Comandante Guélas
Série Colégio Militar
É
mais uma estória de aventuras da juventude e do poder que elas exerceram sobre
as nossas vidas, que tem sempre três elementos, o que vivemos, o que lemos e o
que imaginamos, indispensáveis para poder conta-la. Brincava-se à apanhada
quando o Moca, o pai de todos os Meninos da Luz, que tinha o cubículo paredes
meias com a zona de evacuação, ameaçou intervir caso a rapaziada vestida de
cotim não cessasse imediatamente a atividade, e fosse divertir-se para outro
lado, deixando as retretes livres para quem quisesse fazer uso útil delas, que
neste estabelecimento tanto servia para limpar a tripa ou tirar ranho à cobra.
Foi então que o 664, num gesto típico de um suicida, teve a infeliz ideia de
arremessar à cabeça do fâmulo a escova de dar brilho aos sapatos, que neste
jogo servia para apanhar os camaradas. O som do bater da madeira na bigorna que
dava fama à cabeça do senhor Cândido foi tal que, por momentos, os meninos
ficaram num estado sem tempo, imóveis e mudos, sem vontade e sem pensamento.
Mas quando a vítima saiu com estrondo pela porta, levado por um vento e por uma
tempestade inesperada, veloz e aterradora, munido do seu cajado com que
quotidianamente abria as janelas altas das camaratas, após o toque da corneta
que anunciava a alvorada, aproveitando a ocasião para acordar à paulada os mais
mandriões, sem olhar a estrelas, todos se aperceberam que ele acabara de entrar
no jogo.
-
Vem aí o Moca!
Foi
o sinal de alarme que saiu da boca do 125, que acabara de saltar para o lado
oposto, da entrada prevista do toiro, sendo acompanhado pelos que conseguiram
escapar, enquanto outros se fechavam apressadamente nas retretes, baixando de
imediato as calças e forçando-se a rápidos cagalhões atenuantes. Quando o
fâmulo entrou na única área com alguma privacidade do estabelecimento de ensino
militar, deparou-se com um silêncio cúmplice, e viu-se impossibilitado de
aplicar a vingança. O 300, o único cagador verdadeiro, que não participava no
jogo, mas que temeu durante todo o tempo apanhar com um camarada vindo de cima,
pois vira vários a cruzar o espaço aéreo da sua retrete, ocupara a única
assoalhada sem trinco, e foi essa que o novo jogador abriu, com muita raiva.
Salvou-o a quantidade de dejectos que produzira, impossíveis de evacuar em tão
pouco tempo. Quantos aos colegas, já estavam a salvo na zona da parada à espera
de regressar quando tudo acalmasse.
O senhor Cândido Gomes Alves entrou
para o Colégio Militar em 1936 como soldado, durante o serviço militar
obrigatório, começando por ser o corneteiro de serviço, nunca tendo conseguido
chegar aos calcanhares do magistral cabo Estrela que, segundo a lenda, soprava
no instrumento como ninguém. Pelo caminho levou um coice de raspão quando
tentou limpar a cama dum antepassado do Cabeça de Mula, ficando com o nariz
empenado. Em 17 de Novembro de 1943 casou-se definitivamente com os Meninos da
Luz, e quinze anos depois ganhou a alcunha de “Mirna Loy” devido ao tratamento
aos olhos que teve de fazer, cujos pingos davam a sensação de que o soldado passara
a pintar os olhos, inconcebível para um estabelecimento de ensino que só
admitia nas suas fileiras futuros candidatos a cobridores, e não rapaziada que
gostasse de pegar de empurrão, tradição explicada recentemente pelo Grilo, que
lhe custou a cadeira. Como o destino queria que o soldado ficasse para sempre
lado a lado com o marechal, bastou uma porta encravada na terceira companhia em
1958, que só abriu quando o maçarico utilizou, como último recurso, a cabeça em
forma de bigorna, ganhando com esse gesto uma estrela no Passeio da Luz.
Quando o oficial entrou na
companhia e viu ao longe o funcionário a esfregar o chão, gritou a plenos
pulmões:
- Moca, - e acelerou o passo.
- Epá, meu
malandro, como estás crescido, - exclamou o fâmulo, encostando a esfregona à
parede.
O abraço foi
sentido, tinha misturado uma grande amizade e saudade.
- Se fosse
noutro tempo já me tinhas arreado uma cabeçada por estar a pisar o molhado.
- Ainda sou
capaz de te dar uma - respondeu, rindo-se.
- Não és homem,
não és nada.
- Não me
provoque meu coronel - disse, aproximando a cabeça em forma de bigorna.
- Estás com
medo?
A cabeçada foi
tão eclética, que trouxe à luz do dia todas as memórias profundas dos fabulosos
anos em que o visitante fora um Menino da Luz.
A fama era tanta que em 1994 no
Porto, durante um desfile militar com a presença dos Meninos da Luz, o senhor
Cândido foi reconhecido pelos antigos alunos, tendo sido obrigado a sair do
anonimato onde o tentaram pôr, e acenar para a multidão de camaradas que o
saudavam efusivamente:
- Moca, Moca, Moca!
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