miguelbmiranda@sapo.pt
315 estórias

Sunday, July 25, 2004

Quarta a Fundo




                                                    Camarada Choco
                                                                

- Senhor professor - chamou alguém com o braço no ar, - eu queria agradecer-lhe pelo facto de a minha Zobaida fazer ginástica, mas podia ser um pouco menos .... como é que eu vou explicar..... menos - e tentava encontrar uma palavra que fosse certa e suave ao mesmo tempo, recorrendo para isso a uma mão que arranhava nervosamente a área pelada da cabeça, tentando estimular a memória traiçoeira dos seus cinquenta e tal anos - ... menos.... menos violenta - o termo não era propriamente meigo, mas o tom da voz compensava a falta - A minha Zobaidinha apareceu-me outro dia com um galo... um galinho...
Galinho!?? Galo!?? ....Sejamos realistas, um Capão, um Grande Capão...ou mais correcto, uma Avestruz, e das grandes!! Um acidente de percurso, um lamentável, mas imprevisto despiste, que a deixou contemplativa e silenciosa. A Zobaida nunca tinha tido uma “estimulação” tão intensa em toda a sua vida de tetraplégica, por momentos ficara a ver o Mundo de pernas para o ar, com milhares de estrelas ao alcance das suas mãos. Em linguagem mais popular, a aula tinha sido “muito radical”. E o professor que tentara a todo o custo reduzir-lhe o hematoma, tendo recorrido para isso a um saco de ervilhas congelado e fora do prazo, e mais tarde, quando já a Avestruz cantava de Galo, alterando-lhe o percurso natural da franja. Mas, pelos vistos, a operação de camuflagem tinha sido um fracasso. E este pai estava a ser tão bondoso para ele, ao contrário da maioria que tentavam arranjar sempre algo para os crucificar.
A Zobaida tem um irmão mais velho, profundo, muitíssimo profundo, um autêntico “quiabo”, segundo a terminologia das novelas brasileiras. Pelo meio ficaram dois, um que nasceu com cianose e morreu alguns dias depois, outro que foi prematuro de seis meses e meio e que também não resistiu. Para os pais a Zobaida significava a segurança após as suas mortes, a irmã ficaria a tomar conta do irmão. Antes de partirem para esta quarta aventura tiveram o bom senso de recorrer aos serviços especializados, que após muitos estudos lhes deram a benção, apesar de na história familiar haver um primo materno deficiente mental e a mãe ser diabética. E como um mal nunca vem só, a desgraça bateu de novo à porta desta simpática e humilde família.
Conheci-a na adolescência a um canto de uma sala, num estado letárgico, rodeada de moscas, atraídas pela sua pouca higiene e pela necessidade constante de lhe mudarem as fraldas. Os insectos passeavam-lhe pela cara, sendo a boca o local predilecto para aí engordarem. Só de tempos a tempos é que um braço se levantava para expulsar, por breves segundos, os invasores insaciáveis, sedentos pela baba que escorria lentamente por aqueles lábios femininos. Uma outra rotina tornava o ar ainda mais poluído, o momento da mudança das fraldas. Sem qualquer intimidade, a Zobaida era colocada em cima de uma mesa, tal qual um saco de batatas, as pernas eram elevadas e aquela mulher ficava ali exposta à curiosidade dos colegas, de rabo ao léu, e quantas vezes ainda a defecar. Por muito que a limpassem, o cheiro tornava-se insuportável. Imaginem agora em sua casa, com os pais já velhotes !
A descida da carrinha era também uma das actividades de maiores riscos, para todos. Sem elevador, tinha de sair ao colo das funcionárias, que muitas vezes atingiam os limites das suas possibilidades e, nessas alturas, vinha tudo ao sabor da lei da gravidade,  só parando no chão imundo dos passeios da Brandoa.
Mas voltemos ao assunto principal da história, o acidente de viação da nossa querida Zobaidinha, um capotanço digno dos melhores filmes do James Bond. Tudo aconteceu à entrada do ATL e a nossa querida Fangia acabou por ser presenteada por um espectacular fogo de artifício, acompanhado de um baile de gala neuronal:
Era uma vez um professor de educação física que se ofereceu como destacado para o Ensino Especial...
O pré-fabricado exalava um calor insuportável, misturado com um intenso cheiro a baba, sendo o cenário iluminado por uma penumbra digna do melhor jazigo do Alto de São João. No meio de todo este luxo, cópia fiel dos melhores hotéis das famosas praias do Seixal, encontravam-se, em estado zombificado, vários humanóides de diferentes tamanhos e aspectos, tendo uma característica comum: as pálpebras e os cérebros estavam todos a meio-gás, assim como as janelas.
Primeiro Acto - desencadear uma revolução à francesa, um autêntico assalto à Bastilha. Luz, luz e mais luz, abrir a masmorra ao Mundo, expulsar o bolor daquelas almas.

                                  “ Ao princípio fez-se luz “
E “luz” foi sinónimo de “despertar”, despertar para a vida, neste caso para um jardim de entulho.
A Zobaida foi retirada do cantinho muito escuro e colocada no exterior muito brilhante.
- “Quélo passeal” - disse com convicção a nossa amiga, como que reanimada mais uma vez da sua segunda morte aparente.
Os seus desejos passaram a ser ordens, ela merecia-os! O professor chamou então três miúdos do ATL e pediu-lhes para  a empurrarem. Prontificaram-se de imediato e começaram a empurrar a cadeira de rodas e o seu pesado conteúdo. Voltou costas e foi à procura de outros “despertados”.
Ainda me lembro de a ver passar junto à minha janela como um foguete, mas infelizmente o meu olho direito não conseguiu acompanhar a cena radical, devido ao facto de trabalhar a carvão. Algum tempo depois apareceram os motoristas da nossa querida Zobaida, mas sem o veículo e a sua respectiva patroa. Teriam tido a liberdade de ir buscar um Ferrero Rocher!??
- Professor - chamaram timidamente e continuaram, - a menina da cadeira de rodas caiu num buraco...
Buraco!!? Caiu num buraco!?? Mas neste pátio que circunda o ATL da Brandoa não há nenhum buraco!!....Só se foi pelas escadas abaixo do portão principal !! Mas o portão estava fechado ! Caso tivesse descido, com certeza que não estacionara logo ali e resolvera continuar pela enorme rampa que levava à planície e por essa altura já teria entrado de rompante pela montra da loja dos 150 e estava excitada a contar a aventura alucinante à senhora que permanecia espalmada debaixo da cadeira de rodas. Por momentos o nosso querido professor paralisou, não quis ver! Deitei mão a um dos frascos de drunfos, ele iria ter, de certeza, um ataque de caspa.
- Estúpido, não era melhor tê-la deixado no cantinho escuro, com as suas moscas de estimação ?? – pensou e muito bem.
Ufa!! Afinal ainda permanecia no recinto escolar, estava “somente” capotada no desnível que dava acesso ao portão. Os seus ajudantes tinham decidido pôr a quarta mudança e acelerado até ao fim, esquecendo-se que as rodas da frente das cadeiras de rodas são, geralmente, muito pequeninas, e quando atingem a velocidade do som perdem a estabilidade. Provavelmente a Zobaida tentara fazer uma descolagem inédita e assustara os seus colaboradores. O resto da cena fica ao critério de cada leitor.
O pai tinha razão:
- Eu queria agradecer-lhe pelo facto de a minha Zobaida fazer ginástica, mas podia ser um pouco menos.... violenta.
De uma coisa a Zobaida poder-se-ia orgulhar para sempre: ela nunca fora, nem nunca mais seria, tão energicamente estimulada em toda a sua vida!  
                 
     

 

 

1 comment:

Michel de Garcia said...

Bom...isto promete.
Pelo que li estes textos podem muito bem fazer sucesso...
Vou voltar.
Abraço