Comandante Guélas
Série Colégio Militar
No Colégio Militar alguns alunos para
sobreviverem no meio das tensões quotidianas, praticavam a cultura da bajulação
com uma lucidez pingada de cinismo: o pai do Bomba H, ao estilo Escobar,
oferecia inconcebíveis lagostas aos graduados do filho, para que lhe
facultassem um tratamento mais humano. O desinteresse pelos limitados recursos
da realidade , fez com que no Colégio Militar sobressaísse o 3º E do ano letivo
de 1973/74, um produto de coincidências improváveis, de circunstâncias
efémeras, que juntaram meninos desadequados com uma prodigalidade dos
entusiasmos, cuja natureza era insubordinada, desordeira, incontinente, que só
na década seguinte quis o destino fazer outra turma igual, o 5º C, mais
conhecida como o Bronx. Esta estória não tem alguma arrumação de superfície,
excepto a fava que calhou ao professor Bernardino Gonçalves Monteiro e Mota. Como
o 191 e o 485 recusaram o cargo de Chefe de Turma, o repetente
280, o Minhoca, foi voluntariamente obrigado a assumir o comando. O mais balda de todos revelou-se um tirano, como muitos
daqueles a quem era dada a oportunidade de comandar os outros. Neste dia quente
de outubro a turma marchava em direcção ao “Estudo” da manhã, que iria ser
vigiado pelo Professor-Assistente Didi, responsável pela disciplina da manhã
quando, perto da Enfermaria, depararam com um obstáculo, um servente e duas
moças, que iam descontraidamente a falar:
- Ó Marinho, tira a peida da frente, -
gritou o Chefe de Turma, avisando da aproximação de uma formatura.
O trio afastou-se, os elementos femininos
riram a bom rir, mas o visado não gostou da brincadeira e ameaçou que iria
fazer queixa ao Oficial de Dia. O 3º E era constituído por vinte e sete alunos:
Cabedo, Pejó, Horrível, Judi, Escorpião, Becas, Peidão, Fogaça, Minhoca,
Camélia, Elefante, Vinasse, Escalope, Vaca, Cão, Leitão, Lory, Magoo,
Sorridente, Gordini, Six, Xoxo, Bétis, Barrada, Zacarias, Loira e Peida Gorda.
A chegada à sala foi feita de uma forma
mais ou menos ordeira, o 280 distribuiu biqueiros a quem tinha desacertado o
passo.
- Atenção, “Alto”!
Como ainda não tinha tocado, a ordem
seguinte foi “destroçar”. Estava aberto o recreio. E começou de uma maneira
alucinante: o Horrível apanhou um gafanhoto e colocou-o nas costas do Escalope,
que saiu a correr em pânico e a gritar, enquanto o Becas e o Judi entraram na
sala e puseram um giz no meio do apagador. Mas a mania era agora fazer voar em
círculo pequenos aviões de madeira presos a um fio, o que obrigava os outros a
andarem com muita atenção e a terem de proteger as cabeças. O toque da corneta
para a formatura ecoou pelo colégio, e o 3º E formou rapidamente, pois o
Minhoca ficava possuido nestas alturas. Os professores foram chegando, e as
ordens dos diversos chefes de turma sobrepuseram-se umas às outras. Como o Didi estava atrasado a
turma pressionava o chefe para ir comunicar o facto ao Oficial de Dia, o
capitão Peidinhas, para assim a fuga passar a ter um caráter legal. Azar,
quando a turbe ia a sair do pavilhão deu de caras com o professor, que ordenou
ao Minhoca que pusesse os cavalos dentro da sala. O tempo era de “Estudo”, mas
ninguém estudou, mesmo depois do professor-assistente ter obrigado o 3º E a
colocar livros em cima das carteiras, e estar em permanente movimento de
vigilância. A um dado momento começaram-se a ouvir zumbidos alternados, o Didi
exasperava na descoberta das abelhas, mas elas calavam-se quando ele olhava e
zumbiam quando se afastava. Acabou por desistir e dirigiu-se para a secretária
depois de o Magoo ter estranhamente aparecido com uma dúvida a Inglês. Foi
nesse preciso momento que o Horrível, o Judi, o Escorpião e o Becas deram
início a uma prova de atletismo, que consistia em ir deitar, alternadamente, um
papel no caixote de lixo, e regressar à carteira, altura em que o Becas parava
o cronómetro. Quando os papéis acabaram, por ordem expressa do Didi, o alvo
passou a ser o Peida-Gorda, que tinha de levar um calduço. Mas a brincadeira
foi curta, o professor saltou do estrado a correr, à beira de um ataque de
nervos, e dirigiu-se aos atletas, que se sentaram de imediato, não sem antes
dar ordem ao Magoo para apagar o quadro, que ficava cada vez mais riscado à
medida que o apagador afagava a ardósia. Enquanto tudo isto se desenrolava o
Peidão conseguiu gamar a bolama que o Xoxo, que estava à janela com o Bétis,
tinha tão cuidadosamente camuflado na mala, e comia-a agora alegremente com o
tampo da carteira aberta, tendo a ajuda do Compal do Magoo, zelosamente
escondido entre os livros, para onde regressou, mas aliviado do seu conteúdo
nutritivo. De repente a sala foi invadida pelos berros do Escalope, a quem
tinha sido tirada uma meia, que era agora exibida pelo Horrível, que gritava
“abaixo a poluição”. O Didi não tinha descanso, o Becas, o Vinesse e o Fogaça
jogavam bilhar na sua mesa com o ponteiro e o giz, quando soou o toque do fim
do tempo lectivo, tendo o professor-assistente abandonado o local o mais rápido
possível. Deu-se então início ao jogo da moda, a guerra do apagador, que
consistia em tentar acertar com o dito na cabeça do adversário, colocados nos
extremos da sala, um protegido com o tampo da carteira do Becas, e o outro com
a cadeira do professor. O primeiro embate deu-se entre o Horrível e o
Escorpião, tendo este iniciado o jogo, acertando de imediato no botão da
campainha de chamada do funcionário, que ficou pendurado. A resposta do adversário
foi tão potente, que abriu um novo buraco na parede, desintegrando o estuque,
colocado nas obras de remodelação do ano anterior. Aliás, as paredes já tinham
um aspeto de queijo gruyère! A brincadeira acabou quando o objeto saiu
pela janela e passou uma razia ao carro do director, ao mesmo tempo que soava a
corneta, indicando que era a hora da formatura para o segundo tempo letivo da
manhã. A próxima aula iria ser de Português, mais especificamente teste, e
todos esperavam agora pelo professor Ferrari, de nome oficial Ferreirinha.
1 comment:
Bela descrição...Consegui imaginar toda a sequência e visualizar alguns dos seus personagens. O nome desse filme poderia ser "Uma Manhã de Quase Estudo"...Abraços!!! (Ex-110/1968).
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