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315 estórias

Tuesday, July 27, 2004

A Relíquia



                                                         Camarada Choco
                                                                        
 
- Estou sim? É por causa de um quadro - disse a Lolita com uma voz muito acelerada, estando encostada a uma das paredes, tendo uma das mãos junto a um ouvido, fazendo, mais uma vez, um dos inúmeros telefonemas para a Câmara Municipal - eu encomendei-o para as 13H30.
Os céus dotaram-na com uma boa memória, inútil a maior parte das vezes, ou mais correctamente, inconveniente.
                                138 - 29 - 94 - 38, são as medidas mágicas, em centímetros, desta espectacular fêmea de 30 anos, representando o primeiro conjunto de números a altura, seguido do tamanho dos pés, do perímetro da cintura e finalmente do perímetro da cabeça.
- Ai, ai,ai,ai, mas que grande confusão, organizem-se - exclamou a nossa diva, passando como um foguete de uma sala para a outra, abanando furiosamente as mãos, sinal de contentamento.
Confusão !?? Confusão foi quando decidiu ir pela primeira vez à piscina e na hora da verdade quis dar música aos professores, e que música !! Até parecia uma deputada a falar, arranjava todo o tipo de argumentos para não ir à água.
- Eu nem consigo lavar-lhe a cabeça com água, tem de ser com algodão e álcool – explicou a mãe às educadoras uns dias antes quando lhe comunicaram que tencionavam levá-la à piscina.
Mas desta vez a Lolita não se ficaria a rir, pois a Constituição desta Cooperativa de Ensino e Reabilitação dizia no seu artigo 1º que

                                                    “Aqueles utentes que desejarem deslocar-se à Piscina Municipal têm obrigatoriamente de entrar dentro de água, podendo-se em casos extremos, usar as medidas que forem consideradas necessárias para os colocar no meio aquoso”.
- Eu sei, já ouvi, não sou surda - gritava a futura Tágide da Brandoa, ao mesmo tempo que se escapava, mais uma vez, como uma enguia, das mãos daqueles que a queriam lançar às águas tumultuosas. - Temos de conversar.
Conversar!?? Ainda queria mais diálogo!?? Não, agora era a sério! Acabou por ser encurralada e pouco tempo depois flutuava no meio do oceano, dentro de uma bóia roxa gigantesca, que orgulhosamente tinha trazido de casa. E ali estava a dona Lolita mais vermelha do que um tomate, depois de ter caído dentro de uma lata de tinta vermelha, imóvel, mas acima de tudo calada graças a Deus ( ou seria graças aos Mestres, como ela chamava aos pacientes docentes ?? ), uma autêntica tumba. Falar significava balançar e isso ela não queria. Só lhe restava esperar que o tempo passasse e a hora do regresso viesse depressa. Até lá podia recordar um passado que lhe era estranho e de que não guardava memórias, como, por exemplo, a gravidez da mãe que fora normal apesar de ter levado uma injecção para a segurar. Também não sabia que só tinha querido vir ao mundo vinte dias depois e ainda por cima com a ajuda de fórceps e ventosas. O seu tamanho era mínimo, ao contrário do cheiro que era máximo, e ainda por cima estava sempre enrolada como um caracol. Foi encaminhada para uma incubadora e fez greve à mamada, ao mesmo tempo que o coração também resolveu chamar as atenções, soprando. Ria-se de felicidade, mostrando ao mundo a sua colecção de dentes podres, pois sabia que tinha sido uma criança muito desejada.
Uma onda fez a sua bela bóia abanar violentamente, trazendo-a à realidade. Ainda pôde vislumbrar o belo Choco, agora transformado num magnífico tubarão martelo, nadando tal como um prego. Ao seu lado estava um espectacular peixe-espada enfiado numa câmara de ar, com um sorriso de orelha a orelha, contemplando com satisfação o quadro vivo de Dali. O suave balancear levou-a de novo para o andar das memórias, que lhe revelaram ter sido internada aos dezanove meses devido ao excesso de convulsões. Os inúmeros exames detectaram que a sua idade óssea correspondia ao de uma criança de um mês, tinha microcefalia, sendo a causa disto tudo, como na maioria dos casos, de “etiologia desconhecida”.
- Lolita, se quiseres, podes sair - disse-lhe um dos “mestres” no meio daquela confusão aquática.
Era esta a palavra mágica que a nossa tágide esperava desesperada ouvir, a fácies vermelho explosivo mostrava claramente a sua motivação. Sair, mas como !?? Continuava a meio daquele vasto mar, a costa estava cada vez mais longe, o Choco resolvera agora nadar nas proximidades da sua elegante bóia versão petroleiro e as ondas produzidas afastavam-na cada vez mais do porto seguro. Depressa descobriu a maneira mais eficaz de resolver a situação: usar os braços como remos. E assim começou mais uma extraordinária aventura da nossa heroína do Portugal dos Pequeninos. O oceano estava agitado, revoltado, tenebroso.....penso que é melhor recorrer a  um tal de Camões para descrever a terrível cena:

                                                  “ Tão temerosa vinha e carregada,
                                                  Que pôs nos corações um grande medo;
                                                  Bramindo, o negro mar de longe brada,
                                                  Como se desse em vão nalgum rochedo. “
                                                   .......
 
Finalmente chegou ao destino, uma multidão de fãs esperava-a pacientemente. A diva encostou o iate e subiu graciosamente a escadaria da fama, envolta numa chuva de palmas e palavras de admiração e carinho. Mal pousou os pés tamanho vinte e nove em terra firme parou, olhou para os nativos e declamou, tal qual uma sábia:
- ORGANIZEM-SE ! – e dito isto arrancou, deixando para trás a própria sombra.

 

 

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