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315 estórias

Monday, September 29, 2008

Introdução na Terra do Comandante Guélas




Na Terra do Comandante Guélas

Introdução



“Os velhos gostam de dar bons conselhos para esconder que já não estão em estado de dar maus exemplos”

La Rochefoucault



Onde é que estavam os adolescentes no 25 de Abril?
Tudo começou em 1975, quando os cartazes da “Maioria Silenciosa” foram queimados à pressa junto ao depósito de água no Alto da Loba. O João da Quinta ainda foi a tempo de acender um cigarro mata-ratos da marca “Definitivos”, cujo fumo lhe despertou o único neurónio, alertando-o para a grande oportunidade que tinha aqui para arranjar um emprego compatível com o seu estatuto de filho do caseiro do Leackoque. Depressa acreditou que era um sinal da sua defunta avó Sesaltina! Alguns dias depois, na Comissão de Moradores, realizada no Pavilhão Desportivo de Paço de Arcos, no Pimenta, alguém interpelou a mesa para que proibissem os moradores do Alto de Paço de Arcos de votarem nas propostas, por morarem em chalés. Do meio da multidão levantou-se o grande Ratinho Blanco e lançou a questão da sua vida, que marcaria para sempre os destinos da vila:
- Então eu, que vivo na Pedreira, também vou ser impedido de votar, pois a minha barraca também tem as características de um chalé?
Foi o segundo sinal!
O contra-ataque veio sob a forma de uma manifestação que se iria realizar no dia seguinte, com partida na estação de Paço de Arcos, e rumo ao Alto, onde vivia a burguesia.
A guerra tinha começado, preparava-se uma recepção apoteótica aos invasores. No dia seguinte, e segundo informações dos espiões do Alto, só apareceu um manifestante no local de encontro que, com vergonha e medo, apanhou o comboio para Oeiras e foi pregar para outra freguesia.
Nesse dia o glorioso Comandante Guélas declarou a independência e fundou a República Independente do Alto de Paço de Arcos, com anexação imediata da Terrugem, a pedido da sua padeira e ideóloga mais famosa, a Doutora Quitéria Barbuda. A bandeira foi hasteada e o Comandante ordenou a mobilização geral. Assim nasceu o Gang dos Meninos Ricos e Caucasianos de Paço de Arcos (G.M.R.C.P.A.), cuja missão era formar o indivíduo, a família, a sociedade e o Estado de Paço de Arcos, e posteriormente o “Guélanismo”, a unidade entre os territórios de Oeiras, partindo depois para a conquista do Mundo. Foi o relançar dos Descobrimentos, tendo agora como ponto de partida a Praia Velha. Cada indivíduo iria palmilhar a terra, individual ou colectivamente, tendo como missão transmitir os valores, através de palavras ou actos, da sua nova pátria. Foi declarada a verdade oficial, que dizia que era um facto científico que Deus criara o “Paçoarquiano” quando bufara o “sopro da vida”, tendo Quitéria Barbuda sido criada da costela do Comandante Guélas, enquanto que os seus inimigos descendiam dos macacos, mas a sua evolução fora negativa.

Wednesday, September 17, 2008

A Outra




                          Camarada Choco
                                          Aventura 62

Informação aos leitores.: a Dona Pilca foi a banhos e como tal estará ausente desta história, que é para maiores de dezoito anos.
- Kodac, o que é que fazes aqui fora? – Perguntou a Psicóloga Morena, vinda por detrás.
O homem virou-se.
- Pilas? Desculpa Cabo Pilas, mas esse teu pescoço engana-me sempre.
- Pilas?! Mas isso é maneira de abordar um desconhecido?
- Estou confusa, se calhar tive um AVC e nem dei por isso. O senhor não é o Kodac, não é o Cabo Pilas, então o que é que faz aqui junto à porta da Escola de Desaparafusados da Venteira, ex-Brandoa?
- Mano, mano, - gritou alguém duma das janelas do primeiro andar.
A Psicóloga olhou para cima e viu o Cabo Pilas a acenar para o desconhecido. De início pensou que o seu colega estava a alucinar, talvez tivesse tido mais uma travadinha igual à dela.
- Ma…ma…ma…no, no, - chamou alguém vindo por detrás do chalé da água.
- Kodac? Mas que grande confusão, vocês são todos do mesmo tamanho.
O mano dos manos, que eram manos só no fenótipo e não nos genes, contou que tinha sido despedido de motorista do Portugal dos Monguinhas, e que a Doutora Sem Canudo, sempre atenta às promoções, o contratara por metade do preço.
- Pior que o Porres é impossível, - desabafara na altura no seu café, o “Bar Azul”.
O novo motorista Pilas nem queria acreditar quando a filha clandestina do Stor Rico, retinta e desaparafusada, o chamou para o informar que era tão feio e por isso não fazia o seu género:
- Houve lá ó princesa, tu não tens espelhos lá em casa? – Respondeu-lhe já à beira de um ataque de nervos.
Mas, no fundo do corredor aconteceu algo que alterou por completo a confusão que se instalara à porta da quinta da Madrinha. O Esgalhador acabara de aparecer à porta da casa de banho com as calças arreadas e a fruta a badalar ao vento. O Stor Pobre, o mais ajuizado deste mundo de Desaparafusados, incluindo os Aparafusados, viu a figura imprópria do “abafador compulsivo do seu próprio palhacinho” e entregou-o, em mão própria, na sala respectiva, a da Outra. As colegas, que estavam alegremente a pôr roscas nos parafusos, pararam a produção e nem queriam acreditar no que viam. Afinal o colega não tinha aquilo que parecia ter todos os dias: um cacete tipo alentejano! Não passava de uma ervilha, e seca.
- Ai filho, e eu a pensar que eras o maior génio desta sala. Tanta altura para nada! – Desabafou a Outra, puxando as calças do seu mongalhão para o local certo.
As colegas continuavam a rir. O Esgalhador olhava agora para a multidão por cima dos óculos e procurava desesperado um buraco para se esconder, mesmo sendo um Desaparafusado. A sua tutora, a Outra, estava encostada à parede, com o cotovelo direito apoiado no corrimão e a mão a suportar a cabeça.
- Tantos anos a fazer publicidade ao meu Esgalhador, mas afinal ele estava a coçar somente uma borbulha. O que é que irão dizer as minhas colegas, que os têm mais baixinhos, mas com valentes chourições? O Esgalhador não me poderia ter feito isto.
Mas o artista já estava em fuga, passara por cima de vários colegas e ninguém parecia segurá-lo. Ninguém? Havia uma heroína, a Menina Tatrícia, que o colou a uma cadeira. Pelo caminho a Afilhada Doutora com Canudo, chefe suprema de metade do Rés-do-Chão nos dias pares, sendo os ímpares exclusivos da Madrinha, ainda tentou uma abordagem pedagógica, mas ia caindo do alto das suas faluas, as mais indicadas para manipular mongas.

Thursday, June 26, 2008

Festa & Fogo


                        Camarada Choco
                                          Aventura 61
 
- Quem é que te deu estes livros? – Perguntava a Madrinha à Cabeçuda, uma cliente residente, tirando-lhe os dois “Camaradas” das mãos sem lhe pedir licença, apesar da desaparafusada ser tão adulta como ela, e justificar ao fim do mês um chorudo subsídio.
- Foi o padrinho do Choco, Doutora Sem Canudo…..
- O quê?!
- Madrinha, eu queria dizer Madrinha.
- Tu ainda és muito monga….nova, para leres estes livros. São muito violentos, falam duma bruxa má que aterroriza o seu reino e tem vários sacos cheinhos de bolotas fechados à chave num cofre. E troca computadores.
- É a história da Branca de Neve?
- Pior! Está decidido, não vais ler estes livros e pronto. Eu levo-os para casa…para o teu armário e quando achar que chegaste à idade adulta dou-te outra vez.
No rés-do-chão o Stor Pobre tentava convencer a mãe do Choco a deixá-lo emburcar uma cervejinha, a pô-lo de bigode e a autorizá-lo a ver os filmes do “Noddy para Adultos” com o papá.
- O senhor é maluco, - respondeu, olhando de lado para a Menina Tatrícia que tinha a sala atulhada de malas de viagem.
Mais uma vez os Desaparafusados preparavam-se para rumar a uma colónia de fazer inveja aos Aparafusados. A Dona Pilca, agora no papel de chefe dos escuteiros da Venteira, ainda teve tempo de ouvir o último aviso da mamã do nosso herói:
- Se ele tiver algum ataque de eléctrico ponham-lhe um pano de água fria na testa, que é como eu costumo fazer em casa.
- Esteja descansada Dona Natas, que eu resolvo logo o assunto pondo-lhe a cabeça no frigorífico, - atirou a Chefe Máxima da Colónia pisando-lhe os calos.
Uns dias depois o problema da Dona Natas era outro.
- A minha “Toy-Shorti” do Remo? – Perguntou uns dias depois puxando o Stor Pobre, que ia a passar.
- T- Shirt do Remo?
- A Sobrinha-Fotocópia disse-me que o Stor Pobre tinha guardado uma para mim.
O caldo parecia estar a ficar entornado. E agora? Se a “Toy-Shorti” não aparecesse algo de grave aconteceria na Quinta da Madrinha. Mas o problema maior era outro. Tinham ido buscar de urgência o Choco à colónia porque não aguentava as saudades de casa, e por isso estava à vários dias em estado de Santolão e a borrar-se como um herói. O milagre aconteceu quando a Afilhada desceu à terra com uma resma de conguitos atrás, que iam trabalhar para a loja chinesa clandestina da Madrinha. No estabelecimento comercial só havia uma camisola preta do Capitão Iglo para bebés e foi essa peça de roupa que foi entregue toda dobradinha à Dona Natas. No dia seguinte a reclamação já foi mais violenta. No dia anterior, ao entardecer, a progenitora do Camarada Choco enfiara de uma vez o “Capitão Iglo” e ele encravara no tórax. Nem ia para baixo nem para cima. E quando o sangue deixou de irrigar o cérebro este começou a funcionar melhor e as oitavas de Camões saíram em catadupa. Mas foi por pouco tempo. Cinco minutos depois o fantasmagórico Choco tinha por companhia a dona Natas. Coincidiu tudo com a chegada do Fininho de mais um dia cansativo a tapar varandas. Deu de caras com o Capitão Iglo e nem tirou as botas, correndo tresloucado para o sofá e carregando no play do leitor de DVDs que de imediato começou a debitar o “Noddy para adultos”. Nessa noite a mão direita alcançou a redline e ao amanhecer a sala parecia ter sido invadida por nevoeiro. Quando o top saiu a Dona Natas recuperou a normalidade e ainda teve tempo para dar um chá de limão com meio-gordo ao Choco para lhe acalmar a diarreia. Mas o nosso herói nem conseguiu contar três ovelhas, porque ainda a primeira não tinha saltado a cerca e ele já fazia uma aguada digna de um leão.
Noutro canto do reino o Tico dormia alegremente ao colo da dona, embalado pelo movimento ritmado da sua respiração, ao som de um ressonar impetuoso quando, de repente, o relógio de cuco comprado numa loja chinesa de referência baralhou-se e resolveu começar a zurrar furiosamente, em sintonia com o toque do telemóvel que debitava uma música rock dos Rolling Stones, a banda preferida da adolescência da Chefe Bélinha. Em vez de um estremecimento, um impulso, um ímpeto, perante tão grande conjunto de decibéis, a agora cinquentenária limitou-se a abrir metade de um olho, a localizar o aparelho e a estender o braço cuidadosamente para não acordar os outros dois companheiros de sofá.
- Tou?! – Perguntou, mais para lá do que para cá.
Não houve tempo para mais retóricas. O que do outro lado da linha foi dito fez com que o Tico voasse estremunhado para dentro da terrina da sopa que estava à entrada da cozinha.
- Fogo, há fogo na Escola dos Desaparafusados. Por este andar a ASAE ainda nos irá multar, pois o Fecais irá com toda a certeza dizer que declarámos uma Escola e afinal é uma churrasqueira, com frangos assados e tudo.
E a aflição era tanta que quando chegou ao carro reparou que estava com os chinelos do “Noddy”, vestimenta imprópria para um membro de uma direcção. Mas ainda teve tempo para coordenar a evacuação dos mongas residentes.
- Ponham-nos a arejar no terraço que eu prometo chegar aí primeiro que os bombeiros, que já chamei.
Dito e feito, saiu em peão, com os pneus a chiar, e com o acelerador a fundo. Todos os sinais vermelhos dos semáforos passaram a ser verde-escuros, as velhas nem se atreveram a reclamar o direito de passagem nas zebras, pois arriscavam-se a ficar estilo tapetes como acontecia a muitos gatos. Havia quem jurasse ter visto um carro verde com uma condutora de cabeça de fora a imitar uma sirene de emergência. A entrada no recinto escolar foi à leoa, o carro entrou de lado e por pouco não estacionou de marcha-atrás na sala da Dona Pilca. O veículo estacionou sozinho porque a condutora abandonou-o, estilo 007, mal passou junto à porta. O fumo já saia do elevador, que tinha sido sujeito a uma revisão profissional da Tótis feita por um romeno estrábico. Quando os bombeiros chegaram deram de caras com a Chefe Bélinha a soprar sofregamente pelas frinchas das portas.
- Se não te apagas com o vento, dou cabo de ti à dentada! – Ameaçou a nova heroína da Venteira.

Friday, May 09, 2008

Ratés

                         Camarada Choco
                                          Aventura 60

Antes de irmos ao assunto, é de primordial importância explicar o que significa “raté”. É um termo usado na mecânica, que se dá quando um carro apresenta problemas no funcionamento das velas de ignição. O veículo está a trabalhar, mas apresenta falhas de funcionamento, ouvem-se barulhos semelhantes a tiros, e por vezes saem do tubo de escape faíscas.
A campanha do “Pirilampo Mágico” estava na estrada e, mais uma vez, o Cabo Pilas tinha sido “voluntariamente obrigado” a ir para os comandos da embarcação. Mas desta vez estava feliz, a vingança contra o Stor Pobre tinha sido servida fria, muito fria: apanhara-o sozinho nos Serviços Administrativos, atrás de um biombo, com a Madrinha. Foi com este estado de espírito que iniciou 3 meses antes a preparação do “Open Pirilampo”: 1 pastinha azul para cada posto de venda, cujo conteúdo incluía uma caneta, 1 molho de papéis de identificação (data, nome, banca, turno, quantia, profissão), 1 folha de registo do “Open” com uma chamada de atenção no cabeçalho para uma nota no rodapé, 2 molhos de folhas brancas, 1 rolo de papel higiénico, 1 preservativo, 1 penso rápido e outras mariquices. Em anexo ia um saco grande cheio de sacos médios minados de pirilampos e de sacos pequenos para os ditos. E para mostrar que era um individuo simples que não gostava de complicar, num dos quadros em vez de pedir o número de pirilampos vendidos, pedia o número daqueles que tinham ficado no saco grande. Via-se por aqui que tinha tido um bom treino militar, que era um Cabo dos antigos.
- Um pirilampo, trá-lá-lá, - cantava alegremente o matulão, à medida que ia enchendo os sacos médios.
A um dado momento ouviu-se um “raté” monumental que trouxe às janelas toda a Cerci. Teria uma das carrinhas dado o “berro”? Mas no parque automóvel a calma era a habitual. Até os gatos ressonavam ao sol. Mas havia um cheiro de fumo no ar, duma das salas saia uma coluna negra.
- O Pilas…o barulho saiu da sala do Pilas, - gritou a Dona Pilca, que estava reunida em Conselho Mongalógico com a Pirosa, a Menina Tatrícia e a Kalélé a secretariar.
Todos correram para o primeiro andar e quando entraram no espaço pedagógico do ex-militar, deram de caras com o dito em pé, com um pirilampo na mão agarrado pela fita, ambos em estado místico (tecnicamente catalogado como “estado santinha). E quem dava luz era a cabecinha do Cabo Pilas, como se alguém tivesse puxado o cordelinho. Na parede atrás dele estavam colados os restos das calças de ganga que não tinham resistido à força do “raté”.
- Ou muito me engano, ou o Pilas está outra vez mais para lá, do que para cá, - desabafou a senhora da Sala das Roscas, virando costas com arrogância e saindo de cabeça levantada, fechando a porta com um coice violento.

Wednesday, May 07, 2008

O Bicho da Fruta (Triologia) - III

                                                       Camarada Choco
                            O regresso dos Desaparafusados

                                                                        Aventura 59

Já havia sinais de desanuviamento à porta da Escola: o Choco distribuía papo-secos a torto e a direito, ora na mamã ora na Tareca e também não se esquecia da Menina Tatrícia, enquanto a Dona Pilca assistia entristecida à cena, impossibilitada de participar devido ao novo horário, que a obrigava a um retiro espiritual até à hora do almoço. A mochila do Choco estava proibida de entrar na instituição, porque nos últimos dias tinha sempre vindo vazia e saia cheia ao final do dia. Só quando as queixas dos pais devido à falta de material dos filhos atingiram o ponto de rebuçado, é que todos se aperceberam que o nosso herói da Brandoa comportava-se agora como um Zé do Telhado, considerando-se obviamente o pobre. Ao telefone nos Serviços Administrativos estava agora a Prima 21 da Madrinha, que dormia o dia todo em frente ao aparelho. O “descanso eterno” tinha acabado, desde a “Biblioteca do Nélinho”, até às “Artes Gráficas” do Pintor, passando pela sala da Dona Pilca, o horário era rígido e o trabalho avaliado em quantidade de suor produzido.
- Madrinha, aqui está o dinheiro que ganhei a fazer 32 broches, - disse a Pirosa depositando a massa no saco-azul, que tanta polémica dera, sendo a causa da censura imposta pela Proprietária na rede da Internet interna. Segundo os boatos, o Fantasma informara o poder de que os conteúdos mencionados no Blog do Camarada poderiam ser usados pelo Fécais na sua eterna luta pelo comando da barraca, e que também tinha feito uma visita de cortesia ao dito, porque a partir desse momento ele passara a acusar os adversários de tentativa de ataque à integridade física do seu Surfista, nomeadamente a colocação do dito numa arca congeladora da marca branca da Worten. Uma coisa era certa, a saúde mental do pessoal Aparafusado andava pelas ruas da amargura e parecia sempre a descer. O Bicho-da-Fruta tinha-se instalado de vez!
A mãe do Buda da Educativa fizera uma visita à Escola e uma surpresa aos colegas do filho. Com uma máquina fotográfica chinesa tirara uma foto a cada estudante e mandara revelar. Estava agora ali a entregar o produto, gratuitamente, para que as funcionárias entregassem ao final do dia aos respectivos papás. Mas havia um pormenor inquietante. Todos os quiabos estavam desfocados, muito desfocados, à semelhança da cabeça daquela mamã. Os entes queridos só com óculos de mergulho, com tubo, e debaixo de água, é que poderiam olhar para as fotos e reconhecerem as suas obras de arte. Pela janela ainda puderam ver a Pirosa a atravessar a rua, com os braços levantados a mandar para o trânsito, fora da passadeira que estava a três metros. Quando tudo parecia ter voltado à normalidade, eis que o Bicho da Fruta volta a atacar. O Camarada Choco acabara de sair do chuveiro, apresentando um penteado a Clark Gable, com a roupa a escorrer água. Manias do Jet-Set! Quando a mamã chegou confirmou a actual mania do seu camaleónico menino. Duas noites antes tinha resolvido ir tomar banho às quatro da manhã, com o pijama chinês do “Winnie dos Puns”, e depois deitara-se todo molhadinho, tal como o macho principal, mas este devido ao filme do “Noddy para Adultos”, que a cara-metade se recusava a ver, mas que sofria sempre as consequências. Os pais reuniram-se e tomaram uma sábia decisão: encerrar o WC a partir das 20H00, para evitar mais tentações higiénicas do Choco. Tal como acontece em todos os remédios, há sempre efeitos secundários. Às quatro da manhã a bexiga estava tão inchada que tirou o Camarada do sonho da “Queima das Fitas”. Bateu, gritou, pontapeou, mas os donos da casa estavam em sono profundo devido ao “Bóbó, o Construtor”. Só lhe restou regressar à cama e abrir os cordões da bexiga.

Thursday, March 27, 2008

O Bicho da Fruta (Triologia) - II

                           Camarada Choco
                                   A maldição dos bichanos

                                               Aventura 58

- Vocês estão todas com caras de cú e não é por causa do Bicho da Fruta, - disse a Proprietária entrando sem bater, como mandavam as suas regras de boa-educação, nas salas. – Mas eu como sou vossa amiga tenho aqui a cura, - e mostrou um “pilhão” transformado em “confessionário”. – Podem depositar nesta caixa de cartão as vossas mágoas, que eu hei-de dar-lhes andamento, como faço neste espaço. Vou pô-lo à entrada da minha quinta, junto ao cagadouro da Sala dos Quiabões.
Mas não pôs só uma caixa, montou três, uma para plásticos e outra de esmolas, sendo esta a maior e de cor azul. Debaixo das saias da mesa arranjou um lugar para o Fantasma da Cerci, uma espécie de câmara de filmar móvel, que lhe fazia sempre o relatório das ocorrências ao final do dia. Mas a Escola estava inquieta. Junto aos Serviços Administrativos, a falar com a nova funcionária-escrava, via-se uma silhueta estranha, com uma cabeça que parecia um ovo cozido.
- Um rabo ao balcão da Dona Sãozinha?!! – Interrogou-se a Dona Pilca, que tinha deixado os óculos na mesa, em cima de um conjunto de “abafa-palhacinhos”.
No fundo do corredor que dá acesso às entranhas da Escola para Desaparafusados, o Camarada Choco estava com um olhar lúdico sobre a realidade daqueles Aparafusados, mostrando a sua perspicácia para retratar a ruralidade daqueles que o tentavam, em vão, reeducar. O horrível mundo de visões prepotentes e sombrias que a Proprietária tentava impor naquele espaço, só afectava os Aparafusados. Aos Desaparafusados ninguém metia medo, nem mesmo o Bicho da Fruta. Mas mesmo assim a Madrinha representava para o Camarada Choco um sonho mau. Era um confronto entre um Aparafusado e uma Desaparafusada no limite da normalidade. O cume verbal desta não intimidava ninguém, só provocava risos e desprezo. A imagem que ela dava era de alguém com calças de fantasia, feitas com os restos de vários lençóis, sapatos de verniz e jaquetão da Feira da Ladra.
O Bicho da Fruta tinha posto a Venteira em crise, havia Aparafusados em “estado convulsivo permanente”, e o Camarada Choco sabia que não poderia ficar quieto, vendo os seus amigos sendo dizimados pelo bichano.
- Hei-de ver a tua declaração de IRS ó Fecais, - ameaçou a Proprietária ao telemóvel, levantando os braços e expondo ao vento, como já era costume na época balnear, uns sovacões dignos de uma catedrática.
- E eu vou-te acusar de maltratares o meu Surfista e enchê-lo de Bichos da Fruta, sua bruxa com brilhantina no cabelo.
- Antes ter pasta no cabelo, do que cara de sapateiro viúvo. Fica sabendo de que a tua amiguinha nunca há-de ter aqui um tacho, - gritou com os olhos desorbitados, a cara lívida e flatulências retumbantes.
Acordou sentada no puffe laranja da sala da Dona Gilete e reparou que a funcionária estava distraída a ver o Marco Paulo no programa do Goucha. Quando se preparava para intervir energicamente, sentiu uma estranheza e inquietação. Além de não se conseguir levantar só conseguia dizer uma palavra:
- Bom-dia, bom-dia!
- Está caladinha Papagaia que eu quero ouvir a música, - gritou a dona Gilete atirando-lhe uma bola de plástico azul à cabeça.
O Porres nem queria acreditar no que vira. Uma funcionária a agredir um Desaparafusado com um calhau da calçada. Como Presidente não podia admitir tal insensatez. Tinha que intervir. Teria, mas não conseguia levantar-se da cadeira de rodas. Segurava na mão uma caixa de plástico de um rolo de fotografias, na penca sobressaia uma ferida em carne viva, de tanto raspar com o indicador direito, e quando tentou chamar à atenção a subordinada, teve uma convulsão e mijou-se todo. Permaneceu em silêncio durante alguns minutos, até que conseguiu exprimir-se:
- Não faz xixi na mesa, não faz xixi na mesa!
- Seu porco, - gritou a funcionária atirando-lhe com uma bola de plástico verde à mona.
O Bicho da Fruta ia lentamente atacando os Aparafusados, numa escolha selectiva feita um a um. A Papagaia vira-se liberta da sua carcaça e mal se apanhara com os ossos da Madrinha, rumara em direcção à neve, lá para os lados de Espanha, numas merecidas férias sabáticas. Quanto ao Pentes, agarrou no carro novinho, comprado à conta de um Desaparafusado, e saiu a chiar.
O Camarada Choco estava por dentro do assunto. Parou à porta da Sala dos Quiabões, lançou um olhar simples e místico sobre a Papagaia, que sabia que ele sabia que ela era a outra, e atirou-lhe com um extremo tesão verbal, que não era mais do que uma recusa frontal para a tirar do seu acessório. Mas a festa ainda ia no adro. A entrada para a casa de banho dos Quiabões estava parcialmente bloqueada por uma palete com caixotes misteriosos. Todos se interrogavam da proveniência de tanto material. Seria mais uma limpeza de um sótão feita por um benemérito que preferia a Escola ao contentor? Ou um protocolo com a Somália, que prometia aclarar o quarto escuro das pulsões dos Desaparafusados, sujeitos a leis naturais?
- Ninguém toca nos meus livros, - avisou o autor do projecto, o Nélinho.
Livros junto a uma casa de banho? Iriam substituir os rolos? Mas o mistério ficou resolvido porque a sala da ex-Piulia ostentava agora um letreiro:
“Biblioteca Doutor Nélinho – onde a leitura é compulsiva e os leitores têm a memória extinta”
O Bicho da Fruta tinha destas coisas!

Tuesday, March 04, 2008

O Bicho da Fruta (Triologia) - I

                         Camarada Choco
                                          Pré-Contágio

                                            Aventura 57


- Mas o que é que se passa na minha propriedade? Porque é que os escravos estão todos mascarados aqui no r/c?
- É por causa do bicho lá de cima, - respondeu alguém, por detrás de uma burca.
- Eu não dei ordem ao animal para descer e portanto declaro que não há “Bicho da Fruta” aqui em baixo. Acabou-se o Carnaval e vão já directos para os vossos postos de trabalho, - disse a Proprietária do Estabelecimento, apontando com o dedo. – Só gostava de saber quem é que lhes meteu esta ideia na cabeça?
- Pssst, pssst, - chamou uma voz vinda da penumbra da casa da caldeira.
- Fantasma?! O que é que faz aqui.
- Eu sei quem é que distribuiu as máscaras.
- Diga-me já e eu dou-lhe parte do cheque do velho da colónia.
- Foi….tttttt, - e o recado foi entregue como de costume, indicando jogar nos dois campos.
- O que é isso do “Bicho da Fruta”, Dra. Sem Canudo? – Perguntou bruscamente a mãe da Trovoada, vinda da porta de entrada.
- “Bicho da Fruta”?! Não! É uma brincadeira, elas são muito brincalhonas, - e deu uma ordem brusca com a mão, indicando de novo o caminho às escravas.
- Não se brinca com o “Bicho da Fruta”! – Atirou a encarregada de educação, já um pouco desconfiada.
- Aqui brincamos com tudo, somos muito brincalhonas.
- Também brinca com o “Bicho da Fruta”?!
- Não. Alguma vez eu deixava o “Bicho da Fruta” vir passear para o r/c ? Nem pensar, só se fosse desaparafusada. Cada qual no seu cantinho. E o bichinho está muito bem agasalhado lá em cima no meu hotel.
- O pessoal que vai ao Centro da Vila fazer o “Teste do Mantorras” já pode entrar na carrinha, - informou em voz alta o inconveniente Primo do Choco, com a expressão de quem estava em vias de criar um soberbo cagalhão.
- O “Teste do Mantorras”?! – Indignou-se a mãe da Trovoada voltando para dentro da “Quinta Canudo”. – Afinal, o “Bicho da Fruta” anda por aqui e estão a querer esconder a verdade.
- A verdade são as suas duas propriedades, - impôs-se a Proprietária, estendendo a mão e mostrando alguma ferocidade naquilo que fazia. – Com duas casas, uma delas clandestina mas em zona turística, tem de pagar mais pela reeducação impossível da sua Desaparafusada. Senão vai direitinha para a Escola Pública, - ameaçou, mostrando estar a par da nova política educativa. – E lá ela vai ficar pior!
Ao seu lado estava o Ministro, mostrando o carinho e o gosto que sentia ao exibir a sua língua, estilo afiambrado chinês. Só duas partes da Proprietária continuavam a desafiar a compreensão dos Aparafusados.: a sua mente e o seu saco azul. E sabia-se muito pouco do conteúdo de ambas. Mas o Primo do Choco já estava atrasado para o almoço e ainda nem tinham ido mostrar o braço ao “Centro de Bichados”. Por isso carregou de tal maneira na buzina que até a Moca se insurgiu. Mas o homem já estava perto de uma convulsão, pois mal se apercebeu que os Desaparafusados já estavam todos nos respectivos lugares, pôs pata a fundo e saiu com o “machibombo” a guinchar, passando por cima de alguém que vinha carregadinho de pincéis. A entrada no estabelecimento de possíveis tísicos, e ainda por cima Desaparafusados com má-cara foi, mais uma vez, recebida com receio e desconfiança. E para marcar território o Papagaio arriou uma mija tão poderosa na muge da sala de espera, que transformou por momentos o local na Ribeira do Jamor. Mas a campainha tocou quando alguém atingiu a marca de 16, recorde absoluto neste estranho jogo do “Bicho da Fruta”. O barulho perturbou a prestação de um dos participantes do “Jogo da Escarreta”, que consistia em tentar acertar num balde amarelo pendurado numa parede com o dístico futurista “deixe aqui a sua expectoração”, levando-o a perder o controle da sua “verdinha”, que se espalmou de encontro a um cartaz da Luta contra o Bicho da Fruta e descaiu, deixando rasto como o caracol, para cima dos copos de plástico da água fresca.
- De quem são estes tomates? – Perguntou a Madame Electrochoque, agarrando no material que estava no primeiro degrau da escadaria que levava à Universidade Professor Doutor Nélinho, no sótão, onde o Camarada Choco fazia agora a sua teses de doutoramento.
O caso estava a agravar-se, o “Bicho da Fruta” atacava em todas as frentes.
- Está cheio de caruncho, - disse a Dona Firme.
- Nestes já nem os cães tocam.
Ninguém reclamou as peles, mesmo com elas penduradas no vidro dos Serviços Administrativos.
- Só há uma solução, que é ver qual dos machos é que passou a fazer chichi sentado, -sugeriu o Fantasma ao ouvido da Proprietária.
A sugestão foi bem aceite , as fêmeas receberam por sms autorização para espreitarem pelos buracos das fechaduras. O sinal de alarme surgiu quando apareceu outro par de tomates à entrada do Bar.
- É o bicho, é o bicho, vai-nos devorar, - gritou a Psicóloga Loira, correndo para a rua.
- Têm marcas de baton, - informou a Dona Espatinha apanhando a fruta podre do chão.
Analisava-se agora o andar dos elementos masculinos, para tentarem descobrir os donos dos vegetais.
- Ele está a abanar mais as ancas, - disse a Dona Piúlia, apontando.
- Sempre abanou, - exclamou a Menina Tatrícia, passando rápido.
- Bom-dia, - cumprimentou um macho, muito macho, com uma voz fininha, que depressa mudou para grossa, chamando a atenção de todos os elementos femininos que normalmente se encontravam na entrada.
-Está um sentado na retrete, - gritou alguém de longe, precipitando uma multidão de investigadoras para a casa-de-banho.

Fim da Primeira Parte

Segunda Parte – A maldição dos Bichados
Terceira Parte – O Regresso dos Desaparafusados

Tuesday, February 12, 2008

Propriedade Privada


                          Camarada Choco

                                                                  Aventura 56

A leitura que fazemos do mundo dos Desaparafusados é muito subjectiva, pois eles dependem sempre dos seus estados de alma. É por isso que o bar é o epicentro de todas as coisas. Representa o domínio absoluto da Dona Espatinha, cuja única obrigação é pagar a Dízima à Senhora do Feudo. Um dia quando se preparava para fatiar o já célebre Bolo de Baba de Monga da Mosca Morta , deu de caras com uma dentadura a rir-se para ela.
- Meu Deus, alguém perdeu peças! Será de um Aparafusado ou de um Desaparafusados, eis a questão?
- Banana, massa, arroz, salada, cebola, - disse o Buda, o monga com a maior cabeça da Instituição, que ficara ao espelho a ver crescer a cabaça, porque na ilha não havia palinhas para desviar o líquido da tola para o estômago. E quando os papéis chegaram para uma reeducação à séria num país distante, já a cabaça tinha solidificado, como a lava de um vulcão. Era o Buda e só falava em comida, mesmo quando cagava.
A ocorrência foi comunicada, por telefone, aos Serviços Administrativos, e a Madrinha quis saber de que material eram feitos.
- Se forem de oiro meta no Saco Azul e deixa de haver descoberta, tal como aconteceu ao cheque do velho da colónia.
- São brancos! – Informou a Dona Espatinha.
- Ponha-os na retrete e diga-me o que é que acontece, - ordenou.
- Flutuam!
- Então não é marfim, entregue-os ao dono, - e desligou.
A Dona Espatinha sentiu-se perdida, desajustada. Como é que iria descobrir o dono ou dona do “corta-palha”? Resolveu pôr em lugar de destaque o achado, com uma tabuleta. Os primeiros a entrarem no estabelecimento foi um casal constituído por dois mongas genuínos, uma pateta deslumbrada e um pateta pretensioso, que quis logo comprar os dentes para oferecer à noiva.
- Mas ela tem os dentes todos, não precisa destes.
- Fica com mais, - justificou-se o chinês, mostrando porque é que na sala era o terceiro calhau a contar do armário.
Mas atrás deles estava outro, com um ar assustador e perverso, mascarado de “Abelha Maia”, a dizer que era um ninja.
- Espatinha, vê se são meus, - e abriu a boca, mostrando ser um descendente em liga directa do crocodilo do Peter Pan.
- Vê se entendes, isto não são bolas de sebo, são dentes.
- Então se calhar são meus, - gritou um monga amaneirado e ignorante entrando de rompante no espaço, na ponta dos pés.
- É mentira, são meus, deu-me a minha tia que trabalha num convento em Espanha que se chama “O Elefante Branco”, - exclamou o Pitrongas, que vinha coladinho ao bailarino, mostrando ser um deficiente versátil, sempre disposto a tentar novidades, neste caso enfiar na boca uns dentes de plástico com musgo. Mas antes cumprimentou a Dona Espatinha com um volumoso “Bom-Dia” em alemão, que foi de imediato chumbado pela Senhora das Sandes que apelou ao rigor e à ética, valores que eram transmitidos a todos pelo Presidente Porres, um exemplo de gestão e dedicação à causa do Camarada Choco, só com duas pequenas manchas, de mijo, no currículo, uma assinatura num cheque para um amigo e num contrato para auto-emprego de supervisor de nada, numa altura em que a sua Escola de Condutores de Mulas estava na falência. Enfim, um Pancho Villa da Brandoa. Junto à porta permanecia o Camarada Choco, belo e misterioso, com a mochila entreaberta. A afectividade do seu olhar era a prova da sua modéstia. O “corta-palha” iria, mais tarde ou mais cedo, pingar para a sua mochila. Apareceu o Castanheira e o Primo do Choco, que demoraram algum tempo a analisar a peça.
- Meus não são, - atirou de rajada o familiar do nosso herói, mostrando ser psicologicamente da profundidade de um bidé.
Quanto ao primeiro, tomou um leitinho transparente, fez uma excursão pela memória e deu uma “grande seca” à Dona Espatinha, contando-lhe a história da bisavó que usava um dente de elefante. O Vira-Bicos, um homem de complexidades poliédricas, só parou junto do objecto estranho ao café, que o fez revelar-se como um senhor de segredos imorais. A presença de todas estas carcaças ressequidas estava a levar a Senhora das Bicas a aproximar-se a passos largos do seu ponto de saturação. Já se via o véu amargurado dos olhos. A Lolita entrou sem aviso com aquele movimento verbal que fazia dela um fenómeno da natureza, cuja língua não tinha medo de nada e debitava palavras rápidas, altas e sonoras, que a faziam delirar e alucinar.
- Organizem-se! – Gritou com a altivez dos mitos e o clamor do trovão.
E como boa telefonista compulsiva, agarrou na mão e fez de imediato uma ligação para o vereador dos seus sonhos, dando-lhe conta, com veemência e voracidade, da descoberta da Dona Espatinha.
- Acudam, acudam, - gritou alguém dos confins da Escola.
No parque da instituição tinha sucedido algo! O Cabo Pilas apresentara-se ao serviço dentro de um bólide e tinha tido alguns problemas na manobra.
- Eu estava aqui sentadinha no contador da electricidade a fumar um cigarré quando vejo um carro a fazer a recta aos soluços, - contou a Tareca ao agente Bóbó.
- E não vinha ninguém ao volante, - interrompeu a Faísca quase à beira de uma convulsão.
- Quando quis fazer a curva acelerou e nem tive tempo de acompanhar a manobra. Ouvi um estrondo, vi uma data de pincéis a voar e o carro continuou, só parando lá em cima no local das “cargas e descargas”.
- Houve vítimas? – Perguntou o repórter da TVI.
- Está ali espalmado no chão, a confundir-se com o alcatrão, um gato, - exclamou a Dona Piulia, que tinha sabido da notícia e suspendera as dores para vir aparecer na televisão.
- É a dona do bichano?
- Não, sou uma vítima!
- O carro-fantasma também lhe acertou?
- Atropelaram-me a alma e fugiram, - queixou-se a Senhora das Baixas Pressões.
No cimo do parque a porta do bólide abriu-se e saiu de lá, com um ar arrogante, o Cabo Pilas, trazendo na mão direita uma mala à Doutor que se abriu com estrondo e espalhou várias “Ginas” pelo alcatrão. Depois de recolher o material didáctico dirigiu-se, em passo de ganso, para a Escola de Desaparafusados. Quando ia a passar pelo gato espalmado foi interceptado pela Pirosa:
- Já viste o lindo serviço que fizeste, - e apontou para o bichano.
- O gato sabia fazer “crochet”? – Perguntou o repórter.
- Gatos há muitos, - respondeu o Cabo Pilas, limpando as solas dos sapatos, com desprezo, no pobre animal. – Serve para tapete de entrada, - e desapareceu lá para os lados do primeiro andar em busca da sua Kalélé, cujo horário de trabalho indicava que deveria estar no seu quartel, a dar lustro aos livros. Mas já tinha concorrência:
- O que é que o Senhor Pintor faz aqui, junto à minha porta? – Perguntou, tentando crescer.
- Esta porta é a sua? – Perguntou o artista da cassete pirata, barrando o acesso do dono ao interior do espaço. – Não pode entrar, está em manutenção.
- Em manutenção?! O senhor pretende dizer que eu trabalho num mijatório?
- Não pode entrar, e pronto, são ordens da Doutora Sem Canudo.
- O quê?! Até para entrar na minha sala tenho de pedir autorização à Madrinha das outras?
- É um assunto que não me diz respeito. Não entra e pronto!
Na outra ponta da Instituição que transformava Aparafusados em Desaparafusados, a Maria contava a odisseia no “Miguel Bombarda”:
- Quiselam dáleme os comprimidos e eu de-lhes uns abufos.
Tinha tido alta, não porque a merecesse, mas sim para não pôr em perigo a vida dos Doutores & Companhia. Tinha sido sempre assim, na Venteira era onde a compreendiam, com mais ou menos dentadas.
- A Gilete esteve aqui? – Perguntou a Menina Tatrícia pegando nos dentes e ficando com eles em frente aos olhos, tal como Shakespeare.
O caso só ficou resolvido quando a mãe do chinês-cagão reclamou pela falta de material.
- Os dentes são nossos, - explicou a mãe-monga. – Quando eu vou para o trabalho, ele vai desdentado para a Escola, quando eu tenho folga, fico a comer papas em casa.
No rés-do-chão, na área da Educativa, a confusão era enorme. O Amendoim tinha ido aos cornos, com o único braço disponível, ao Buda e a Pipoca não conseguira segurá-lo.
- E ainda por cima está com uma convulsão e a cabeça do outro ultrapassou o tamanho dum melão do Entroncamento.
O Amendoim era um Desaparafusado de cor, que desaparafusava em muitas coisas, incluindo o crioulo. Tinha aparecido na Escola acompanhado da mãe e de um tradutor, que explicara à Psicóloga Morena que o objectivo da encarregada de educação era que o seu Amendoim chegasse ao final do Ano Lectivo a falar um crioulo límpido. E como os desejos dos progenitores eram agora lei, até para os Desaparafusados, crioulo foi a língua oficial registada no Plano Educativo. Invertia-se assim a situação, o Amendoim passaria à condição de Aparafusado e os doutores promovidos a analfabetos. Descobriu-se mais tarde que o Desaparafusado, Aparafusado em crioulo, era surdo que nem uma porta, um mouco genuíno. Nova carta para casa, de novo a mãe presente numa reunião, mas desta vez sem tradutor, e na mesma condição que da primeira vez. Informaram-na que o Amendoim nem crioulo, nem português, e tudo causado pela panada que levou ao nascer, quando caiu do coqueiro. Mas como quem tem boca vai a Roma, lá lhe conseguiram explicar que possivelmente o filho teria de gramar com um aparelho auditivo. Fez-se luz! Desta vez percebeu o sentido da questão e explicou que já lhe tinham querido pôr o tal rádio no pavilhão auditivo, mas ela recusara, por uma questão estética. O percing da Casa Sonotone não jogava bem com o seu Amendoim. E como boa guineense de família muçulmana, optara por proteger as partes baixas do seu rebento com um colar feito por um bruxo. A última cena que ocorreu no corredor central foi a Kalélé em fuga para a Sala da Dona Pilca, que estava ausente por motivos de força maior, perseguida por dois mecos rebarbados.

Reforma “Convulsiva”




                          Camarada Choco

                                             Aventura 55


- Vai imediatamente para a reforma, - gritou a Doutora Sem Canudo entrando de rompante, sem bater à porta como já era costume, na Sala dos Têxteis, acordando violentamente a Dona Piulia, que tinha adormecido ao som de um “ponto-cruz”, dado pelo seu Tino. A expressão facial da Madrinha mostrava que estava irresistível, incontornável e incondicional.
As portas das outras salas ficaram cheias de olhares curiosos que passaram a acompanhar do interior a estranha animação.
- Não posso, tenho de acabar a encomenda de duzentos “abafa-o-palhacinho” feita pela Dona Pilca e que espero vir a acabar lá para meados de 2020.
- Tem de ir para a reforma porque a minha caixa está a ficar vazia e qualquer dia não há dinheiro para me pagar o ordenado dum dos cargos que não exerço há vinte anos, na época em que usávamos os pauzinhos dos gelados para endireitar mongas, mas que faço questão de receber. A outra Caixa que lhe pague o ordenado.
Mas a Dona Piulia tinha caído novamente num transe profundo e estava agora a receber o seu príncipe encantado, de nome Tino, desta vez vestido de bombeiro e munido de um camião com os dois depósitos cheios e uma mangueira descomunal.
- Aiiiii, - gritou a Informadora , que ia a passar e fora albarroada pela sonhadora que vinha em marcha-atrás. – A senhora já não sabe o que faz, tem de ir imediatamente para a reforma e deixar o que lhe pagam para pagarem a mim, que preciso do carcanhol, - e piscou o olho à Madrinha, que aplaudiu e a chamou à parte.
- O dinheiro não é todo para si. Eu dou-lhe vinte por cento.
- Só?! E as informações que lhe dou, não valem nada?!
- Ok, mas não pense que fica com o carcanhol todo. Eu quero continuar a receber pelos vinte cargos em que me auto-nomeei.
- Trinta por cento e já não se fala mais no assunto. As informações valem oiro.
- Mas primeiro temos de convencer a Piulia a reformar-se.
- Deixe isso comigo, que eu vou ser implacável.
A Dona Piulia tinha novamente caído num dos sonhos e estava agora defronte de um Tino vestido de Noddy dentro de um táxi amarelo que a convidava para o deboche e a perdição. A Madrinha aproximou-se sorrateiramente da senhora dos Têxteis, pôs-lhe o braço por cima do ombro e sussurrou-lhe ao ouvido:
- É o Tino novamente. Já viu que com a reforma vai tê-lo a tempo inteiro.
A presa sorriu, abriu os olhos, que deixaram de caber nos óculos, respirou fundo e disse:
- Talvez tenha razão, vou pensar no assunto.
A Madrinha piscou o olho à Informadora e marcou mais uma reunião, junto à casa de banho da entrada, o cartão de visita da Escola, paredes meias com os sofás onde se sentam as visitas, que muitas vezes pensam que entraram nos esgotos. Como do costume, a instalação sanitária estava ocupada com os meninos da Dona Gillete, uns cagões da pior espécie.
- Viu, aprenda comigo que eu ainda vou durar muito, - exclamou a Madrinha ao ouvido da candidata a Madrinha. – Ela disse que ia pensar, o carcanhol já está no papo.
- Tem a certeza?! Olhe que eu preciso dos trinta por cento para este ano. A Dona Piulia ameaça com a reforma desde que chegou e ainda nos há-de enterrar a todas.
-Esteja descansada. Eu conheço este tipo de gente. Eu também ando a dizer que vou largar os cargos e cada vez tenho mais.
- É por isso que estou preocupada. As doenças pegam-se.
Mas a alma da Dona Piulia estava cercada de sonhos, expectativas, desgostos, alegrias, sonetos, tragédias, romances. E a causa disso tudo tinha um só nome: Tino!
- Piulia, - continuou a Madrinha, pondo mais uma vez o braço ao redor do pescoço da funcionária de meia-idade, não para o apertar, como era o seu desejo mais íntimo, mas sim para tentar dar-lhe a volta ao ordenado. – Ofereça ao seu príncipe-da-praça um “abafa-o-palhacinho”, sou eu que lho dou.
- Alto e pára o baile, - gritou a Dona Pilca. – Isso tem um preço.
- O preço de tudo o que se fabrica nesta Escola de Reabilitação é decretado por mim. Eu deixo, a título excepcional, que a Dona Piulia leve um destes agasalhos para palhacinhos, de borla. É por uma causa justa!, - E deu um toque à Informadora, que estava coladinha . – Aprenda que eu não duro para sempre.
- Infelizmente parece que também ainda nos vai enterrar a todas, - sussurrou a candidata a nada.
- Mas o que é isto?! – Indignou-se alguém que pretendia fazer um telefonema para casa, e assentar no livro como “de trabalho”, e verificou que o aparelho já não estava ao “Deus dará”, mas guardado por uma nova funcionária tipo cão de guarda, que fazia questão de discar o número.
Entretanto e enquanto a pessoa reclamava da mudança, o Porres aproveitou a distracção da funcionária e discou para a esposa, como era habitual, para saber o que era o jantar. Aproveitou para lhe dizer que à tarde, quando iniciasse a volta, passaria lá por casa com a carrinha e os mongas, para a levar ao Feira Nova. Enquanto se discutia a problemática da gratuidade do “abafa-o-palhacinho” made in Dona Pilca, cuja produção tinha sido contratada aos chineses da Sala dos Têxteis, da responsabilidade da Dona Piulia, cujo estado a que tinha habituado os colegas do “mais para lá do que para cá” se tinha alterado radicalmente devido a um simples Tino, passou o Camarada Choco com um dossier debaixo do braço e os dois olhos “à Belenenses”, uma vez que insistia em estar acordado e a falar durante toda a noite, à medida que passava as folhas transportadas com tanto orgulho.
- Agora o poder da Madrinha multi-funções também já chegou aos meus “abafa-o-palhacinho”? – Insurgiu-se a Dona Pilca, mostrando a todos porque é que ao longo de toda a sua carreira escolhera sempre ser a voz discordante.
Desde que se tinha mudado para o topo da instituição, a Faculdade de Tampinhas Professor Doutor Nélinho, o Camarada Choco estava num estado de exercício contínuo de aprendizagem, que associava ao sentido de liberdade e de independência individual a excelência da responsabilidade profissional. Ele era bom em tudo o que fazia, incluindo o cagar. Cagava com estilo para os outros, revelando ser individualista, moralista e empreendedor que levava as injustiças da vida muito a sério. Mas esta sua ingénua relação com o que de mais terno podia existir, confrontava-o muitas vezes com o que de mais brutal podia existir: o “olho à Belenenses”. Mas mesmo nestas ocasiões dramáticas ele conseguía fazer amor consigo próprio. De repente a Dona Piúlia levantou-se com brusquidão, pondo de rasto todas as doenças que andava há anos a propagandear, agarrou na mota eléctrica dada à Escola, mas registada pela Doutora Sem Canudo em nome próprio, para fazer um figurão como presente de um futuro aniversário para alguma sobrinha, e acelerou em direcção ao Refeitório, com um cigarro fumegante ao canto da boca e o cabelo ao vento estilo punck.
- Perdeu o tino de vez, - comentou a Dona Gilete habituada a estes jogos de humor, cruzados com dramas escondidos.
- O Tino é outro e tem “T” maiúsculo, - atirou a Tareca.
Mas a via rápida estava interrompida. O Professor Doutor Sem Canudo Nélinho esquecera-se de tomar o “Tenilvet” e sem o drunfo começara a deitar fumo pelas orelhas e a procurar uma vítima. A “sorte” coube ao Vira-Bicos.
- Alto e pára o baile, - gritou, pondo-se em frente ao Animador-de-Mongas.
- Mas o que é que vem a ser isto?! – Indignou-se o hippie ao ver-se envolvido numa pega de caras.
- Mostre-me a sua autorização de residência, - ordenou o agora bófia Nélinho.
- Mas quem é o senhor para me dar este apertão? – Perguntou indignado o Vira-Bicos, já com os glóbulos oculares fora das órbitas e dos óculos.
O problema da dupla personalidade só foi resolvido depois da Terapeuta Zézé ter conseguído convencer o Nélinho a comer uma maçã vermelha com um “Tenilvet” no interior, perto do caroço, que lhe arrumou momentaneamente os carretos deixando de implicar com a vítima, que correu para o seu espaço artístico no primeiro andar e recusando, mais uma vez, a entrada da tia Kalélé para uma faxina.
A recusa do direito à reforma foi afixada no placar. Todos sabiam que sem os estímulos e provocações da Doutora Sem Canudo, a Dona Piulia perderia grande parte do seu poder e da sua originalidade. E em relação ao facto das puristas não gostarem do seu modo de trabalho, a Senhora dos Têxteis encolheu os ombros e presenteou-as com uma baixa, tendo ainda tempo para dizer:
- Têm inveja do meu Tino!

Monday, January 21, 2008

Cosas Nostras





                         Camarada Choco
                                          Aventura 54


Quando o Choco entrou na Escola para Reabilitação de Desaparafusados ninguém queria acreditar no que estava a ver. O herói do cinema mudo barulhento trazia um “olho à Belenenses”, digno dos melhores filmes do John Wayne (João Vinho). Teria sido um atentado dos Aparafusados? Não! Fora o presente matinal do papá por ele ter urinado na cama e encharcado o “colchão de quedas” comprado a um vendedor de material desportivo, depois de ter explicado ao cabeça-de-casal que a oportunidade era única e dava ainda direito a levar, completamente grátis, uma toga pata teses de doutoramento.
-Podes mijar para onde quiseres, menos para o colchão de ginástica onde eu e a tua mãe damos cambalhotas.
Mas o dia do pai do Camarada Choco, candidato à sucessão do Cavaco, tinha começado torto. Quando se preparava para misturar no leite os “croquetes para perros”, comprados no Bazar Chinês, secção de desporto, ouviu um grito da patroa tão alto e estridente, que o obrigou a dar um novo abrunho no filho, que era para não deixar dúvidas quando ao seu papel de chefe daquela típica família da Brandoa.
- Ele não fez nada, - disse a mãe, entrando toda desgrenhada na cozinha e dando um encontrão no cágado, que entrou de cabeça dentro da panela do caldo-verde.
- Fica já dada para a próxima. Mas afinal o que é que tens, ó mulher?
- Ó, ó, gamado, - engasgou-se a dama, apontando para a janela.
Novo sopapo no Choco.
- Ele não fez nada.
- Para a próxima safa-se. Fala decentemente, pareces uma deficiente.
- A “caminheca” não está no sítio. “Abafaram-ta”.
- Não te percebo, é melhor ires limpar o “colchão de quedas”, enquanto eu tomo os flocos para ver se me passam os bicos-de-papagaio.
O choque foi tão violento que o pai do Choco ficou estático durante alguns momentos. Tinham-lhe gamado a “caminheca” carregadinha de ferramentas chinesas. Por sorte o Choco já se tinha ausentado para a Faculdade e estava agora no sótão, o último patamar para a Licenciatura em Tampinhas, nas mãos do Professor Doutor Nélinho que andava com uma crise de Sem-Canudo, dando ordens, umas atrás das outras, à sua Piulia, que estava fresca que nem uma alface, contrariando o estado normal de “mais para lá do que para cá”, e tudo isto devido ao Tino, que a tinha convidado para uma noite de arromba.
O edifício sofrera uma invasão de tampinhas de plástico, que ameaçavam pôr os Clientes na rua por falta de espaço. E para agravar ainda mais o reino da Madrinha, o Fecais, uma espécie de “canudado” mentecapto, assessorado pelo maior monga Aparafusado da Brandoa, o Vóscar, queriam a todo o custo tomar o poder, que uma vez já tinha sido deles, para assim puderem passar mais um cheque avultado a um amigo, como o tinham feito no passado, e todos juntos passarem novamente umas belas férias nas Ilhas do Seixal, e do dinheiro nem rasto, nem responsabilidade, só prescrição. Mas desta vez tinham pela frente o Camarada Choco, o maior, o melhor. Mas o mal não era só na Venteira. Por esse país fora ter um Desaparafusado tinha sido sinal de emprego garantido e propriedade vitalícia. Há muitos anos, muitos longos anos, lá para os lados da Portela, havia um “proprietário” que não largava o tacho, desde que montara a Quinta para Desaparafusados. As leis da República Democrática ficavam à porta do seu castelo, preparou-se muito bem para ficar até morrer, as eleições seguiam os cânones africanos, os mandatos eram ilimitados, e o mito dizia sempre aos votantes que “após ele seria o dilúvio”. O crime era mais que perfeito. Mas havia mais! Como o filho partia tudo em casa, recambiou-o para o “seu” castelo, com direito a todas as mordomias, escondidinho lá no cantinho duma das vivendas, longe dos olhares indiscretos. Enquanto que os filhos dos camponeses só tinham direito a quinze dias de férias, assim diziam as regras, a permanência do seu monga era vitalícia. E ninguém ousava desafiar o rei, porque sua majestade tinha bons contactos no Poder da República, e a República incentivava estes tiranetes, porque eles ofereciam-lhe anualmente a “Festa das Vaidades”, com governantes, televisões e mongas amestrados. Mas voltemos ao desafio Fecais&Vóscar versus Camarada Choco.
- Eu quero um emprego para a minha esposa iletrada, mas ela só aceita ser Doutora Coordenadora Sem Canudo., - gritou o Fecais, que se intitulava “Gestor”, que só podia ser da “mula russa”, mas que um dia assinara um cheque de dez mil contos, para a entrada de uma cave miserável na Brandoa, que estava a ser vendida por um amigo de confiança, perseguído injustamente pela polícia.
- Apoiado e assinado, - concordou o Vóscar que, ao levantar-se para dar mais força ao cúmplice, desequilibrou-se com o peso do tintól, e caiu ao colo do monga Aparafusado que estava ao lado, que oficialmente era pai duma desaparafusada, e que estava mais para lá do que para cá devido ao excesso de carrascão que emborcara ao almoço, mas que mesmo naquele estado que nem a um monga se aceita, ele conservava o direito ao voto, que podia pôr novamente mo poder a dupla de “assinadores de cheques para mim e para os amigos”.
- E vou dizer mais, - insistiu o gestor da mula-russa. – Como homem-do-carcanhol que já deu provas de incompetência, quero partilhar com V. Exas., - e piscava o olho só aos “Mongas não Mongas”, que infelizmente pareciam ser a maioria, - tenho mais um esquema para tirar dinheiro aos ricos para dar aos meus amigos, os “pobres de espírito”.
E como não tinha argumentos que justificassem o golpe, atacou novamente no alvo mais fácil, as Afilhadas da Tarde.
- As duas senhoras tiveram um aumento de lei desmesurado. Proponho tirar-lhes metade do ordenado, pago pelo Ministério segundo as tabelas oficiais, e guardar a massa no cofre onde tenho o dinheiro que ganhei com a “entrada”. Com estas duas metades fica garantido o tacho para a minha mulher.
- Apoiado, - interveio de novo o Vóscar pondo-se de pé e tombando para o outro lado, onde dormia profundamente outro “Monga não Monga”, cuja mulher tinha como incumbência levantar-lhe o braço na altura de votar.
A reunião foi interrompida pelos gritos raivosos da mãe da Zulmira Destravada, uma cliente muito antiga, que se tinha sentido ultrajada quando a Doutora Sem Canudo lhe lembrara que tinha em atraso vários meses de estadia no lar “O Saco da Madrinha”.
- O ministério não específica no subsídio para qual de nós é que vai o carcanhol, - dizia indignada a queixosa. E eu compro o tabaco com que dinheiro? A senhora desenrasque-se, corte no ordenado das suas Afilhadas Da Tarde como diz, e muito bem, o Fecais. Eu vou votar nele porque se ganhar vai distribuir cheques pelo pessoal.
- Apoiado, - gritou o Vóscar, caindo para a frente e arremessando violentamente o papá da Violeta de encontro à fila seguinte, criando um efeito dominó sobre os bebedolas, que só pararam quando já não havia mais votantes naquele sentido.
- Ela em casa diz “mãe dá-me uma carcaça que eu estou cheia de traça”, - jurava a mãe à Dona Gilete.
- Aqui é muda, - contrariava a menina de meia-idade responsável pela tentativa de reabilitação da deficiente.
Eram os chamados “Milagres Caseiros” que faziam com que os Clientes fossem Desaparafusados na Escola e Aparafusados em casa. Estaríamos perante uma fuga ao fisco? Cidadãos que passavam por aquilo que não eram, para que os progenitores tivessem benefícios fiscais, principalmente na compra de automóveis, onde eles não punham os pés, para não sujarem? Ou então a Desaparafusada era a Dona Gilete que não sabia línguas e por isso a moça mantinha-se em greve oral vitalícia?
- Em casa a minha menina pede, em francês, para ir arriar o cagalhão, - informava com certeza absoluta, e intrometendo-se, como era seu hábito, o senhor Baldinho, um Pai Sem Canudo com a mania que estava inscrito na Ordem, revirando os olhos mais rapidamente que o rebento. – Portanto, exijo falar imediatamente com uma Coordenadora ou parto isto tudo…faço queixa à ASAE…telefono para os CTT…faço qualquer coisa ruim. A mim ninguém me diz que a minha destravada mija pelas pernas abaixo e precisa de fraldas, porque mesmo que eu nunca lhe tenha feito controle dos esfíncteres, porque dava muito trabalho e teria de abdicar das cervejolas, ela despeja para onde está virada. Ouviram? É uma ordem.
Num canto de Lisboa, bem longe daquela confusão da Venteira, o Rematador era avaliado na “performance vocal” por uma Doutora cujo canudo era desconhecido, de um Centro que todos diziam ser um “Modelo” e que para isso necessitava de pôr a andar dali para fora, e para bem longe, os mongas que “davam muito trabalho”, ficando somente os candidatos de “sucesso garantido”. Tinham a mesma política que os colégios privados, ou seja, “fora com os destravados xungosos, só queremos os intelectuais”.
- Vou aplicar-lhe um teste para medir a quantidade de palavras que tem na garganta, - explicava aos técnicos que tinham tido o azar de ir à consulta com o Rematador, e cuja especialidade não era a da voz.
Assim não haveria testemunhas do embuste. A aplicação do Protocolo foi tão rápida, que nem a avaliadora percebia as perguntas que fazia, apesar de ser obrigatório que o Desaparafusado desse a resposta correcta, para assim poder pontuar e subir na vida.
- Imagina que este porco cor-de-rosa é branco. Onde é que ele está? – Foi a apoteose final.
O Rematador olhava para o tecto, com o “imagina” dava sinais de convulsão iminente, acerca das cores a cara revelada ser analfabeto, e quanto à posição limitava-se a olhar para o tecto. Quanto à avaliadora, apresentava um cabelo mais sebento que o do avaliado, e nem se dignava a olhar para o monga, tal era o frete com que estava ali. A única satisfação é que este ficava já aviado e só voltaria daqui a um ano, caso não morresse. Quanto a ela escreveria na agenda “missão cumprida”. O teste acabou tão rápido como tinha começado e as conclusões revelaram-se delirantes:
- Um breve olhar pelos gatafunhos que eu fiz nesta folha revelam-me que o monga deverá ter um Q.I. de 4 e está a desenvolver uma gaguez!
Assunto encerrado, regresso à nossa querida casinha. A terapeuta Bélinha, a verdadeira técnica, foi informada do incidente com a sebosa e limitou-se a responder com desprezo:
- Gaguez?! Mais o miúdo ainda nem começou a falar!
Estávamos a anos luz daquele “Centro Modelo” que se antecipava aos acontecimentos. Em frente destas cabeças “iluminadas” qualquer pai que baixasse os calções e mostrasse os tomates arriscava-se a que lhe dissessem que iria ter um filho coxo.