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315 estórias

Wednesday, May 04, 2011

Um pincel fora de prazo - II


Camarada Choco
Aventura 79

II - O Todo Boneco


Algures numa taberna da Brandoa profunda saiu um vulto num movimento de oscilação de alguém a tentar recuperar o equilíbrio, que denunciava o esforço de um urubu a procurar um corrimão ao qual se segurar. A queda fez um som cheio, molhado. A depressão da andropausa estava a transformar o pintor alienado num indigente existencial. Olhou para trás e deu de caras com a parede forrada com as fotografias da Ágata que o obrigavam a usar constantemente a mão. No caixote de lixo repousava a pintura fanhosa da italiana, por quem ele fora atormentado e gozado durante vários meses. Julgara-se um Michelangelo, mas não passara de um Emplastro. Veio-lhe à memória a tentativa falhada de participar uns anos antes numa exposição de pintura na Cordoaria Nacional, de onde fora expulso pelas tias que, ao olharem para os quadros, viram logo tratar-se de um pintor típico do fundo das garrafas de vinho. Fora condenado pelos genes para todo o sempre a não passar da ignorância, da melancolia, na incapacidade de se concentrar duradouramente na vida, que era áspera e agreste. Estava demasiado assoberbado com os problemas existenciais, que estes lhe explodiram nas cuecas. O pintor alienado de paredes da Brandoa profunda movimentava-se agora em círculos, porque tinha uma acumulação não libertada de prazeres culpados.
- Esta não me tiras, – gritou, carregando com raiva na tecla com ligação directa ao culpado:
- SOS Voz Amiga, em que posso ser útil?
- SOS?? Então não é o ladrão de amantes?
-Ladrão de amantes???
- A ucraniana….as frangas …já não arrebita.
O psiquiatra puxou da caneta e pôs um “x” na indicação “bizarra falta de juízo”. A chamada telefónica estava a ser feita por um homem que toda a vida conhecera apenas a linguagem do conflito, precisava de odiar, mesmo que isso implicasse deitar fogo a si próprio. Vivia à socapa, com um olho na vida e outro na polícia. O lambe-cus estava a chegar ao fim da linha, tomara finalmente consciência da imagem que tivera toda a vida, e estava envergonhado, desesperado, não aguentava mais viver assim assolado pelo flagelo da sua origem na Brandoa profunda.
- Já nem na taberna os meus amigos do bagaço acreditam que sou arquiteto, – continuou o queixoso. – E até já descobriram que o meu Labrador, com que tento impressionar as cabeleireiras, é um rafeiro.
Mais um “x”, mas desta vez em “Perturbação Social Intensa”. O pintor de paredes da Brandoa profunda perdera a pouca auto estima, estava desmoralizado, deprimido, já nem o Latrinas e o Pirolito, colegas de curso de “guaches a mijo”, acreditavam nele e nas suas conquistas virtuais, já nem o bagaço conseguia disfarçar a sua grave perturbação de ansiedade. Deu lustro ao cachucho de latão a imitar o ouro.
- Ainda está aí? – Perguntou o psiquiatra, com a esperança de que o pintor disfuncional tivesse ido lamentar-se para outra freguesia.
-A minha flauta já não encanta ninguém – gritou, com uma voz pindérica.
Eram complexas as circunstancias em que se desenvolvera a sua gestação existencial, em subúrbios clandestinos e mal cheirosos da Brandoa profunda, que o levaram a desenvolver um passo foleiro e trôpego, com uma silhueta alquebrada e uma prosa analfabeta.
- Fique sabendo que estou a escrever um livro, – urrou, tentando esfregar as nódoas profundas de cor amarela das calças pretas compradas nos indianos do Martim Moniz.
E disto isto com raiva desligou, ficando sentado no chão a coçar a próstata e a lembrar-se da oxigenada da imobiliária.







Sunday, April 10, 2011

Um pincel fora de prazo - I


Camarada Choco
Aventura 78
 O Pintor Alienado

Trabalhamos sobre o sonho, a alucinação e a memória. É um território em que a imaginação e a realidade estão ao mesmo nível, ao ponto de já não serem capazes de os distinguirem. E foi assim que o  pintor alienado viu um rapaz atlético, alto e espadaúdo, de olhos vivos, capazes de engolir todas as fêmeas presentes no Festival da Canção do Intendente. Tocou ao de leve no reflexo e com a ponta dos dedos os lábios. Ainda teve tempo de ver os olhos rasgados a luz, e um sorriso de marfim. Desviou o olhar da água da retrete e ficou de frente para o espelho. Foi envolvido por súbitos clarões, fragmentos curtos de relâmpagos, fantasmas reais, que o transformaram a preto e branco, com muito grão, num espectro psicótico, a roçar o niilismo, mergulhado na escuridão angustiante dum WC duma taberna da Brandoa profunda, partilhando a solidão dos sentimentos. Havia no pintor alienado uma inquietação, não se insinuava qualquer linha de fuga imprevista, estava num estado de insanidade porque tinha tomado consciência da humilhante situação a que chegara. Os segundos passaram um a um. Olhou para o velho patético com cor de caixote de fruta do MARL e cabelo de caniche tinhoso que estava diante de si, e não fez um gesto, não disse uma palavra. Sentou-se na retrete e tornou a observar o seu reflexo. Para ele o amor era um lugar estranho em que o tempo era medido pelo número de cuspidelas.  O pintor alienado pertencia a uma casta incapaz de navegar em espaços não analógicos. Já não via as coisas mas o espaço em volta delas e por isso sentiu que os seus sentidos estavam a perder a unidade, a sombra escura nos seus olhos luminosos mostravam que o sentimento era carnal. Era uma das mais sérias crises de dimensão psicanalítica.
- Não aceito o que me foi oferecido, - gritou, levantando-se e pondo as mãos nas hastes de veado com que a alucinação da andropausa o tinha presenteado.
Acreditar nestes estados psicóticos tinha sido um imperativo de sobrevivência deste ressabiado da Brandoa profunda com laivos de doutor. A convulsão era agora muito maior que a vida, e por isso tirou rapidamente o telemóvel clandestino das cuecas borradas e discou o número. Deu dois toques e desligou.
- Não…este não, vou escolher outro.
Olhou pela janela e viu um sol branco. Reviu-se na sombra de uma árvore centenária. Estava sem nenhuma perspectiva de integração. A palidez da pele do homem sem rosto não deixava dúvidas de que já não havia um pingo da pouca razão que os genes lhe tinham dado. Saiu da zona do cagatório e viu a sua sombra passar por si arrastando os pés pelo soalho. Sonhou com palavras, imagens e cores de um tempo que nunca existiu, onde uma mulher emergia súbita e gentilmente da leveza do ar, lhe sussurrava ao ouvido com frases que corriam, paravam, recuavam, avançavam, desapareciam e reapareciam. Foi acordado pelo flato de um dos colegas do bagaço. Estava tudo desfocado, desproporcionado. Sentiu um estranho, não corpóreo, porque não podia tocar, mas que podia escutar e encarar como um concorrente. Viu então a imagem da vítima do momento, e foi com  uma vigorosa alucinação que o tonto interminável, habituado a viver no lixo, tocou na tecla de chamada do telemóvel clandestino, cheio de dedadas acastanhadas. Quando a nova vítima da mais alta inutilidade da Brandoa profunda atendeu, as emoções espontâneas do pintor alienado de paredes da Brandoa fizeram-no gritar frases soltas com estrondo, levadas por um vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro de uma retrete. Revelou-se neste momento alguém com um Q.I. abaixo de anémona, um lixo insano.

Wednesday, March 30, 2011

Agarrem que é ladrão

Camarada Choco

Aventura 77

Apesar de já não poder guiar o “machibombo”, o Castanheira ainda estava “prás curvas”, e foi por isso que o intruso não passou despercebido e teve de acelerar mal se apanhou no exterior da Escola para Desaparafusados & Afins da Venteira. Mas no seu encalço ia o motorista mais famoso da Brandoa, capaz de conduzir uma carrinha de nove lugares com trinta Desaparafusados, e dos grandes, no interior, mais a Mosca Morta, a Tété Destravada, a Jaquina, e quantos fossem precisos, e tudo isto sem usar os travões na maior descida do local, com 90% de inclinação, que colocava sempre o conteúdo estomacal da Careca colado ao pára-brisas, altura em que o Castanheira passava a guiar por instinto. A primeira curva foi feita em slide, o intruso, que passará a ser conhecido como Xungoso, pareceu ir capotar, enquanto que o nosso herói  começou a ter “rates”, sinal de que as válvulas do escape já estavam lassas devido à idade; na recta o Castanheira ainda conseguiu pôr o turbo, mas foi traído pelos óculos chineses que insistia em usar, e por isso não viu que o Xungoso se despistara e entrara de rompante num dos prédios. Felizmente as carcaças da padaria serviram de air-bag e o nosso herói pode regressar à escola são e salvo. Deu de caras com a Afilhada Principal, a única vítima do Xungoso, que ameaçava tudo e todos com um mês de raiva, pois o intruso roubara-lhe o que de mais precioso tinha:
- Dinheiro?? – Perguntou a terapeuta Zézé.
- Isso não interessa!
- O B.I.? – Questionou a Fisio Raposinha.
- Faz-se outro!
- O Multibanco? – Interveio o Vira-Bicos.
- Tenho mais!
- Cheques?
- Nãooooooooooo!
O mistério adensou-se, porque é que a Sobrinha Principal ameaçava lançar a bomba atómica? Nem uma promessa de aumento a fez deixar de espumar. A verdade veio a seco:
- O Xungoso ousou levar a carteira onde eu tinha a foto dos meus anjinhos a atirar a vizinha do r/c chão do telhado do prédio!
Era demais, nem com o argumento de que oportunidades  de registar os seus meninos em actividades pedagógicas iriam ser diárias, a convenceram a recolher as garras.
- Eu quero a foto!
E tudo se esclareceu algum tempo depois quando se descobriu que após o despiste o Xungoso largara a carteira. Mesmo assim a Afilhada Principal apresentou queixa às autoridades, e prometeu apresentar como prova as imagens dos filmes clandestinos da Madrinha, a Dra. Com Caneco (ex-Sem canudo).
- Ordeno-lhe que deixe de apresentar queixa, - gritou a Dra. Com Caneco, com receio de também passar a ser companheira de carteira do Xungoso.
- Nem pensar, o seu colega…perdão…aquele indivíduo, quase traumatizou os meus meninos, - berrou a Afilhada Principal, de dedo em riste. – Se eu chegasse a casa sem a foto, os meus anjinhos poderiam deixar de arremessar velhas do telhado, e isso teria com toda a certeza implicações nas suas vidas adultas. Eu quero ver a cara do Xungoso, para o atirar do prédio mais alto da Venteira.

Thursday, March 24, 2011

A Caminho do Caos

O Camarada Choco

Aventura nº 76

Quando a Menina Tatrícia viu a amiga da Mosca Morta nem quis acreditar: sapatos de agulha, cabelo Estilo Moisés, calças rotas da Brandoa, unhas primorosamente pintadas, carinha laroca, e decote atrevido. Distribuía miminhos pelos Desaparafusados e sorrisos Pepsodent aos Aparafusados.
- Vens trabalhar para aqui, vens – resmungou a Menina Tatrícia. – A primeira vez que mudares uma fralda e ficares com merda nas unhas, voltas para a loja a ganir.
Mas não foi assim, a Pirosa apaixonou-se perdidamente pelo Choco e nunca mais largou o clube...integrou-se. E num dia de chuva os Desaparafusados que estavam à responsabilidade do padrinho do Choco foram acordados, enquanto dormiam alegremente no ginásio, por um som descorporizado, onde se via através dos ouvidos, hossanas atrás de hossanas, entre o estridente e o inaudível. A Pirosa arriava de olhos fechados na Lobisomem, que assimilava os papo-secos ao mesmo tempo que gritava por todos os poros, no meio de um lusco-fusco com cheiro a merda, à frente de uma turba em estado letárgico, reflectida no espelho do cagatório número 3, que já não via o pano da Kalélé há várias semanas. O corpo da Lobisomem estremecia à medida que ia enfardando. Na sala da Dona Pilca, já praticamente reformada destas histórias, a Barbuda não aguentava a pressão e declarava-se perseguida pelos colegas Desaparafusados, e por isso ameaçava greve à apanha dos croquetes diários das cadelas se as condições de trabalho não fossem imediatamente alteradas:
- Não quero ser mais chamada de Barbuda, exijo ser tratada por Lili Kroketes, com dois “k”. Entendido?
De Desaparafusados percebia o Stor Pobre, sentia-os à distância, em qualquer lugar, a qualquer hora:
- Tens toda a razão, é justo, a partir de agora a ordem para ires apanhar os croquetes vai ser dada em código e não te dirijo o olhar. Vou fingir que é com um dos teus colegas que estou a falar.   
- Aceito, – disse a Barbuda…perdão, a Lili Kroketes.
A palavra passe passou a ser “Barrote Croquetes”, com o Stor Pobre de olhos colados no monga Raló, e o Bitó a fazer de eco. E como não havia duas sem três, entrara outra sala em convulsão:
- Tinto, trocou o clássico cinzeiro por carrascão? – Gritou a Dra. Sem Caneco (ex Sem Canudo) sem se aperceber de que na sala ao lado (a quarta!) acabara de tirar o Nélinho do seu estado natural de letargia libertando-o, mais uma vez, dos seus impasses, e continuou. – Com estas garrafas de tintól para muitos dos nossos queridos Desaparafusados não vai ser o “Dia do Pai”, mas um normal “Dia da Pinga”.
- Mas a garrafa é do tamanho dum bribon, para esses não lhes faz efeito nenhum, – justificou-se a Sobrinha da Tarde Número Um, já com meia-paralisia facial.
Felizmente a cena foi interrompida pelo ciclone emocional, e já rotineiro, do Nélinho, que exigia a presença imediata da Doutora Sem Caneco no primeiro andar, para um taco-a-taco. A Madrinha já tinha mudado de alvo e estava agora com o estado compulsivo virado para a Beta Cigana que, por ser namorada do filho do presidente, passara a bater diariamente em todos os colegas Desaparafusados do Lar e ameaçava com despedimento os Aparafusados que a impediam de distribuir os papo-secos. Mas o problema mais grave dizia respeito ao Choco, mais precisamente ao seu pepino, que ele insistia em esgalhar diariamente ao longo dos últimos meses, tendo sido até aqui classificado o gesto pelos especialistas como “punheta”, mas que agora mudara de figura ao ter sido descoberto um terceiro tomate. Informada a mãe, o caminho da urgência do Centro de Saúde foi a atitude mais correcta, mas a Dona Native não se revelou, mais uma vez, a pessoa indicada para transmitir ao “dótór” a descoberta:
- Ele “em” um “tico-tico” (sic), passa a “ida” a tocar à gaita, – disse de rajada a progenitora Desaparafusada.
Nem aqueceram o lugar, foram de imediato recambiados para a consulta de psiquiatria, como já era habitual, pois o “dótór” insistia em despachar todos os doentes de rajada, para assim atingir a quota diária e pirar-se para o privado, onde fazia o mesmo mas amealhava muito mais.    








Sunday, March 13, 2011

Venteira Brinca




Camarada Choco
Aventura 75
As autoridades da Venteira queriam impressionar o povo, e assim convidaram todas as escolas da zona para um grandioso desfile de Carnaval, mesmo as do interior profundo, que iriam mostrar a todos que a paixão continuava a ser o tacho…perdão a Educação. Por isso foi com orgulho que a impagável Doutora Sem Caneco, apelido que substituíra o verdadeiro, “Sem Canudo”, alegando pressões políticas dos adversários, que desejavam roubar-lhe os tachos…perdão, o labor e a dedicação “aos coitadinhos dos Desaparafusados” (sic), recebeu das mãos do Presidente da Junta o convite para o mega desfile à roda do chafariz. O ofício que chegou às salas ordenava a todos os participantes para estarem devidamente apalhaçados às 10 horas da manhã, afim de irem conviver com os Aparafusados da rua de baixo. O Pitrongas apresentou-se como candidato a super-herói, com uma toalha vermelha de bidé a fazer de capa, o pijama azul do pai a acentuar-lhe o ar feminino, e as cuecas encarnadas fio-dental da mãe a dar-lhe o imprescindível toque aerodinâmico; o Ládi Manquê, também conhecido como o Coxo-Mais-Rápido-da-Brandoa, apresentou-se impecavelmente travestido com o equipamento da selecção de futebol de Cabo verde, a terra onde tinha aberto o coco de lés-a-lés, após uma queda nas rochas, e perdido grande parte do conteúdo esponjoso, que fora rapidamente substituído por areia da praia; o Choco, impecavelmente vestido de Cobrador do Traque, estava vidrado numa colega metida entre plumas, decote estonteante e pêlos que mergulhavam em profundezas convidativas, tão vastas e abundantes como pradarias, e por isso a mão direita aumentara as rotações debaixo da mesa, como já fazia habitualmente; a Doutora Sem Caneco apressava a comitiva, tudo nela era excessivo, a voz arrebatada às profundezas, a cabeça em movimento de rotação, excetuando o discurso que se mantinha naturalmente incoerente, abrindo as caixas das fantasias com raiva antes que tudo se desmoronasse na incredibilidade:
- Onde é que está o chapéu multicolor? – Perguntou, já com ar de arrufo.
Por momentos a Dona Pilca ausentou-se e ficou entregue ao seus próprios pensamentos, que lhe davam a imagem da chefe a entrar no Ministério com o fato de banho azul, que doara à Mary Maluca, com todos os sovacões ao léu e o soberbo chapéu de Pierot, que agora procurava desesperada.
- Pilca, – gritou.
- Não disparem, não disparem, – levantou-se estremunhada a já afamada Pintora de Guardanapos da Venteira, fazendo um enorme bigodão a um anjinho com a cara do Cabo Pilas.
À sua frente estava a Doutora Sem Caneco atrasada para uma reunião de angariação de fundos na capital, atirando contradições e paradoxos, e já à beira de se metamorfosear em algo cheio de dissonâncias, e do seu lado esquerdo passou apressada a pequena Lolita, o seu fiel Cobrador de Fraque para Prendas & Afins, imitando na perfeição os trejeitos da hilariante Madrinha.
- Meta já todos estes Desaparafusados na rua, e use esse pincel que tem na mão para dar retoques aos que não estão devidamente apetrechados para este dia tão chato…perdão, feliz, – gritou a senhora absoluta da Escola para Desaparafusados & Afins da Venteira, fazendo um gesto que exprimiu na perfeição a cacofonia dos doutores, autênticos doentes que prescrevem receitas, os seus chavões, o seu palavreado, repetido vezes sem conta em enfadonhos oráculos, responsáveis pela fragmentação do seu talento (fim de convulsão do escritor).
Quando o gang de Desaparafusados chegou ao local o mundo parecia estar a rodar a uma velocidade inferior ao normal e os seres atordoados pelo efeito do Tegretol. Foram recebidos por um palhaço com um dilema identitário, deixado para trás numa qualquer encruzilhada pedagógica, que lhes perguntou gentilmente:
- Querem pela frente ou por trás?
Após um espaço e um tempo de inércia, em que a Terapeuta Zelietta corou e se inquietou, ouviu-se um sonoro suspiro, e quando se preparava para responder levou uma cotovelada da colega, que a fez engolir em seco o que lhe ia no mais fundo do seu Sub-Consciente, que se caísse nos ouvidos errados dava com toda a certeza como pena um ano inteiro de Padres-Nossos e Aves-Marias, e cem voltas a Fátima de joelhos.
- Pergunte àquela sueca, – respondeu a Stora Raquete, com uma voz doce e frágil, apontando para a Sobrinha da Tarde Número Um, que aproveitara as festividades para se transformar naquilo que os genes lhe tinham negado.

Tuesday, March 08, 2011

E depois do "Adeus"


Camarada Choco
Aventura 74
O impagável Cabo Pilas nem queria acreditar no que via. No hall da entrada da Escola para Desaparafusados & Afins, da Venteira, alguém tinha afixado um papiro, extenso e exigente, uma promiscuidade entre imagens e letras, onde o texto era redigido em camadas, incorporando indecências e subtextos, com uma liberdade e engenho que levava os leitores, Aparafusados e Desaparafusados, a não saberem exactamente onde estavam. Era uma mistura crítica dos costumes e do misticismo que coabitavam na Escola mais famosa da Venteira.
- Até na hora da despedida me insulta, – resmungou, esfregando, com rapidez e repetição, as mãos uma na outra, exibindo alguns desajustes relativamente ao espaço onde labutava, metamorfoseando-se em algo cheio de dissonâncias, porque nunca tinha aceite o tempo da vanguarda.
Aquele quadro deixara o Cabo Pilas num estado de desaparecimento ontológico, para ele o papiro era uma espécie de buraco negro na iminência de o engolir. No fundo deste desabafo havia uma história, uma ilusão, inconfessabilidades onde a libido e toda uma esperança foram afogadas por graves problemas de vizinhança, e tudo isto por uma troca de nomes mal calculada: em vez de “Dr. Cabo Pilas” saíra a frio e sem retorno um “Chiquinho”! O ex-militar vinha atordoado do primeiro andar devido ao vazio da sala vizinha, e revoltado com a firmeza dos seus valores, das suas esquisitices que divertiam os colegas, que estavam ensopados no seu ADN e talvez nos odores das cuecas molhadas. Segundo a lenda, a figura rígida e confusa do Cabo Pilas devia-se ao facto de ser descendente directo de Adão, e duma infância e adolescência aconchegadas, que o tinham convencido da sua genialidade e sapiência, e daí a sua incessante procura pelo amor-perfeito.
- Comporta-te Pilas, – disse baixinho de si para si. – Deixa-te de lamechices, ela foi-se embora para o meio do Atlântico, e isso é bom para ti, o teu espaço vital aumentou, – e susteve a respiração, ao mesmo tempo que fazia um percurso geográfico e mental ao primeiro andar.
O seu pensamento catastrofista foi momentaneamente interrompido pelo aparecimento do seu irmão gémeo univitelino, que lhe deu os bons-dias. O percurso da Prima da Afilhada da Doutora sem Canudo até ao primeiro andar tinha sido atípico e contra a corrente dos direitos adquiridos. Entrara na vizinhança do Pilas a seco, sem pedir licença, e sem pausas. Recusou manter-se submissa a este eterno candidato a chefe libidinoso e autocrático, que só conhecia a vida no limite da tortura física e mental, com um subconsciente carregadinho de sal.
- Kodac, o que é que estás aqui a fazer? - Perguntou a Psicóloga Morena, que acabara de entrar e o olhava de costas.
- Mas que mania, já está cá há tanto tempo e não nos consegue distinguir?
- São os malditos pescoços!
Subiu com tristeza a escada e fechou com leveza a porta do gabinete, regressando à pureza selvagem, cheio de dores metafísicas, contradições e paradoxos.

Tuesday, March 01, 2011

A Batata Quente (versão nova do Desenvolvimento Pessoal e Social)


Camarada Choco
(nova versão do Desenvolvimento Pessoal e Social)


Tinha-se chegado a um ponto sem retorno, o abismo estava cada vez mais perto, a ponte para a outra cueca...perdão...para o outro desejo, tinha de abrir caminho a todas as aventuras e sonhos, e as almas brutas dos Desaparafusados estavam carregadinhas de emoções intensas, irresistíveis, de gestos, de rituais interditos, de quem os Aparafusados fugiam como o Diabo da Cruz. A Natureza andava a brincar com os Desaparafusados, negava-lhes muitos dos direitos dos Aparafusados, mas em relação a este aspecto punha-os ao rubro, e aí os Aparafusados empunham a ditadura da teoria que lhes negava a socialização da prática. E foi assim que, mais uma vez, o tema “sexo” ficou a cargo da Doutora das Almas, uma expert em secas, que decidiu que os Desaparafusados adolescentes iriam fazer uma visita de cortesia aos Desaparafusados com idade de voto, mas sem esse direito, apesar de muitos deles terem mais capacidades do que muito dos Aparafusados que iam às urnas. A excitação estava dentro dos parâmetros normais, incluindo várias borras, mijas e convulsões de última hora. Na sala a formadora esperava pacientemente os utentes, entretendo-se a desenhar no quadro um objecto constituído por dois círculos pequenos e uma linha recta avantajada. Os assistentes foram-se acomodando à medida que chegavam e algum tempo depois o local já fervilhava de mongas teenagers inconsequentes.
- Bem, podemos começar, – avisou a oradora, apontando para o desenho. – Isto é um Pénis! Alguém sabe o que é um Pénis?
- Énis...Énis, – levantou-se de imediato alguém da assistência com o braço no ar. – Énis, Énis.
- Diz lá, Palmira Melga, o que é um Pénis?
- Énis...Énis, – gritou em estado convulsivo, sendo acompanhada pela multidão em histerismo. – Énis, Énis.
- Vá lá, explica aos teus colegas, – insistiu a Doutora de Almas.
E como um gesto vale mais do que mil palavras, a adolescente puxou de imediato o Choco, que estava ao seu lado, e prontificou-se para mostrar o que era o “Énis”. O macho não cabia em si de contente por ter sido ele o eleito e deixou escapar a sua enorme língua de encontro ao chão. Abriu os braços e avançou a bacia em sinal de cooperação.
- Énis, Énis.
Puxou pelo indicador da mão direita e colou-o de imediato nos ténis vermelhos número 50 do seu querido e respeitado Choco. A decepção foi geral, mas não evitou que a turba exibisse sem pudor os seus ténis. O retorno à calma só foi possível porque o stock de drunfos estava sempre por perto, e até a doutora tomou um dos vermelhos, pois o tema também a enlouquecia.
- Énis, Énis, – repetia sem descanso a Palmira Melga, alheia ao caos em que se transformara o “Desenvolvimento Pessoal e Social”.
- Quem sabe o que é um “pénis”? – Insistiu a oradora.
De imediato o Choco tomou a iniciativa e, saltando para o palco, tal qual um felino, gritou bem alto para quem o quisesse ouvir:
- Áálho, áalho, áalho, – rosnou o herói do cinema mudo, ao mesmo tempo que baixava furiosamente os calções...perdão, os cinco calções multicolores vestidos dois meses antes. Nem as vozes contra o demoveram da exibição e num piscar de olhos ficou com a cintura pélvica ao léu, mostrando ao público o apêndice, agora avantajado devido ao calor da discussão, torto e com um nó, graças a Deus. E no meio disto tudo ainda se ouviram dois gritos alucinados, um da Doutora das Almas e o outro da Madame Amorim, que desmaiaram com a emoção. O Choco permaneceu em sentido exibindo o seu fabuloso Chevrolet com os pneus furados, também graças a Deus, uma precaução da Natureza, não fosse ele querer seguir as pisadas dos progenitores e manter indefinidamente a inscrição da família Choco na Caixa Nacional de Pensões. E ficou ali, congelado, debaixo da luminosidade certa, único e insubstituível, coquete e apaixonado, com uma plateia ao rubro, que cheirava a sexo. Foi necessário esperar algum tempo para fazer sentar a Papoila que, devido à sua fraca visão, insistia em ver o Chevrolet, tendo-se para isso deslocado para junto do colega e colado os olhos no descomunal pepino. Quanto aos outros machos presentes, todos eles também exibiam os seus dotes às colegas interessadas...todos? Todos não, dois deles, o Ambrósio Caspa e o Monga Macaco, por mais que procurassem, não conseguiam vislumbrar os seus cacetes, ausentes devido às contingências genéticas.
- Amigos, tenho outra pergunta para vos fazer, – avisou a Formadora, conseguindo captar a pouca atenção dos presentes.
O próximo tema era difícil e por isso a Doutora das Almas avançou com muito medo:
- Alguém sabe o que é uma “Vagina”?
Foi demais! Com esta o Choco não se aguentou e atirou-se sofregamente à Zobaida, que permanecia no seu normal estado letárgico rodeada de moscas, mas foi traído pela sua visão estereoscópica, indo cravar os dentes na roda traseira esquerda, que apresentava um piso careca, despedaçando-a com estrondo, facto este que provocou um súbito desequilíbrio na pré-histórica cadeira de rodas, que não aguentou a traição da força da gravidade, arremessando, de imediato, o seu pesado conteúdo de encontro ao chão frio. Mas como o destino é muitas vezes madrasto, nesse preciso momento ia a passar a apressada Lolita que apanhou com os quilos da colega, mais os quilos da fralda, ficando espalmada, tendo tido ainda tempo de gritar:
- Organizem-se!
Foi com muito esforço que o Camarada Choco organizou os poucos neurónios, tendo o Conselho Pedagógico, que reuniu de emergência, deliberado amarrá-lo a uma cadeira com um saco de gelo entre as pernas. Decidiu-se também avançar com a projecção do pequeno, mas muito elucidativo, filme “A Actividade Sexual dos Caracóis, das Lentilhas e dos Percebes” da autoria do Alto Comissariado Europeu para a Inclusão do Sexo dos Desaparafusados (A.C.E.I.S.D.), responsável por muitas viagens transatlânticas das doutoras, com e sem canudo, dos ministérios, que estava previsto para o final da sessão. Entretanto, os organizadores desta educativa e pedagógica Acção de (Des)Informação acharam por bem também eles recorrerem à ajuda dos milhares de drunfos postos à disposição dos presuntos....perdão...dos presentes. O Fangio Espástico protestou porque queria que pusessem no ar a cassete com a gravação da sessão do canal 18 da TV Cabo do dia anterior. As lentilhas acabaram por ser mais eficazes do que os caracóis, pois conseguiram adormecer o impetuoso Choco, que encostou a cabecinha no regaço da sua amada Floribela. Quanto aos responsáveis pela organização, optaram pela fuga em frente:
- Vamos falar outra vez sobre “Vagina”, – continuou a titubeante oradora, lançando um olhar medroso para as suas colegas, ao mesmo tempo que ligava o projector de slides que atirou para o ecrã a imagem de uma rosa com a respectiva legenda: “Sexo Seguro”.O nome da Rosa abanou as profundezas da alma e das....cuecas, do nobre e altivo Choco, obrigando-o a dar um pulo majestoso, tal como um cobridor, mergulhando de cabeça no retrato...
- Ele vai dar cabo do ecrã – alertou a Doutora das Almas, conseguindo afastar-se a tempo do predador.
Não se sabe a causa, nem o truque utilizado, mas todos foram testemunhas juramentadas de que o herói saiu do local com uma rosa vermelha entre os dentes. Quanto à do ecrã, desapareceu misteriosamente sem deixar rasto.
- Lá vão as lentilhas outra vez, – gritou o projectista, rodando o manípulo do aparelho.
A doutora estava sozinha, fechada, tal como a sua mala escura, pousada na mesa. Encontravam-se na sala dois mundos separados, os Aparafusados e os Desaparafusados, pensando os primeiros que dominavam os desejos dos segundos.
O despertador tocou e a Doutora das Almas acordou sobressaltada. Olhou assustada para todos os lados, mas viu que estava só. Correu para uma mesa, agarrou nos papéis do projecto com que pretendia impressionar a Madrinha e aumentar o currículo virtual, e reduziu-os a pó. Deu um gole na garrafa de água, deitou-se, mas já não quis dormir mais!

Wednesday, February 16, 2011

O Cunhado do Choco (versão modificada)


Camarada Choco
O cunhado do Choco
 (versão modificada)
 Aventura 73
 
- Ôu er um é, é, - confidenciou a irmã do Choco, a Bélinha, no momento em que a mãe se preparava para apanhar um croquete que o Jardel, o único membro da família com os carretos no lugar, tinha largado à entrada do prédio.
A notícia desconcentrou a Dona Native, dadora dos genes riscados que os filhos ostentavam, e ela deixou fugir o guardanapo, enterrando os dedos no conteúdo intestinal do rafeiro.
- U ê? – Perguntou, reparando que a filha acariciava com ternura a barriga.
- Ôu ávrida do Árlos, - respondeu a Bélinha com um enorme sorriso.
- Tas ávrida do Senhor Pintor?
- Im!
A gravidez da Bélinha significava a perpetuação do reinado do cromossoma-coxo-dominante, herdeiro dum vasto império da Venteira, melhorado agora com um pincel de boa marca, que daria com toda a certeza lugar a uma brocha de cabeça larga. A emoção era tanta que depressa espalhou a notícia pelas redondezas.
- Ôu ser avó e sogra, e tudo graças ao Senhor Pintor, – confidenciou à Dona Palmira, proprietária do café mais chique da zona, cuja especialidade era o meio-gordo servido numa taça, ao mesmo tempo que o canídeo  forrava o tapete do estabelecimento com um brigadeiro.
- Ôu ávrida do Árlos, – repetiu a Bélinha.
A Dona Native era uma mãe orgulhosa, o seu filho tornara-se um violinista genial, sem coordenadas, depois do pai lhe ter oferecido uma guitarra sem cordas; e quando já desconfiava que a sua Bélinha tinha mais riscos na alma do que o irmão, eis que ela a surpreende com um netinho, e ainda por cima de um pintor libertino, em permanente crise existencial, senhor duma performance lendária, mas que ainda não tinha acertado contas com os seus próprios fantasmas.
Ao final da tarde rumou ao Centro de Saúde para dar a novidade:
- Dótóra, a minha filha está à espera de uma brocha de cabeça larga, – e apontou para a barriga da adolescente.
A médica já conhecia de ginjeira esta família governada por um pai com mão de alumínio, material com que fechava todas as varandas da região e arredores, que deixara a carreira escolar dos filhos se submeter à negligência e vontade da mulher. Foi por isso que o Camarada Choco conseguiu emancipar-se de maneira progressiva da sombra tutelar da mãe, e entrar em roda livre.
- A Bélinha está grávida?
- Im, im, tem o bucho eio com uma brocha de cabeça larga.
- E como é que sabe?
- Foi ela que disse! – Respondeu a Dona Native olhando para a médica com um ar de superioridade.
- E quem é o pai?
- O SENHOR PINTOR – respondeu, orgulhosa, em maiúsculas e a negrito.
Disse então à “Dótóra” que de início tinha ficado um pouco desconfiada pois não encontrara nas cuecas a cola pegajosa, a que chamou “mento”, produto exclusivamente masculino, mas a insistência da filha acabara por convencê-la de que ia ser avó. Contou então o sonho que tivera à tarde, ou talvez alucinação, fruto de alguma travadinha de que também sofria, onde via o Senhor Pintor a andar de baloiço com a sua Bélinha, enquanto ela segurava, toda babosa, um Choco de caracóis.
- A menina não está grávida, - disse a médica, abrindo a porta.
Cruzou-se na rua com um caniche, e foi esta a última lembrança que teve do netinho

Wednesday, February 09, 2011

Restaurante "O Tino"


Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Quando o Tino transformou a taberna, situada num daqueles sítios onde iam aqueles que não podiam ir a outro sítio, e onde o frio de fora juntava-se ao frio de dentro, numa casa de pasto, tinha como missão destronar o seu vizinho galego, dono do restaurante “Os Arcos”. E não era o único, porque o Senhor Xantola já andava na estrada, com o mesmo objectivo. O ex-sargento dos Comandos entrou a matar, oferecendo soberbos peixes amarelados, gostosas carnes esverdeadas, mergulhadas em molhos brilhantes, uma precursão do actual Sushi, onde o freguês podia optar por batatas cozidas cruas ou batatas fritas encharcadas no óleo do próprio cozinheiro, pratos estes decorados com saladas mornas e gordurosas, enfim, um serviço de primeira cuja conta vinha sempre num prato de alumínio amolgado, onde muitas vezes abundavam pequenos pêlos encaracolados, para dar um toque chic. As sobremesas eram feitas numa cave clandestina, tradição que se mantém actualmente na restauração da vila, e constavam de uma panóplia de gostosos sabores: “Bolo de Bolacha” da Sesaltina, feito com os restos das bolachas que o Zé dos Porquinhos comprava para o Bóbi, na drogaria do Zé da Antónia, e que tinham sempre a decorar as penas da última galinha abatida; “Baba de Camelo”, produzida na Terrugem de Cima pela mãe do Ánhuca ao fim de semana, altura em que ele tomava banho e mudava de meias, peças estas com que a senhora aproveitava para fazer massa de pasteleiro, usando só farinha, porque o molho já lá estava; “Doce da Avó”, receita exclusiva da Maria das Bicicletas, cujo ingrediente principal era o óleo que o Cabrita lá ia mudar todas as quintas-feiras; “Delícia de Amêndoa”, feita com as crostas que o Pingalim gamava à tia. O Carlos Ponta cresceu com os amigos neste ambiente cultural e, segundo o senhor Mac Macléu Ferreira, “a restauração ficou para sempre hibernada no In deste jovem cabeçudo”, pronta a despertar ao menor sinal, o que aconteceu durante o fogo de artifício na viragem do século. Manteve os pratos, mas trocou-lhes os nomes, “Treco Lameco”, “Creme Brulée”, “Pistôn de Foie Grás”, “Cracker Cake”. Mas voltemos ao sargento: estava imparável, pois em frente a este formoso restaurante abriu também um “Salão de Jogos”, com a última novidade em máquinas da terceira geração, vindas directamente do fornecedor oficial, o senhor Zé de Porto Salvo, nome de todos os desvarios e de todas as errâncias, de todas as grandezas e de todas as decadências, uma espécie de Vale de Azevedo autóctone. Mas o “Manuel da Leitaria” também dava cartas a todos, juntamente com o snob “Papagaio”, cuja especialidade era meio-gordo à taça, que o Pontas mudou para “White Express”, enquanto que o “Bachil” arrasava com as célebres “Bifanas à Casa”, que gritavam mergulhadas num molho borbulhante castanho amarelado, que hoje dá pelo nome de “Steaks plongé dans punhétê”, para já não falar do tão afamado “Kitanda”, especialista em “Pombo Abafado” ( ), um produto do campo exclusivo da Avenida que os filhos do Manelinho do Estrume, um autodidacta amante deste tipo de aves, que engravidou a filha depois da mulher ter fugido após o décimo quinto parto, alimentavam diariamente com sementes desviadas da Gaiola do Ligóia. Mas o Tino sobrepôs-se, porque conseguiu juntar o princípio da realidade ao princípio do prazer, e por isso havia zangas, despiques, rixas, litígios, zaragatas, amizades que se reconstituíam no fim da noite, com as garrafas a voltarem a esvaziar-se. “Tradição que se perdeu com as modernísses do senhor Carlos Ponta”, confidenciou um dia o empresário Mac Macléu Ferreira, “onde os Pierre-Pomme-de-Terre de agora se apresentam de fato e gravata, e cujos dissídios são em voz baixa e não ultrapassam as fronteiras das mesas, apesar das cóleras serem as mesmas”. No Tino não havia pausas, enquanto que agora elas eram enormes, os clientes por vezes caiam, levantavam-se e regressavam. Antes bebiam e estavam contentes, agora bebem para afogar o medo, porque sabem que vão ter de pagar com o dinheiro que não têm, pois fazer carreira agora é encher de graxa o chefe libidinoso. E se por acaso não fosse no Tino, bastava um dos adolescentes do Gang dos Meninos Ricos, Caucasianos e de Boas Famílias de Paço de Arcos, pôr os peidociclos a trabalhar, para que os outros saíssem logo a correr, ficando a conta por conta da casa!

Saturday, January 29, 2011

O Senhor das Imperiais


Camarada Choco
Aventura 72


O Kodac era o mais fiel empregado da Dona Espatinha, revendedora do famoso Bolo de Baba da Venteira, da autoria da Terapeuta Zézé, que já tinha entregue um projecto ambiental para o fabrico de Queijadas de Quiabos, aproveitando o molho das fraldas, estando à espera do veredicto da Doutora Com Caneco. Quando o monga barman entrou na casa de banho fechou a porta com gentileza, baixou as calças com elegância e sentou-se confortavelmente na retrete, que já estava com a boca aberta à espera do seu formoso cagalhão. O Kodac sentia-se esquisito desde que começara a chupar os comprimidos receitados pelo médico, a pedido da mãe que estava desesperada com os seus inúmeros vícios, e que neste caso dizia respeito ao tabaco. Mas agora o fiel empregado da Dona Espatinha chupava e fumava uns a seguir aos outros, e por isso a mãe retirara a queixa do álcool, não fosse ele chupar, fumar, chupar e beber. E como o filho se recusava a vir na carrinha escolar com os “malucos” (sic), pois isso impossibilitava-o de passar por todas as capelinhas do caminho, onde se aproveitava do estatuto de Desaparafusado para pedir, não “pão por Deus”, mas sim “bejecas e garrés por malucos”, chegava assim todos os dias carregadinhos de cevada e de nicotina à escola, e no hospital, onde trabalhava no café dos médicos, passara de “trabalhador monga exemplar” para “trabalhador normal”, devido a todos estes vícios que deveriam ser exclusivos dos Aparafusados. A Doutora Com Caneco não teve outro remédio senão tomar medidas drásticas para tentar salvar o posto de trabalho do seu aluno, obrigando-o a vir na carrinha com os “malucos” (sic). A intensidade emocional e a honestidade sem mácula eram a imagem de marca deste Desaparafusado, e era por isso que fazia questão de mostrar sempre ao Stor Pobre as novidades no telemóvel, os novos filmes pornos que os amigos Aparafusados insistiam em presenteá-lo, a cada fim-de-semana, onde o tema principal estava relacionado com o”fumo”, não de “garrés”, mas sim de charutos estilo “habanos”. Os conselhos do mestre para só usar aqueles conteúdos, muito comuns nas escolas dos Aparafusados, e que agora chegavam em força aos Desaparafusados, sinal de que a célebre “Inclusão” estava a fazer o seu efeito, em casa, de nada serviram. O telemóvel do Kodac parecia o cinema Olímpia nos seus anos de ouro, estava em permanentes sessões contínuas. Por isso foi com raiva e lágrimas nos olhos que fez força na tripa para expulsar o conteúdo endurecido pelo excesso de nicotina que lhe forrava o corpo anafado. E foi no meio desta percepção difusa, em que a realidade e a alucinação se embaraçam, que entrou, sem pedir licença, o sempre inconveniente Pitrongas, que foi confundido com a namorada, a Barrote. Sem floreados, nem rodriguinhos, o Kodac foi directo ao assunto, conseguindo mergulhar o Pitrongas numa espécie de Barrote, como se um pingo de amor lhes houvesse tocado a pele e transmutasse a realidade numa coisa a um palmo acima da do comum dos Desaparafusados, obrigando o colega a fazer um gesto ousado daquele que não se deve aconselhar, um faz de conta de um movimento de conjugação de diversas formas de um mesmo amor, que teve no sacrifício do Pitrongas o seu limite. Este foi assim obrigado a fazer movimentos insidiosos e persistentes com a mão, e segundo a lenda também usou a ponta da língua, que levaram o Kodac a sentir um desejo inconfessado, perdendo ambos a noção de que não podiam continuar onde estavam. Mas, quando o Kodac convidou o colega para o jogo, quis fazer uma ínfima variação no seu quotidiano de desamparo extremo, mitigar as dores, ir ao encontro de Freud. E foi mais longe!
Quando a Afilhada da Tarde Número Um tomou conhecimento dos factos teve uma semi-paralisia facial, que a obrigou a cuspir fininho…perdão, a debitar discurso com uma voz mais esganiçada do que a habitual, convocando de imediato todos os possíveis responsáveis pelo encontro imediato, tentando descobrir o número exacto de imperiais que o Pitrongas tinha tirado, tendo uma assessora como testemunha. E foi a partir desta projecção numa história alheia reduzida ao mínimo dos mínimos, que nasceu toda esta ficção, transformada num caso clínico de compulsões obscuras, que usurpou toda a realidade, salientando, mais uma vez, as neuroses sistémicas dos Aparafusados.

Sunday, January 09, 2011

Transformer


Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


O Gang dos Meninos Ricos, Caucasianos e de Boas Famílias de Paço de Arcos (GMRCBFPA – homologado pela paróquia), tinha no seu seio um capitão, vindo directamente da 5ª Divisão, depois de duas gostosas comissões em Cabinda com um pelotão de pretos, a pedido do próprio, e de que tanto se orgulhava. Para este militar de Abril o gang de tenrinhos equivalia às 60 virgens dos árabes, ou seja, estava no Paraíso mesmo sem ter morrido. Todos o viam como uma espécie de “tio” que fazia as vontades dos sobrinhos, e nunca ninguém as dele, apesar de haver sempre dúvidas em relação a alguns. Como vivia dos rendimentos, mesmo tendo no apartamento uma imagem do Che com a sua cara, o capitão era senhor de muitos hobbies, como por exemplo ver de binóculos o Chico Sá na casa do Pimenta, tentando adivinhar o tamanho da sua piroca. O Capitão Porão tinha um mini-branco que estava constantemente carregadinho de conguitos caucasianos, de onde se destacava o Marreco. A inveja das teenageres ia crescendo dia após dia, pois para fêmea já lá estava o proprietário, um garanhão de pêra e bigode. O carro passava a vida a subir passeios, a maior parte das vezes por vontade própria do condutor imberbe, acto este que fazia as delícias do instrutor, que aproveitava sempre a ocasião para o corrigir, correcção esta que começava com um apalpão na coxa. Como os adolescentes já sabiam que a seguir ele iria tentar tirar-lhes “ranho à cobra”, deitavam de imediato a mão ao travão, obrigando o capitão de Abril a bater com os cornos no vidro. Mas mesmo assim o seu riso denunciava que levar pancada da miudagem com pelugem também era o seu forte. E era precisamente ao volante, mas fora destes momentos “Ferrero Rocher”, que o Capitão Porão se transformava, não numa super-mulher de pêra e bigode, mas sim num macho estilo Rambo (com “m”). Uma das situações passou-se na ponte sobre o Tejo, quando se colou à viatura da frente, na faixa de ultrapassagem, e buzinou toda a travessia, porque ao volante do carro da frente ia um velho que, perante tal algazarra, não conseguiu mudar de faixa e teve de gramar com o “cobridor” durante largos minutos. O capitão ficou com as calças encharcadas de baba e o ego do tamanho do Tarzoon, pois mostrara à canalha que a sua fama não passava de boatos. Após esta cena simulou uma quarta na perna do Ginja, seguida de uma quinta virtual na maçaroca do Marreco. O dia ia ser longo, pois a sua casa estava ocupada pelo amor da sua vida, o adolescente mais asiático da vila e a nova amiga, uma cabrita fugida de Lisboa, e só quando o pano branco estivesse na janela é que ele poderia subir, pois era sinal de casa vazia. Rumou então para o café do senhor Américo, antevendo já uma refeição de “pipis”. O tema foi “Política”, e mais uma vez o Capitão Porão mudou de sexo, mostrando a sua força telúrica que o transformou num impiedoso revolucionário da Sierra Maestra, capaz de abafar de uma só vez vários capitalistas sem escrúpulos, deixando-os com os escrotos vazios…perdão, feitos em fanicos. O anticlimax de timbre dantesco aconteceu quando o questionaram sobre o porquê do seu voluntarismo para uma segunda comissão em Cabinda, digna de um herói de Hollywood, visto estar sempre a ridicularizar a guerra.
- Por causa do meu pelotão de pretos, - respondeu de prontidão com voz grossa, mostrando já uma queda para as causas humanitárias, ao mesmo tempo que procurava com sofreguidão a culatra do Estalinho, que antecipou rapidamente o regresso a casa.
Quando teve autorização para regressar a casa já de madrugada, o Capitão teve de gramar ainda com um role de queixas do amigo chinês, desde a Estátua da Deusa Diana colocada por cima da cama que caía sempre na cabeça da cabrita nos momentos mais intensos da relação, até ao penico cheio de mijo que o militar insistia em deixar trancado na mesa de cabeceira, porque verter águas a meio da noite numa casa-de-banho a dois metros de distancia era muito cansativo, mesmo para um revolucionário habituado ao tamanho dos ditos dos gorilas de Cabinda, acabando a reclamação nos lençóis onde a amiga de Lisboa se recusava a brincar, porque desconfiava estarem minados de restos de festas de aniversários do capitão de Abril.

Friday, December 31, 2010

O Dia em que Paço de Arcos parou



Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
Quem se encontrava perto do Bigornas estranhou, os seus olhos estavam diferentes, até os óculos pareciam desbotados, o olhar já não era meticuloso, estava desleixado, enquanto que o dedo médio da mão direita, que apontava com frequência para o teclado do telemóvel, estava murcho. E gaguejava! Mas o primeiro sinal de inquietação dos amigos foi o grandiloquente devaneio teórico, acompanhado de salamaleques, que os informou que o próximo jantar seria no Salão Nobre da Jomarte, extinta há mais de vinte anos, o local onde todos os paçoarcoenses costumavam mudar o óleo…das motas. A ocasião serviria também para apresentar a nova fotocopiadora, a mais avançada da Península Ibérica, que iria fazer descontos para estudantes e militares. E tudo isto foi dito em registo telegráfico. Notaram também uma estranha tendência para a rarefação, enquanto que o seu apurado sentido gráfico tinha desaparecido.
O Bigornas era um paçoarcoense de quem quase tudo se sabia sobre a sua educação, desde a colecção completa da “Gina”, até ao “Curso de Gestão” (114 volumes), passando pelo “Major Alvega”. A Jomarte tinha-o iniciado na leitura e no amor, fora um estabelecimento estonteante, efervescente, cultural e socialmente, conservado pela força poderosa das imagens, e tudo mudou quando um dia uma misteriosa Kika lhe entrou pelo estabelecimento comercial “adentro”, não para tirar a fotografia da praxe para o passe da Linha do Estoril, mas para o engatar no transporte de uma bilha de gás, desde a “Leitaria Vitória”, que vendia meio-gordo à taça, até casa. Tornaram-se companheiros, almas gémeas, amigos e irmãos, até que o gás acabou e a amante se evaporou. A sofisticada loja “Jomarte”, cujo lema era “traz que eu compro”, entranhou-se nas memórias da vila, onde só um museu a poderá agora transformar em arte. Todas queriam ter um tal vizinho à distância de uma braçada, porque os horizontes culturais deste ícone de Paço de Arcos eram cultivados… Casa-Jomarte-Pica.
O anticlimax de timbre dantesco aconteceu quando um som intenso saiu pelas calças e causou uma tensão dramática entre aqueles que compunham a mesa, e o Bigornas gritou com escárnio, em tom de desafio, indo por isso passar a noite ao Hospital da CUF. Durante a madrugada, que deveria ser de repouso, a luz vermelha do gabinete da enfermeira acendeu com estrondo, indicando que o Bigornas estava com alguma necessidade.
- Desculpe estar a incomoda-la, – disse o paciente da Jomarte, usando uma voz sensual, e continuou. – Importa-se de levantar-me o coiso?
- O “coiso”??? – Pensou a mocinha, ao mesmo tempo que sentiu um arrepio por debaixo da bata, que lhe eriçou todos os pêlos adormecidos. – Seria que o paciente de meia-idade, anafado e caixa de óculos, estaria a convida-la para o deboche, a pedir-lhe que lhe tirasse o ranho à cobra?
- Vá lá senhora enfermeira, estou aqui às voltas e não consigo adormecer.
- O “coiso”, senhor Cruz? – Perguntou a senhora, já com a voz um pouco alterada.
- Carregue lá no botão para me subir a cabeceira, “faxfavor”.
Após satisfeita a necessidade nocturna, o Bigornas voltou à carga:
- E agora, já posso fumar um cigarro?
O que se pode dizer de mais seguro sobre o que se passou, é que a feijoada atingira o seu mais alto grau de condimentos, não sendo por isso ousado concluir que um “gigler” da bomba do Bigornas entupira, fazendo lembrar os velhos “rátés” dos peidociclos da Praceta. Mas bastou uma assopradela, bem colocada, no “coiso” do Bigornas, feita por pessoal experiente, para pôr de novo na estrada, sem restrições, este James Dean de Paço de Arcos. A “travadinha” do senhor Bigornas convidou a vila a retrospetivar a sua obra, tentando descobrir o lado poeta e metafísico desta personagem de culto da vila de Paço de Arcos, sem referências espaciotemporais precisas. E a sua Jomarte representou a força telúrica de um grupo, o seu potente folclore, visto como algo exótico e novelesco, que a prendeu a um circulo vicioso, a uma realidade que girou à volta do seu proprietário e que só teve um fim no horizonte: o trespasse compulsivo!

Saturday, December 25, 2010

A Lamparina do Além


Camarada Choco
Aventura 71

Nenhum poder na Venteira, nem acima nem abaixo dele, pode desviar a vontade da Madrinha, quando ela aponta numa direcção. A tradição era para se cumprir, assim obrigava a Dra. Sem Canudo: o ofício com a data do jantar de Natal já tinha sido afixado no vidro dos Serviços Administrativos pela Fininha e as eternas zangas estavam suspensas, até à próxima convulsão da chefe…perdão, até ordens superiores! O Cabo Pilas ficou liso, imóvel e transparente quando soube que a festa tinha sido marcada para o dia vinte e dois, onde sete anos antes o destino o ia levando de encontro ao S. Pedro, tal como o George Clooney, mas fora devolvido com os caramelos espanhóis e tudo. E mais traumatizado ficara quando algum tempo antes o grilo do despertador tocara a anunciar a entrada na casa dos quarenta, precisamente quando estava na intimidade do lar a tentar tirar ranho-à-cobra …perdão…a fazer o TPC de Ráqui, tendo-se recusado de imediato a aceitar mais esta partida do destino. Por isso de cada vez que mandava a mensagem diária à musa inspiradora dos seus TPCs, assinava sempre no fim: “do seu admirador secreto, o 39 mais 1”. Mas esta história não diz respeito directamente a este fenómeno da Venteira, mas indirectamente, porque tem a haver com o seu irmão gémeo clandestino, o Petit Patapon, o único motorista da zona que guia em pé. E isto tudo devido à sua cara-metade, a Maga Patalógica, que resolveu comprar uma peça original para a sessão de “Troca de Prendas”, uma iniciativa da já lendária Dona Pilca, autora dos “Abafo Palhacinhos”, um sucesso comercial do século passado, que levara a Doutora sem canudo a trocar de carro…perdão…a comprar uma nova carrinha para os coitadinhos dos Desaparafusados. Os tempos eram de paz, de tolerância e por isso foi com ternura que a Dona Pilca recebeu o embrulho das mãos do Petit Patapon, carimbou-o e colocou-o no cesto das roscas, à espera da tão desejada meia-noite onde acontecia sempre um fenómeno igual ao da Cinderela.
- Que coisa tão pesada, - refilou, mudando logo para um sorriso Pepsodent, como mandava a ocasião. – Parece ser um sapatão.
- A minha dimensão não é proporcional às surpresas que dou, - exclamou o caga-tacos, irmão gémeo não oficial do mais famoso Cabo da Venteira, piscando o olho.
A prenda saiu a frio à Doutora Yogurte: uma soberba Lamparina!
- Meu Deus, uma “Lamparina dos Desejos”, - gritou com satisfação. – É desta que mando às urtigas a Dra. Sem…
- Não diga isso que hoje é pecado, - avisou a Dona Pilca, ao mesmo tempo que recebia de braços abertos mais um presunto…perdão, presente, desta feita da sua saudosa colega de trabalho, a Dona Piulia, continuando com voz delicodoce. – Estás maravilhosa, a “reforma compulsiva” está a fazer-te muito bem.
- Tenho três desejos, é só esgalhar a Lamparina, - disse a Dra. Yogurte à sua colega Raquete.
Deu um apertão tão forte, que de dentro do objecto saiu um som intenso, cheio de espíritos sem céu e sem terra, com muitos corpos e muitas almas, vindos de uma região povoada de sonhos, devaneios e ecos distantes.
- Epá, a feijoada que comeste estava com muito feijão, Yogurte, - retorquiu, escorreito, o Dr. Fininho, o senhor das verdades inconvenientes, que tinha vindo substituir a psicóloga sueca, vítima do Bicho da Fruta, balanceando com graça a taça de meio-gordo.
- Meu Deus, isto é um aviso dos céus, ontem sonhei que vários dos meus Desaparafusados tinham batido a bota, depois de lhes ter dado uma fatia de um dos semanais “Bolo de Baba” da Terapeuta Zézé, - gritou a Dra. Yogurte atirando a prenda do Petit Patapon para cima do colo da Piúlia, que já estava mais para lá do que para cá, depois de uma dança alucinada com o Padrinho do Choco.
Quando a “reformada compulsiva” tocou na lamparina esta acendeu-se como um isqueiro e o Nélinho aproveitou a chama para acender o dito cujo, acto considerado como de claríssimo pendor romântico pela ex-Senhora dos Bordados e das Pegas, que tirou a língua da boca e pousou-a com cuidado em cima da prenda da Dra. Yogurte, que estava a segurar a cabeça com as mãos. Mas como não podia dançar com a lamparina na mão, o açoriano poisou-a na mesa mais próxima, e ela ali ficou, mesmo quando a festa acabou. Já no exterior o que restava dos convidados foi confrontado pela dona do estabelecimento, que se recusava a ficar com aquela “Lanterna do Além”, acessório muito em voga nos cemitérios.
- Eu fico com a lamparina, pois já tenho cliente para ela, - disse o Senhor Pintor, pondo fim ao Jantar de Natal da Doutora Sem Canudo

Sunday, December 05, 2010

O Comendador Rendas


Camarada Choco

Aventura 70

A Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois nem queria acreditar no que via quando entrou na sua sala: tinha pendurado na parede o retrato de um velho que parecia estar a convida-la para a luxúria. E a causa da morte da fotografia estava no canto superior esquerdo sob a forma de uma marca de pneus.
- Quem é que ousou pôr aqui este velho com ar duvidoso? – Perguntou a Sobrinha-da-Tarde- Número-Dois, sentindo um vento a puxa-la, e tendo uma visão imperfeita que lhe revelou um segredo de algo que poderia acontecer. – Velho tarado.
Resolveu investigar.
- “Comendador Rendas” - Leu em voz alta a legenda escrita à mão – e continuou. - Letra feminina…hummm.
- Letra feminina??? – Entrou de rompante o Nélinho com um arrebatamento eléctrico, revirando os olhos e engolindo as smarties que a irmã do Choco se preparava para comer. – Tropecei neste senhor hoje de manhã e resolvi trazer esta obra de arte para a sala mais indicada. É assim que a menina me paga os distúrbios que causo com frequência no seu espaço?
E para fazer jus à fama da sala que já era tão famosa como o Entroncamento, devido aos fenómenos para-normais, o novo inquilino também revirou os olhos.
- Já sei porque é que o Nélinho não pendurou o retrato na sua sala, - exclamou a Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois.
- Então diga lá, – gritou o açoriano, ao mesmo tempo que apertava o gasganete à colega Minhota, tornando a revirar os olhos e a uivar, ao mesmo tempo que arrastou a bacia pelo chão, deixando rasto como o caracol.
- Porque passavam a ser dois a revirar os olhos!
O mistério estava lançado, seria o Nélinho a encarnação do Comendador Rendas? O acaso nunca poderia ter reunido na mesma rua dois artistas destes, era demais. Com tantos Aparafusados e Desaparafusados a cruzarem a rua do Gameiro, porque é que o velho tarado teria ido logo ter com um autóctone de uma ilha açoriana, perdida algures no meio do Atlântico? Não, só poderia ter sido por uma questão de afinidades, o Nélinho e o Comendador Rendas tinham sido atirados um ao encontro do outro, e quando o primeiro viu um rasto de pneus na testa do antepassado, apercebeu-se de que era um aviso de que se não o levasse para dentro poderia acontecer-lhe o mesmo, ou seja, os céus darem ordem ao Cabo Pilas para levar o carro para a Escola, e como ele só conseguia ver a estrada se guiasse em pé, era sempre um risco acrescido para os peões daquela zona, que o dissesse a Dona Pilca, a primeira vítima de um atropelamento do micro-machine da Venteira. Quando o Nélinho olhou para o retrato do Comendador Rendas ficou com a cabeça intermitente, cheia de intervalos e metamorfoses, que o colocaram num estado de expectativa, suspenso e inconclusivo. Teve uma visão do futuro e viu-se reduzido a algo espalmado na estrada, com um charuto fumegante a sair de um buraco indefinido. Acordou do transe, agarrou na foto e correu para a Escola de Desaparafusados da Venteira. Mas ficarem os dois na mesma sala não era aconselhável para a saúde mental da Brazuca. Haveria com toda a certeza uma corrida diária às smarties dos Desaparafusados, e isso não seria bom para as finanças da escola.
- Tarado, – gritou a Minhota ao aperceber-se que o Comendador Rendas também lhe estava a fazer gestos obscenos.
- Já não tenho idade para isto, – queixou-se a Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois, ao mesmo tempo que era encostada à parede pela Cataró, agora em plena travadinha com os punhos cerrados em direcção à Obelix e a bexiga a largar a gasosa toda para cima das almofadinhas-para-coquilhas, a nova colecção de Natal da célebre Sala das Prendas e dos Fetiches.
O retrato a sepsia, devido às incontáveis mijas dos gatos da região, de um velho desconhecido, pendurado pelo Nélinho na sala da Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois estava a causar alucinações visuais aos elementos femininos da “Escola para Desaparafusados & Afins da Venteira” e a provocar rotações oculares incontroláveis no rapaz açoriano. Preparava-se uma manifestação à porta da sala, a Dona Gilette erguia um cartaz a apelar ao regresso dos “Bons Costumes” e ameaçava apresentar queixa, por escrito, à Sobrinha-da-Tarde-Número-Um. Mas quando se aproximou do retrato sentiu também ela um vento a puxa-la, teve uma visão imperfeita que lhe revelou um segredo de algo que aconteceria, suspenso na geografia intemporal das convulsões. Piscou o olho ao Rendas!
- Saiam daqui, – gritou desesperada a Sobrinha-da-Tarde-Número-Dois. – Eu não faço mal a ninguém, estou aqui sossegadinha mais a Transmontana e só me aparecem é malucos.
O mal foi cortado pela raiz, o Comendador Rendas foi directo para o contentor, e o Nélinho suspenso três dias para casa.

Thursday, November 25, 2010

A Rena


Camarada Choco
Aventura 69
O Samecas estava inconsolável porque a sua noiva, a Beta Cigana, acabara com a relação de quase um século, trocando-o pelo Tóni, o filho do novo chefe máximo da Escola, que sucedera ao hilariante Torres. E tudo por causa de uma inofensiva carícia mal calculada, que se transformara num abrunho estilo Rocky que pôs a cigana a ouvir frangos a assar durante uma semana. O ponta de lança da equipa líder do Campeonato Nacional de Futebol para Destravados, os célebres e consagrados “Tubarões do Seixo”, no qual o “i” caía sempre que regressavam ao clube, estava a ser traído pela visão, naturalmente com falhas, mas que agora se aproximava da red line porque já não conseguia distinguir um elefante duma mosca. Mas ele sabia que podia contar com o apoio incondicional do mister, o Stor Pobre, que o convocava sempre que havia jogo, mesmo com o risco de deixar lá metade da dentadura, devido aos problemas de navegação que o faziam sair sempre do campo em alta velocidade e parar só quando algum objecto mais traiçoeiro se interpusesse no seu caminho. E todos estavam lembrados de que o Samecas já tinha um dia, na altura do pico de forma e de visão, deixado metade dum Incisivo no Colégio Vasco da Gama. E o Stor Pobre só era mister dele por afinidade, porque oficialmente este Tubarão tinha mudado de mãos e estava agora dependente da autorização da Rakette, uma stora com os carretos todos no lugar que, para o proteger, o queria inscrever na Federação Nacional de Matrecos. O argumento do Stor Pobre era infalível, enquanto o Mantorras jogasse no Benfica, o Samecas continuava nos “Tubarões do Seixo”. Ou saíam os dois ou não saía ninguém. E assim os “Tubarões do Seixo” podiam ainda contar com o ponta de lança toupeira durante o aquecimento e o intervalo…apesar dele sempre pensar estar no jogo. E os treinos tornaram-se rigorosos: de Técnico e de Físico, que já não precisava passara para…psicológico! E tudo isto veio mesmo a calhar nesta fase existencial do Samecas sem a Beta Cigana.
- Tens de aguentar todos os insultos, - gritava-lhe diariamente o mister no seu quotidiano encontro matinal, - meu pa…cornudo…gay!
O Samecas tremia, mas nem pestanejava.
- Quero-te preparar para aguentares toda a pressão do adversário durante um jogo, – berrou o Stor Pobre, enchendo o atleta de baba, - percebeste meu panas…com cara de cara… e maluco?
Mas havia quem não concordasse com estes métodos pedagógicos:
- Lembrar ao miúdo a sua condição de rena, não está nos manuais das “Boas Práticas com Grogues”, – avisou a Dra. Yogurte.
- Mas já que o Samecas está em estado de rena, aproveitamos a época natalícia que se aproxima e fazemos com que ele tire proveito da armação que já risca o tecto da sala do seu reeducador, o Senhor Pintor. O desporto de alta competição cura tudo, até Desaparafusados, - exclamou o Stor Pobre mostrando os guizos que ia oferecer ao Samecas para pôr nas hastes.
- Os guizos ainda vão traumatiza-lo mais, - retorquiu a Dra. do primeiro andar.
- Estes sininhos vão torná-lo famoso, pois quando os ouvirem todos gritarão: “Vem aí a rena da Venteira
O Desaparafusado estava diferente, o treino intensivo tornara-o outro homem, já não havia abrunhos para ninguém.
- A Beta Cigana, eu quero a Beta Cigana, - mas tinha por vezes recaídas.
Para o mister não havia segredos e a solução do problema chegou num abrir e fechar de olhos:
- A partir de agora o teu nome oficial será…
- Samecas Cristiano Ronaldo, - antecipou-se o jogador.
- Cristiano?? Mas que nome tão foleiro, – gritou o Stor Pobre colando-se à cara do atleta. – Tens de ter um nome artístico inesquecível que te faça cair ao colo, não uma cigana que só funciona pela metade, mas sim uma sueca monga que te mostre onde fica o teu clímax.
- Mas Cristiano Ronaldo é um nome bonito, - insistiu o Samecas.
- Passas a ser o Samuel Atum, o ponta-de-lança mais famoso dos Tubarões do Sexo, capaz de furar uma bola de futebol à dentada, caso esteja com disposição para tal, percebeste ó meu panas…da Venteira (sinal de que o treino psicológico era uma constante).
O mister explicou então que já tinha encomendado ao Senhor Pintor uma carrada de posters, onde a figura esbelta da toupeira da Porcalhota aparecia em posição de remate, mas em vez de uma bola da Fifa, preparava-se para chutar num fabuloso croquete, feito em parceria pela Nina e pela Duna, as holliwdescas cadelas de reabilitação, estando na baliza o seu eterno rival Tóni, o ladrão da Beta Cigana.