Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
O último paço-arcoense a ser avô
antes do 25 de Abril tinha como nome de guerra Vaca Prenhe devido ao seu estilo
atlético e à juba encarapinhada que lhe chegava aos ombros. Ao contrário do
Sansão, e com a ajuda da revolução, quando cortou o cabelo para assumir algumas
responsabilidades de pai precoce, lá conseguiu transitar de ano. Mas como a
Natureza compensa sempre, o seu cunhado Peidão, um adolescente modelo, ajudou-o
a criar o filho. E foi numa das noites frias do pós-25 de Abril, apesar da
época estar ao rubro, que o Peidão abdicou dos estudos para ir fazer de baby-sitter ao seu sobrinho com cabelo
de caniche. Para estar em contacto permanente com os verdadeiros “pais” do
pequeno, os avós maternos, o Peidão foi munido com os Walkie–Talky que o avô lhe trouxera das Lajes dois anos antes. Até
lá tinham servido para os adolescentes irem gamar peixes à noite à Quinta do
Leackoque, ficando sempre um de vigia para o caso do senhor Manuel, o
motorista, dar conta e vir de caçadeira. Por volta das onze horas da noite e já
depois de ter desistido de empinar a tabuada dos quatro, recebeu a visita do
Graise, que também era tio do pequeno, mas tinham evitado dizer a verdade ao
puto, para ele não se traumatizar, pois para isso já bastava o pai, que veio
acompanhado do Vasco Americano, um radioamador profissional, que debitava
inglês californiano do melhor, e era dono da maior antena da vila, com luzinha
e tudo na ponta, para os aviões não tropeçarem. Segundo o papel de instruções
que o general dera ao neto Peidão, um adolescente já com muitas preocupações
ambientais, estava marcado um novo contacto para as 23H10.
- Allô, allô, P1 chama P2, escuto, -
disse o Peidão.
- Rrrrrrrrrrrrrrr
- Allô, allô, P1 chama P2, escuto!
- Rrr…P2….P1…iga….tendeu?
- Estou a ouvir mal, avô!
- “Avô” não, P2, - gritou a voz
vinda do cimo da colina.
O tempo era de cautela, o COPCON
andava na rua à procura de fascistas. E todos os meninos de boas famílias
estavam na corda bamba, apesar de “política” para eles significar “festa
permanente”. O Vasco Californiano meteu-se na conversa e no seu magnífico inglês
iniciou o diálogo entre dois profissionais, um general a válvulas e um
adolescente com a boca cheia de transístores. Identificou-se correctamente e o
da colina disse que estava na China.
-
China?! But I have the antennas look to Europe?!
Os tempos eram de insegurança, o
Otelo e o seu gang dominavam a capital e arredores, e podiam estar à escuta. A
comunicação com a América foi bruscamente interrompida, mas o Peidão e o Vasco
Americano passaram à cena número dois, simulando outro contacto, agora entre dois
portugueses, um madeirense e um paço-arcoense. O militar estava agora a
assistir, sem poder intervir.
- P1 aqui Fox do Funchal, escuto.
- Fox aqui P1 de Paço de Arcos,
escuto.
O general nem queria acreditar, ele
sabia que o neto era uma nódoa a química, pois já ia na centésima explicação na
garagem e ele ainda nem tinha conseguido decorar a fórmula da água, mas agora
estava a ultrapassar todos os limites razoáveis, dando de bandeja ao inimigo a
sua localização.
- Desliga, não diga onde está, o
COPCON anda por aí e pode estar à escuta, - gritou desesperado o P2.
Mas o P1 estava imparável, pois
disse a morada, o seu nome, o da família toda, quanto calçava, o nome dos cães,
Boby e Bugio, o número do B.I. O general a válvulas desligou o aparelho,
tirou-lhe as pilhas e carregou a metralhadora chinesa. Se o gang do Otelo
aparecesse eram recebidos à bala.
No dia seguinte os pais do
Bajoulo foram visitar os avós do Peidão e o tema principal da conversa foi o
“contacto milagroso com a América”. Devido a condições meteorológicas
excepcionais, que iam de encontro a todos os manuais de Electrónica &
Comunicações, a vila de Paço de Arcos ficara para a História, no Ano da Graça
de Nosso Senhor de Mil Novecentos e Setenta e Cinco, ligada com a América,
através de um Walkie – Talky a pilhas!
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