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315 estórias

Monday, April 04, 2016

America Calling

Comandante Guélas
Série Paço de Arcos

O último paço-arcoense a ser avô antes do 25 de Abril tinha como nome de guerra Vaca Prenhe devido ao seu estilo atlético e à juba encarapinhada que lhe chegava aos ombros. Ao contrário do Sansão, e com a ajuda da revolução, quando cortou o cabelo para assumir algumas responsabilidades de pai precoce, lá conseguiu transitar de ano. Mas como a Natureza compensa sempre, o seu cunhado Peidão, um adolescente modelo, ajudou-o a criar o filho. E foi numa das noites frias do pós-25 de Abril, apesar da época estar ao rubro, que o Peidão abdicou dos estudos para ir fazer de baby-sitter ao seu sobrinho com cabelo de caniche. Para estar em contacto permanente com os verdadeiros “pais” do pequeno, os avós maternos, o Peidão foi munido com os Walkie–Talky que o avô lhe trouxera das Lajes dois anos antes. Até lá tinham servido para os adolescentes irem gamar peixes à noite à Quinta do Leackoque, ficando sempre um de vigia para o caso do senhor Manuel, o motorista, dar conta e vir de caçadeira. Por volta das onze horas da noite e já depois de ter desistido de empinar a tabuada dos quatro, recebeu a visita do Graise, que também era tio do pequeno, mas tinham evitado dizer a verdade ao puto, para ele não se traumatizar, pois para isso já bastava o pai, que veio acompanhado do Vasco Americano, um radioamador profissional, que debitava inglês californiano do melhor, e era dono da maior antena da vila, com luzinha e tudo na ponta, para os aviões não tropeçarem. Segundo o papel de instruções que o general dera ao neto Peidão, um adolescente já com muitas preocupações ambientais, estava marcado um novo contacto para as 23H10.

- Allô, allô, P1 chama P2, escuto, - disse o Peidão.
- Rrrrrrrrrrrrrrr
- Allô, allô, P1 chama P2, escuto!
- Rrr…P2….P1…iga….tendeu?
- Estou a ouvir mal, avô!
- “Avô” não, P2, - gritou a voz vinda do cimo da colina.
O tempo era de cautela, o COPCON andava na rua à procura de fascistas. E todos os meninos de boas famílias estavam na corda bamba, apesar de “política” para eles significar “festa permanente”. O Vasco Californiano meteu-se na conversa e no seu magnífico inglês iniciou o diálogo entre dois profissionais, um general a válvulas e um adolescente com a boca cheia de transístores. Identificou-se correctamente e o da colina disse que estava na China.
- China?! But I have the antennas look to Europe?!
Os tempos eram de insegurança, o Otelo e o seu gang dominavam a capital e arredores, e podiam estar à escuta. A comunicação com a América foi bruscamente interrompida, mas o Peidão e o Vasco Americano passaram à cena número dois, simulando outro contacto, agora entre dois portugueses, um madeirense e um paço-arcoense. O militar estava agora a assistir, sem poder intervir.
- P1 aqui Fox do Funchal, escuto.
- Fox aqui P1 de Paço de Arcos, escuto.
O general nem queria acreditar, ele sabia que o neto era uma nódoa a química, pois já ia na centésima explicação na garagem e ele ainda nem tinha conseguido decorar a fórmula da água, mas agora estava a ultrapassar todos os limites razoáveis, dando de bandeja ao inimigo a sua localização.
- Desliga, não diga onde está, o COPCON anda por aí e pode estar à escuta, - gritou desesperado o P2.
Mas o P1 estava imparável, pois disse a morada, o seu nome, o da família toda, quanto calçava, o nome dos cães, Boby e Bugio, o número do B.I. O general a válvulas desligou o aparelho, tirou-lhe as pilhas e carregou a metralhadora chinesa. Se o gang do Otelo aparecesse eram recebidos à bala.

No dia seguinte os pais do Bajoulo foram visitar os avós do Peidão e o tema principal da conversa foi o “contacto milagroso com a América”. Devido a condições meteorológicas excepcionais, que iam de encontro a todos os manuais de Electrónica & Comunicações, a vila de Paço de Arcos ficara para a História, no Ano da Graça de Nosso Senhor de Mil Novecentos e Setenta e Cinco, ligada com a América, através de um Walkie – Talky a pilhas!

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