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315 estórias

Thursday, July 29, 2004

Não Leves o Olho para a Água

                                                          Camarada Choco
                                               


 - Ai, Ai, Aiiiiiiii - gritava de dor a funcionária, depois de ter sido atirada ao tapete.
Pelo chão ficara o tufo de cabelos a que a Rosinha tinha deitado a mão, para aplicar o golpe de judo à senhora. Na semana anterior fora a vez do avô ser projectado à porta da Escola, tendo aterrado no chão duro do belo jardim de calhaus e lixo. Ainda o caos matinal não se organizara e já a Rosinha dera um enorme ósculo de bons-dias ao colega mais próximo esquecendo-se, no entanto, de não usar os dentes. O resultado ficou registado na bochecha vermelha do Zé Trovão, que resolveu entrar numa crise de identidade profunda, começando-se a morder furiosamente e acabando por dar um valente pontapé nas costas do Tó Carvão, que já tinha organizado os neurónios e brincava calmamente no chão com peças de Lego. E assim mais um entrou na festa, presenteando a Papoila com um chapadão digno das melhores performances do lendário Tarzan Taborda, alterando-lhe os circuitos, obrigando-a, contra a sua vontade mais íntima, a dar uma valente, mas convicta, marrada na porta mais próxima, que se fechou com estrondo, entalando os dedos da Telma Estrábica, deixando a nossa heroína do cinema mudo a guinchar e a rodar furiosamente os olhos. O dia começava bem, já não havia bombeiros suficientes para apagar os fogos ! Para ajudar à festa, a manobra da carrinha tinha sido mal calculada e ela encontrava-se agora numa posição instável, ameaçando deitar-se e dormir uma soneca merecida. Entretanto, a Rosinha aceitara mal as críticas que lhe tinham sido dirigidas e ameaçava agora tudo e todos:

- Olhem que eu trinco o olho !

- Atreve-te - disse-lhe alguém do meio da confusão.
E como não era mulher para desaforos, lançou furiosamente um indicador ao buraco do globo ocular, deixado pela grave rubéola que a mãe sofrera durante a gravidez, e sacou o meio berlinde, que fazia a vez de olho, para o exterior e colocou-o entre os incisivos. Bastou um movimento das maxilas para se ouvir o som característico das promessas cumpridas:

Crrrrr !  
No fim do dia lá iriam os cacos embrulhados num guardanapo de papel, para serem entregues aos avós, com a proprietária a fazer um auto de contrição:
- És má, a Rosinha é má - sinal de que, além de ter paralisia cerebral, atraso mental e ser cega, também tinha dupla personalidade.
No dia seguinte fomos à praia, no mesmo autocarro do ATL que partilhava connosco as instalações da Brandoa. O destino eram os vastos areais da Costa da Caparica, numa viagem alucinante que demorava hora e meia para lá e outra tanta para cá, enfronhados num calor abrasador e num trânsito caótico. À chegada montámos arraial logo no início e fomos por grupos à água, que se encontrava ao longe, perdida no horizonte. O primeiro batalhão partiu em busca do líquido precioso e dele fazia parte a nossa amiga Rosinha. Quando iam sensivelmente a meio do caminho, a educadora responsável lembrou-se do esquecimento e deu ordens aos excursionistas para pararem, obedecendo estes de imediato, ficando estáticos no meio de uma das inúmeras escolas que ocupavam todo o vasto território de areia branca.
- O olho Rosinha, não leves o olho para a água - avisou a educadora, vindo a correr ao encontro da sua aluna.
Por momentos naquele pedaço de praia pararam o falatório e ficaram assustados a ver a cena.
- Olho !?? Levar o olho para a praia !?? – pensavam. - Estariam a ouvir bem, ou era somente uma alucinação auditiva provocada pelo intenso calor !??
Com um profissionalismo a toda a prova, a senhora nem se apercebeu que estava fora da Escola e num fechar de olhos enfiou o seu indicador pelo globo ocular da Rosinha e tirou-lhe o brilhante, embrulhando-o cuidadosamente num lenço de papel.
- Já podem ir, foi por pouco ! - Desabafou.
Quanto aos mirones, continuavam estáticos e apáticos, perdendo por momentos os bronzes que tanto custaram a ganhar. A partir de agora tudo o que viesse daqueles estranhos banhistas seria possível. E se por acaso ouvissem – “Ó Júlio, não leves a cabeça para a água, pode enferrujar” - nem se dariam ao trabalho de olhar....

 

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