miguelbmiranda@sapo.pt
315 estórias

Friday, July 30, 2004

Viagem ao Centro da Terra

                                                       Camarada Choco
                                                                        

 Já estávamos de férias quando fomos convocados para ir ao Centro de Saúde. Desconfiava-se que uma das minhas colegas contraíra tuberculose e, como tal, todos nós tínhamos de fazer uma micro e um teste antituberculina. Missão Impossível ! Fazer deslocar os colegas aquele sítio, dar-lhes uma pica e espalmá-los entre duas chapas metálicas ?? Seria mais fácil Portugal declarar guerra a Espanha e com certeza que as baixas seriam muito menores. Mas a missão era de carácter obrigatório ! Os professores optaram então pela fuga em frente e foi em estilo manada que aparecemos no local apropriado para os exames, depois de uma viagem alucinante, dentro da carrinha de nove lugares, segundo dizia o livrete, transformada desde a fundação num “bus” sem lotação definida e com um fedor constante, resultado de uma mistura de odores da Idade Média: suor, roupa suja, dentes podres, baba, urina, gordura rançosa dos cabelos, sovacos, sebo, meias seculares, ténis jurássicos, cuecas mijonas, etc.,etc. A aliança de todos estes componentes terminava num apoteótico cheiro a merda. Com certeza que se alguém acendesse um fósforo tudo explodiria !
O Centro de Saúde era um local animado e animador, disso testemunhavam as caras simpáticas que ocupavam as dezenas de cadeiras.  Entrámos de rompante, sem aviso, a sangue frio. Fomos de imediato engolidos por um mar de olhos e empurrados para as paredes nuas por uma onda gigantesca de silêncio. As “ gentes normais “ estariam aterrorizadas ou escandalizadas ? Tinham entrado ali com doenças do Corpo, era inevitável e antidemocrático que saíssem com doenças da Alma, e tudo isto causado por aquele bando de bárbaros, que se recusava a ter os mesmos genes da classe operária.
A primeira parte do plano chegara ao fim: os seres superiores estavam amedrontados, temiam ser mordidos, era este o efeito da política oficial da integração a funil ! Iríamos agora dar início à segunda fase da operação “Picamongas”, ou seja, arranjar lugares sentados para todos nós, os príncipes e princesas de sangue preto. Apesar de todos serem testemunhas do esforço dos funcionários e dos técnicos para manter os mais pesados em pé e os mais lunáticos em ordem, ninguém se dignava a dar-nos lugar. Até que, e felizmente há sempre um “ até que “, chamaram alguém, ficando assim um lugar vazio, ocupado de imediato, segundos ordens do professor, pela querida Papoila, a tal miúda da “careca”! O trajecto desde a tribo até à cadeira azul foi seguido de perto pelos olhares indiscretos dos presentes. Os vizinhos desta nova e estranha inquilina encolheram-se nos seus lugares, mas isso não foi o suficiente para evitarem ser atingidos pelos perdigotos disparados pela nossa leoa. A sua cabeça abanava agora ininterruptamente de um lado para o outro, acompanhada por um bufar que fazia vibrar os lábios e distribuía criteriosamente a saliva mal cheirosa. Foi remédio santo ! Poucos minutos depois os vizinhos fugiram em debandada, deixando duas cadeiras vazias, que foram de imediato ocupadas por atletas do mesmo calibre. Três já estavam aviados ! A estratégia continuou até à vitória final ! Os papéis tinham-se alterado. Agora ocupávamos orgulhosamente todos os lugares e os adversários acumulavam-se a um canto da sala de espera. Enquanto estas acções se desenrolavam, outros inscreviam pacientemente os nossos colegas.
Algum tempo depois deu-se início às consultas. A primeira a ser chamada foi a Zulmira Destravada, uma veterana dura de roer, que não admitia ataques  à sua integridade física, viessem de onde viessem. Dois funcionários dirigiram-se ao gabinete da médica com a nossa amiga e quando se preparavam para entrar uma enfermeira barrou-lhes “ educadamente “ o acesso à doutora:
- Aqui só entra a...- e olhou para o papel - ..Zulmira, mais ninguém foi chamado.
- Ok, chicas espertas, ela é toda vossa - responderam, ao mesmo tempo que trocávamos olhares cúmplices um com o outro.
Aquelas senhoras acabavam de perder uma grande oportunidade para estarem caladas. A porta de vidro fechou-se pesadamente e todos nós ficámos  perdidos de riso e na expectativa. Não iríamos perder o espectáculo por nada deste mundo. Aproximava-se um tufão !
Guinchos, berros, coices, murros, dentadas, a Zulmira Destravada distribuía mimos a tudo o que lhe aparecia à mão. A porta abriu-se de rompante e a enfermeira, que há pouco nos tinha corrido, recebia-nos agora de braços abertos e só faltava estender-lhes um tapete vermelho. Era urgente irem salvar a doutora das garras daquela fera, senão ela ainda se transformaria numa utente e teria de ir para o grupo que estava de pé a um canto da sala de espera do Centro de Saúde.

 

No comments: