uma fileira de sacos-camas, desatou numa correria e quando já estava perto, fez uma chamada a pés juntos e “aí vai alho” para cima dos turistas. As bejecas tinham-lhe toldado o sentido de orientação e enganou-se. Os amigos estavam na curva ao lado. Teve de acelerar e desaparecer na escuridão da praia, porque ia uma multidão atrás, pronta para lhe “fazerem a folha”. No dia seguinte a excursão rumou para a Torralta porque o Pilas, o único encartado, estava obcecado na procura da sua Olívia, uma dama da Linha, que tinha vindo para o Algarve com a família e deixara o namorado na capital. Mas o Graise não se conteve e gritou do banco de trás:
- Primeiros para a olívia!
Caiu tão mal na alma do Pilas, que ele largou o volante e veio pedir explicações ao violador. Valeu a pronta intervenção do Mac Macléu Ferreira que deitou as mãos ao leme, mesmo sem óculos, conseguindo manter o carro fora-de-mão, mas na estrada. O ofendido voltou à posição inicial quando lhe explicaram que o Graise tinha este nome de guerra por causa da travadinha que lhe dera durante um jogo de basquetebol familiar 5x5, e que a partir daí tinha sido sempre a descer, principalmente no que referia aos comportamentos. Ele tinha dito realmente “Olívia”, mas pensara no cágado com que namorara uns anos antes, na célebre festa onde proclamara aos amigos solteiros que aquela festa “era só para orientados”. A chegada às torres manteve o mesmo estilo, com o bólide a berrar e a deitar fumo dos sapatos, com acompanhamento das vozes de seis “meninos de coro” das boas famílias “Paçoarquianas”, que iam pendurados nas janelas. Respirava-se liberdade e a “liberdade” significava “balda total”. O carro ficou onde parou e o sentido era só um, praia. Ainda o “gang” não tinha arranjado espaço para montar o acampamento e já o Pilas descobrira uma sereia em cima duma plataforma que estava ao largo.
- Será a Olívia! – Pensou.
Tinha prometido a si próprio que só pararia quando encontrasse a sua musa e isso implicava todos os sacrifícios, até fazer os 50 metros que o separavam da jangada.
- Vamos nadar até ali, - gritou, correndo para água.
Todos acompanharam? Todos, não! O intrépido Botelho sentara-se na areia e recusava-se a acompanhar os amigos.
- Vou ficar aqui a ver as vistas, – exclamou com um olhar maroto, puxando a franja ensebada para o lado.
O Pilas nem queria acreditar quando, após aquele esforço hercúleo, deu de caras com um autóctone cheio de bexigas e cabelo oleoso a tocar nos ombros. Quando estavam prestes a regressar, chegou o garanhão.
- Então, afinal também vieste?
Como não tinha pescado nenhuma rola, resolvera vir tentar a sua sorte com o “Camarão da Torralta”. Mas não teve tempo para lhe ver o sexo, pois a ex-Olívia mergulhou na altura em que o Botelho trepou. E agora não tinha forças para persegui-la. Neste entretanto apareceram, vindos das profundezas, o senhor Pilas e o estudante Graise, que deram aviso de retirada aos amigos, excepto ao garanhão do cabelo ensebado. A chegada à praia foi um pouco mais lenta porque a maré estava a vazar. Quando se sentaram na areia foram informados pelos dois mergulhadores de que três dos cabos que prendiam a plataforma tinham sido soltos. Era por isso que o Botelho não passava de um ponto no horizonte. Só conseguiram reunir-se com o Sol já posto, pois foi nessa altura que o último dos “paço-arcoenses chegou a terra firme.
A próxima paragem ficou marcada para os lados de Lagos, mais propriamente na quinta familiar de uma amiga. Quando apareceram na cidade deram de caras com outros artistas, gerando-se uma confraternização espontânea num restaurante com uma sereia à porta, que debitava água para um lago que estava aos seus formosos pés. A festa durou pouco, muito pouco, pois o Bernardo Sá resolveu tirar um dos mamilos da ninfa com o alicate que o Bajoulo usava para gamar motas. O dono nem queria acreditar quando viu que a estátua de mármore, de quem sempre se lembrava quando brincava aos índios com a sua Maria de bigode, não passava agora de uma pobre deficiente que nem para fonte servia, muito menos de inspiração. A debandada foi geral, Burgau foi o nome escolhido para próxima capelinha e guardada para uma próxima aventura.


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