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315 estórias

Monday, October 10, 2016

O Moca

Comandante Guélas

Série Colégio Militar

É mais uma estória de aventuras da juventude e do poder que elas exerceram sobre as nossas vidas, que tem sempre três elementos, o que vivemos, o que lemos e o que imaginamos, indispensáveis para poder conta-la. Brincava-se à apanhada quando o Moca, o pai de todos os Meninos da Luz, que tinha o cubículo paredes meias com a zona de evacuação, ameaçou intervir caso a rapaziada vestida de cotim não cessasse imediatamente a atividade, e fosse divertir-se para outro lado, deixando as retretes livres para quem quisesse fazer uso útil delas, que neste estabelecimento tanto servia para limpar a tripa ou tirar ranho à cobra. Foi então que o 664, num gesto típico de um suicida, teve a infeliz ideia de arremessar à cabeça do fâmulo a escova de dar brilho aos sapatos, que neste jogo servia para apanhar os camaradas. O som do bater da madeira na bigorna que dava fama à cabeça do senhor Cândido foi tal que, por momentos, os meninos ficaram num estado sem tempo, imóveis e mudos, sem vontade e sem pensamento. Mas quando a vítima saiu com estrondo pela porta, levado por um vento e por uma tempestade inesperada, veloz e aterradora, munido do seu cajado com que quotidianamente abria as janelas altas das camaratas, após o toque da corneta que anunciava a alvorada, aproveitando a ocasião para acordar à paulada os mais mandriões, sem olhar a estrelas, todos se aperceberam que ele acabara de entrar no jogo.
- Vem aí o Moca!
Foi o sinal de alarme que saiu da boca do 125, que acabara de saltar para o lado oposto, da entrada prevista do toiro, sendo acompanhado pelos que conseguiram escapar, enquanto outros se fechavam apressadamente nas retretes, baixando de imediato as calças e forçando-se a rápidos cagalhões atenuantes. Quando o fâmulo entrou na única área com alguma privacidade do estabelecimento de ensino militar, deparou-se com um silêncio cúmplice, e viu-se impossibilitado de aplicar a vingança. O 300, o único cagador verdadeiro, que não participava no jogo, mas que temeu durante todo o tempo apanhar com um camarada vindo de cima, pois vira vários a cruzar o espaço aéreo da sua retrete, ocupara a única assoalhada sem trinco, e foi essa que o novo jogador abriu, com muita raiva. Salvou-o a quantidade de dejectos que produzira, impossíveis de evacuar em tão pouco tempo. Quantos aos colegas, já estavam a salvo na zona da parada à espera de regressar quando tudo acalmasse.
O senhor Cândido Gomes Alves entrou para o Colégio Militar em 1936 como soldado, durante o serviço militar obrigatório, começando por ser o corneteiro de serviço, nunca tendo conseguido chegar aos calcanhares do magistral cabo Estrela que, segundo a lenda, soprava no instrumento como ninguém. Pelo caminho levou um coice de raspão quando tentou limpar a cama dum antepassado do Cabeça de Mula, ficando com o nariz empenado. Em 17 de Novembro de 1943 casou-se definitivamente com os Meninos da Luz, e quinze anos depois ganhou a alcunha de “Mirna Loy” devido ao tratamento aos olhos que teve de fazer, cujos pingos davam a sensação de que o soldado passara a pintar os olhos, inconcebível para um estabelecimento de ensino que só admitia nas suas fileiras futuros candidatos a cobridores, e não rapaziada que gostasse de pegar de empurrão, tradição explicada recentemente pelo Grilo, que lhe custou a cadeira. Como o destino queria que o soldado ficasse para sempre lado a lado com o marechal, bastou uma porta encravada na terceira companhia em 1958, que só abriu quando o maçarico  utilizou, como último recurso, a cabeça em forma de bigorna, ganhando com esse gesto uma estrela no Passeio da Luz.
Quando o oficial entrou na companhia e viu ao longe o funcionário a esfregar o chão, gritou a plenos pulmões:
- Moca, - e acelerou o passo.
- Epá, meu malandro, como estás crescido, - exclamou o fâmulo, encostando a esfregona à parede.
O abraço foi sentido, tinha misturado uma grande amizade e saudade.
- Se fosse noutro tempo já me tinhas arreado uma cabeçada por estar a pisar o molhado.
- Ainda sou capaz de te dar uma - respondeu, rindo-se.
- Não és homem, não és nada.
- Não me provoque meu coronel - disse, aproximando a cabeça em forma de bigorna.
- Estás com medo?
A cabeçada foi tão eclética, que trouxe à luz do dia todas as memórias profundas dos fabulosos anos em que o visitante fora um Menino da Luz.
A fama era tanta que em 1994 no Porto, durante um desfile militar com a presença dos Meninos da Luz, o senhor Cândido foi reconhecido pelos antigos alunos, tendo sido obrigado a sair do anonimato onde o tentaram pôr, e acenar para a multidão de camaradas que o saudavam efusivamente:
- Moca, Moca, Moca!

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