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315 estórias

Tuesday, March 22, 2016

As Latinhas do Peditório


Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


O tempo era de solidariedade, mas para o Pierre Pomme-de-Terre e o Bajoulo não passava tudo de uma questão de oportunidade para o negócio e não havia tempo a perder, pois as latinhas do peditório já andavam a circular nas ruas. A responsável pela área de Paço de Arcos tinha sido, desta vez, a mãe do Peidão, que andava toda atarefada a controlar a saída das caixas que lhe tinham calhado na rifa. Todas as forças vivas da zona estavam empenhadas na colecta, desde as tias, passando pelos escuteiros e acabando nos alcoólicos …perdão…acólitos acima referidos. Quando a mamã do Peidão deu a novidade em casa e pediu a ajuda solidária da família., o “paçoarquiano” ia tendo um “treco”, e veio-lhe logo à memória as caritas catitas do Bajoulo e do Pierre Pomme-de-Terre. Entrou de imediato em prevenção, tentando evitar que os artistas tivessem acesso às latinhas. Já sabia dos esquemas dos anos anteriores, mas agora o duo tocava-lhe à porta e teria de proteger a progenitora. Mas como já andavam nesta escola da vida há muito tempo, anteciparam-se à jogada e aproveitaram a boleia de um inocente.
- Vou à casa do Peidão buscar uma latinha. Vocês também deviam participar nesta causa que é nobre, – disse o inocente Bigornas, trepando para cima do “peidociclo” do irmão, um ex-militar das forças especiais tal como o Conan, mas do ramo dos Comandos, e também com a especialidade de ajudante de cozinha de campo, pois tinha a sua “Sumbeam”, um motão do tempo dos Descobrimentos, toda desmontada à entrada da “Jomarte”, a loja de fotografias mais famosa da Costa do Estoril, que oferecia, de borla, a qualquer cliente que entrasse, uma espera no mínimo de uma hora, até que o proprietário acabasse de ler o livro de quadradinhos do dia.
- Tiraste-me as palavras da boca, – interrompeu o raposão de nome Pierre Pomme-de-Terre, dando um toque matreiro ao acompanhante. – Eu estava agora mesmo a desafiar o Bajoulo para o gamanço…para uma boa acção, e não há nada melhor para a nossa imagem do que participarmos no peditório. Mas como é que temos acesso ao material?
- Este ano a mãe do Peidão é a responsável pela zona e vou neste momento a casa dele buscar a latinha.
- Então podias fazer-nos um favor, e trazer uma caixinha para cada um de nós. Eu tenho um pouco receio de lá ir, pois da última vez que o fiz o avô estava solto e apareceu-me por detrás de uma árvore com um pistolão do Farwest, julgando que eu era um comunista a querer ocupar a casa. E ainda por cima hoje estou vestido com uma t-shirt vermelha.
- Não se preocupem, eu vou buscar várias latinhas para distribuir pela gente caridosa.
Quando se apanharam com as “redondinhas” ao pescoço, o duo nunca mais parou, percorreu a Costa do Estoril duma ponta a outra, chegando a encontrar mais dois colegas de curso em Cascais. Mas o que é bom tem sempre um fim, e o peditório tinha hora marcada para acabar e um prazo para a recolha do material. O Peidão estava agora escalado para o efeito e resolveu começar pelas tias da Figueirinha.
- Estas latas estão vazias porque pus o dinheiro todo nesta, – explicou a velha a cheirar a perfume até às unhas dos pés, e com um penteado que parecia o Moisés dos “Dez Mandamentos” após ter descido da montanha. – Os selos que tapavam as latas caíram, – e fechou a porta.
Seguiram-se os “meninos vestidos de parvos, comandados por um parvo vestido de menino”. Das trintas latas, nenhum selo! E assim continuou a viagem, muito poucas latinhas com selo, a maioria estranhamente sem ele. Uns dias depois a mamã do Peidão teve um ataque de caspa monumental, pois faltavam duas “redodondinhas” do senhor Bigornas. Contactado de imediato, explicou que estavam na posse do Bajoulo e do Pierre Pomme-de-Terre, que se tinham comprometido a entregá-las no prazo. Estariam estas duas alminhas caridosas a fazer horas extraordinárias? O primeiro foi apanhado desprevenido, pediu para esperar um pouco, deslocou-se à garagem, ouviu-se um som dum martelo a malhar num torno, e eis que o anjinho do Barroco regressou com a caixinha amarela do peditório. Mal ela trocou de mãos o selo, que parecia mais de carta do que o original de chumbo, caiu aos pés do Peidão, ficando os dois a olhar para ele. A latinha do Pierre Pomme-de-Terre estava em casa a dormir e foi entregue intacta. Intacta?! O selo só caiu redondo no chão quando chegou à casa do Peidão, ou melhor, na sala dos pais, em frente da mãe que já estava em pleno ataque de caspa, incrédula com a atitude daqueles meninos de coro. Foi aberto um inquérito de averiguações, os dois paço-arcoenses confessaram os desvios, devolveram algumas notinhas de vinte escudos e os factos foram comunicados por escrito e assinados por todos os intervenientes, sendo os relatórios enviados à instituição que prometeu mão de ferro para os prevaricadores. Mas não nos podemos esquecer que estávamos num país de brandos costumes que, com ou sem revolução, deixou ficar tudo na mesma. No ano seguinte o Bajoulo e o Pierre Pomme-de-Terre lá foram vistos outra vez na fila da frente da solidariedade, com umas latinhas amarelas ao pescoço a recolherem donativos para uma causa que era muito nobre.

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