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315 estórias

Monday, October 17, 2011

O Delinquente



Camarada Choco

Aventura 81

O dia era de festa, o glorioso ia jogar na catedral e o Fangio Espástico não queria perder pitada do evento, a começar pelo voo da Vitória, uma águia com dificuldades em aterrar sobre a pata direita. Por tudo isto justificava-se que entrasse com a cadeira diretamente pelos fundos da carrinha, gritando de imediato para o pai:
- oe o é no alarador, arálho!
Quando chegaram à Luz o lugar exclusivo para os Desaparafusados ainda estava vago, apesar dos gritos alucinantes e do fumo que saia do alguidar vermelho. A porta traseira da Renault abriu-se com estrondo, e o Fangio Espástico saiu em cavalinho e acelerou em direção ao inferno, deixando para trás o motorista. Chegou na altura em que a sombra da ave de rapina engolia a multidão.
- enfica ampeão – gritou, ao mesmo tempo que travou a fundo perto do limite da varanda destinada aos sócios com problemas nos carretos. – Amos encer, arálho!
O inferno tinha tomado conta do Estádio da Luz quando o pai do Fangio Espástico se juntou ao filho, depois de se cruzar com o segurança que um ano antes tinha gamado a foto do Mantorras autografada com um “x”, que fora oferecida ao filho.
- Trabalho aqui há vários anos e o raio do preto coxo nunca me deu um autógrafo, mas porque este só mexe os olhos dá-lhe um poster, e ainda por cima pede-me para entregá-lo ao Desaparafusado.
 No exterior outro Desaparafusado tentava desesperado arrumar a viatura, mas não havia nenhum lugar VIP disponível. Até que descobriu uma oportunidade:
- Este Renault está com o desenho da cadeira caducado, - disse, com um sorriso solidário, carregando no botão com ligação direta ao 112.
Catorze minutos depois atendeu uma voz alterada, de alguém que não conseguira ver na televisão o golo do Benfica.
- A minha fralda está a transbordar, enviem imediatamente a polícia para o estádio do glorioso, - gritou o benfiquista Desaparafusado, ajeitando o rádio na orelha esquerda, uma vez que não tinha a direita.
O reboque chegou depressa e nem os apelos solidários de alguns Aparafusados demoveram o agente de fazer cumprir a lei. A carrinha do pai do Fangio Espástico deixou a Luz às cavalitas da autoridade, e o Desaparafusado queixoso, com o selo em dia, arrumou triunfante o “|Mata Velhos”, e saiu a correr em direção ao inferno, esquecendo-se da sua deficiência, mas não o local destinado aos da sua espécie, perto do relvado.
- etam o Antorras a ogar, arálho, - gritou o aluno com mais neurónios da Venteira, dando um chuto involuntário na cabeça de um anão que estava sentado num iogurte.
- Façam a vontade ao deficiente, - berrou o coxo do mata-velhos, dando uma palmada benfiquista no joystick da cadeira do Fangio Espástico, que avançou para cima do anão, que já tinha recuperado a anterior posição, ficando desta vez entalado dentro do frasco do "Danoninho".
Como se tornara um hábito o Glorioso chupou o tutano dos adversários e isto teve um efeito metafísico na assistência encarnada, Aparafusados e Desaparafusados: o coxo saltou de alegria durante alguns minutos, o treinador Jesus conseguiu discursar dez segundos sem dar um pontapé na gramática, o Fangio Espástico deixou de falar com a pronuncia  “bolotas na boca” e conseguiu pronunciar na perfeição a sua palavra favorita, “Karalho”, e muitos outros “efeitos benfiquistas”. Mas algo não estava nos planos do nosso herói da Venteira: a ausência da carripana que o levara à festa! O pai já tinha sido posto ao corrente da situação, o “Correio da Manhã” vinha a caminho. O coxo do “Mata-Velhos” voltou a arrastar a perna e deu toda a sua solidariedade ao colega, lamentando não poder ficar na manifestação por impedimentos físicos, causados por falta de cevada nas veias. A câmara do jornal esteve grande parte da noite a disparar, e por momentos o Fangio Espástico já se via a caminho da série “Bolotas com Farinha”, destinada a adolescentes com carretos chamuscados. A buzina do carro do pai apagou-lhe a alucinação e ele saiu do Alguidar da Luz com mais palmas que o seu colega Mantorras!      

Tuesday, September 20, 2011

Simplesmente Anoa


                                 Comandante Guélas


                                             Série Paço de Arcos
 
Quando a mãe do Pitrongas ficou com o Pinto só para si, depressa se mudou de armas e bagagens para a vivenda do velhote, e num abrir e fechar de olhos pôs um par de patins à governanta, uma concorrente perigosa, substituindo-a pela Anoa, um caniche em forma humana, que necessitava de um banco para fazer a salada de tomate e muitas outras refeições. A nova criada tinha por companhia o Tareco, um gato castrado que para ela era mais cavalo e companheiro. Mas o trabalho da Anoa não se resumia só à cozinha. Nas horas vagas era os ouvidos e os olhos da patroa. Nestas ocasiões montava então vigia na porta do jardim e nada lhe escapava na vizinhança. Quando o senhor Zé da Fruta apitava, lá se aventurava a atravessar a rua e, na companhia de outras sopeiras das redondezas, aproveitava para aumentar o rol de informações, que diligentemente entregava à chefe no final do dia. Até que um dia a rotina se alterou por completo, quando o Vaca Prenhe regressava a casa no carocha dos pais. Por momentos os dois olhares cruzaram-se e fixaram-se. Das orelhas do rapaz, que tinha acabado de ser pai do Cabeça de Ananás,  saiu fumo preto, um sinal inquietante. Pôs prego a fundo, subiu com metade do carro o passeio, decidido a transformar a meia-leca numa bonita toalha de bidé. Quando a Anoa se apercebeu que tudo aquilo era real e não um pesadelo saltou, no último segundo, para a proteção da ombreira do portão, tendo sentido ainda a deslocação do ar do bólide, que lhe levantou a saia tamanho Barbie. O exemplo foi terrível, o Graise imitou o mano, mas com mota, e desafiou os amigos. Estava assim lançado um novo desporto, o “abafa a anã”, que pôs a Maria em estado de alerta permanente e perto do suicídio, da borda do passeio. Não tinha descanso, a qualquer hora do dia arriscava-se a ser passada a ferro, tanto por quadriciclos como por motociclos. Reagia a qualquer barulho, passava a vida a correr para a proteção do jardim. Já nem a carrinha do senhor Zé da Fruta era um lugar seguro. Parecia o cão do Pavlov! E o risco aumentava quando a patroa, uma obsessiva compulsiva pelas limpezas, e mãe do único adolescente com um neurónio da Costa do Estoril,  a mandava ir varrer o passeio, depois de ter deixado o vasto jardim a brilhar. Mal via o carocha preto, que estava em constante sobe e desce, ao longe, abandonava tudo, incluindo a sombra, e corria para trás do vaso com o manjerico. Para a obrigar a sair da toca, o Graise e o Peidão, o adolescente mais bem comportado da vila, arranjaram uma estratégia infalível: passaram a trazer os sacos de lixo da vizinhança e a despeja-los dentro e fora do logradouro do Pinto, pondo a mãe do Pitrongas à beira de um ataque de nervos, e a Maria em estado de limpeza permanente. As razias aumentaram, o alvo estava num vai-e-vém constante, e qualquer dia a vila acordava com a toalha de bidé espalmada no alcatrão. E eis que um dia a Anoa resolveu acusar o irmão do Graise e do Vaca Prenhe, cunhado do Peidão, o único nas redondezas com um cromossoma extra no par vinte e um, de atirar o lixo para dentro do logradouro…às três da manhã. Quando soube a novidade a patroa agarrou na criada meia-leca e irrompeu pelo almoço dos vizinhos, apontando o dedo acusador ao último dos dez irmãos, que confundiu a Maria com um Peru, que para ele representava o Papão, e fugiu para debaixo da mesa. O Vaca-Prenhe ainda tentou atirar as culpas para cima do desgraçado do cunhado, mas foi de imediato posto no lugar de onde não tinha saído:
- Que miséria a acusar um menino tão educado e com bons princípios morais, que não se pode defender. Tenha vergonha do que diz! – Gritou a mãe do Pitrongas agarrando na Anoa e virando as costas aos vizinhos.

Thursday, July 21, 2011

Um pincel fora de prazo - III

 Camarada Choco
 Aventura80
Só "Joventude"
  
O Pintor acordou sobressaltado e sentou-se na cama ofegante e cheio de angústia. Sonhara com a surdidez do bordel onde nascera. Acendeu a luz e viu a sombra das malas que lhe tinham posto à porta. Tocou na testa e pareceu sentir duas proeminentes pirâmides absolutamente distintas. Olhou para o espelho do apartamento acanhado, em que nem os seus próprios fantasmas cabiam, e nem consolo estético teve. Em cinquenta e muitos anos de vida não tinha ido a lado algum, a Brandoa estava-lhe impregnada na pele. A seu lado dormia a EMA, uma rapariga de encher, atafulhada de remendos, zarolha, peganhenta, vítima da alarvidade do dono. Apertou-a com raiva e ela deixou sair um pouco de ar, em tom jocoso.
- Estás a gozar comigo? – Gritou, pondo-se em pé na cama carunchosa. – Andas com outro, aposto que é ele, – e pôs as mãos na testa.
Engoliu em seco e sentiu o sabor de sinapses estorricadas e o aroma torpe do cubículo que lhe servia de habitação. Era um falhado compulsivo, que se contentava com objetos comezinhos e ilusões de grandeza. Fez uma retrospetiva da sua vida remediada, medíocre, comovente, com variações sobre diferentes tipos de solidão, que foram diferentes formas de humilhação.
- Estou exposto ao fracasso, ao fracasso à vista de todos, já só alguns Desaparafusados acreditam em mim… e eu neles, - disse, falando contra si mesmo, para insultar a vida e para se insultar a si próprio.
Fez então um jogo de adivinhações e viu-se transformado num utente da Escola. Qual seria o seu equivalente? O Choco? Nem pensar, o Choco era um triunfador, colecionava vitórias atrás de vitórias, enquanto que ele, o Pintor, tivera sempre propensão para os exercícios negativos, fracassos, precaridades e embustes. O Filete? A cor era parecida, mas o africano não tinha a malvadez insatisfeita de pessimista que levava a uma periclitante visão do mundo. Foi sobressaltado pela imagem do Zé Tó, com uma vasta cabeleira de caniche e um modo de manifestação niilista, decadente e apocalítica.
- Eu? O Zé Tó? – Tornou a gritar, com uma nuvem de raiva a toldar-lhe o olhar.
Sim, era essa a verdade, o Pintor viciara-se nas febres do ego, estava em estado de depressão há demasiado tempo, não havia nada que não tivesse tentado para sair do buraco negro onde nascera, mas nada parecia funcionar para levantar o Pintor do torpor, da solidão, do silêncio, do estado catatónico.
Debruçou-se sobre o trabalho, um Diploma, e encalhou:
- “Juventude”? Como se escreverá? – Questionou-se, coçando a carapinha ensebada com alcatrão, para esconder a velhice. – Pensa Pintor, já não és aquele com o diploma da 4ª classe, mas sim o “dótor” com o nº 12 das Novas Profissões.
Mas como era pessoalmente inseguro e angustiado, atirou com raiva a EMA para o tapete:
- Vadia!
O gesto que demonstrava que nunca entendera as regras da vida social fê-lo optar pela palavra que derivava de “jovem”:
- É claro que se escreve “JOVENTUDE”!








Thursday, June 16, 2011

A Guerra dos Pitrongas




                       Comandante Guélas


                                     Série Colégio Militar



A campainha tocou na casa do velho Peidão, e quando este ícone paçoarcoense abriu a porta, deu de caras com o Piitrongas, acompanhado pela tia, a ex-rainha das meias do Rossio, cuja fortuna tinha estado até agora garantida para os dois sobrinhos flamingos, o que estava ali, senhor de um só neurónio, e o outro que se intitulava catedrático anglo-saxónico, cátedra trocada pela ocupação selvagem da casa do Pinto, o último homem a servir-se da sua mulher, uma vez que ele fizera questão de vir cá baixo buscá-la, alguns meses depois de ter ido para o “Condominium St. Peter”.
- Se me ouvires gritar à noite é porque o meu Pitrongão está a tentar-me matar, - disse a velha ao incrédulo Peidão, recolhendo ao carro.
Os carretos da senhora já tinham tido melhores dias, mas ultimamente estavam a riscar-lhe o côco e a alterar-lhe a perceção do mundo. Escolhera como alvo o sobrinho mais velho, a quem uns anos antes tinha telefonado para os states a informá-lo da morte do vizinho, que não tinha herdeiros, mas fora o responsável pela fuga da sua mulher, a Rosinha, que tivera pena do velinho e se oferecera para ser a governanta dos seus inúmeros bens após a sua morte, que esperava que fosse breve. E foi, mas para ambos!
- Tens de vir tomar posse, - explicou a tia ao Pitrongão uns anos antes. – O Pinto e a tua ex-Rosinha deram o berro, e o rebento que tu pensas que é teu, mas não é, é o único herdeiro.
- Mas, tia…
- Nem mas, nem meio mas, tens de fazer o que eu te estou a mandar. De fortunas percebo eu.
E percebia! Caíra nas graças do velho das meias do Rossio quando era sua empregada, porque fora a única que se sentara a jeito no colo do patrão, hábito que ele desenvolvera no final de cada mês no dia do pagamento dos ordenados. Foi casório para toda a vida, e património destinado em testamento para os irmãos Pitrongas. Mas tudo se alterou quando a velha tia meteu na cabeça que o Pitrongão andava a roubar-lhe as jóias, que ela misteriosamente era vista a esconder numa caixa de bolachas na despensa. Nem estas testemunhas serviram de atenuante, e o nome do sobrinho mais velho saiu do papel e foi considerado persona non grata. A parte intacta do cérebro tomava sempre a dianteira nestas ocasiões solenes, mesmo na altura em que o deserdado obrigara a tia a comparecer perante um juiz, que a considerou apta para todo o serviço, incluindo permanecer encartada, gesto que há anos não fazia, mas que agora teimava em repetir, apesar da sua avançada idade.
- Deixa-a guiar, é da maneira que o problema fica logo resolvido na primeira esquina, - aconselhou-o um amigo. – Com um bocado de sorte na curva irá a passar na altura o meritíssimo.
O Pitrongão achou-se injustiçado e  resolveu recorrer da decisão.
- Até as testemunhas me traíram, - confidenciou ao velho Peidão, quando o apanhou uma noite a pé em direção à vila. – Nunca falei com elas, como é costume nos anglo-saxonicos, e eu menti e elas disseram a verdade.
O ato falhado apanhara o ex-herdeiro da parte das piugas da tia em falta,
- Para a próxima pergunta-lhes se querem ir a tribunal, - atirou o velho Peidão, o mais sensato cidadão de Paço de Arcos, em jeito de despedida.
Soube-se no dia seguinte que a velha aproveitara as contradições para avançar com um anexo do veredito, aceite de imediato pelo juiz, que declarava os pitrongas excluídos das mudanças diárias das fraldas da tia, atribuindo a nobre tarefa aos herdeiros da parte do falecido marido, que há anos fugiam deste imbróglio como o Diabo da Cruz. Acabou por ser o Pitrongas a fazer a muda, pois a empregada contratada fugira a sete pés e os responsáveis estavam incontactáveis. 

Wednesday, May 04, 2011

Um pincel fora de prazo - II


Camarada Choco
Aventura 79

II - O Todo Boneco


Algures numa taberna da Brandoa profunda saiu um vulto num movimento de oscilação de alguém a tentar recuperar o equilíbrio, que denunciava o esforço de um urubu a procurar um corrimão ao qual se segurar. A queda fez um som cheio, molhado. A depressão da andropausa estava a transformar o pintor alienado num indigente existencial. Olhou para trás e deu de caras com a parede forrada com as fotografias da Ágata que o obrigavam a usar constantemente a mão. No caixote de lixo repousava a pintura fanhosa da italiana, por quem ele fora atormentado e gozado durante vários meses. Julgara-se um Michelangelo, mas não passara de um Emplastro. Veio-lhe à memória a tentativa falhada de participar uns anos antes numa exposição de pintura na Cordoaria Nacional, de onde fora expulso pelas tias que, ao olharem para os quadros, viram logo tratar-se de um pintor típico do fundo das garrafas de vinho. Fora condenado pelos genes para todo o sempre a não passar da ignorância, da melancolia, na incapacidade de se concentrar duradouramente na vida, que era áspera e agreste. Estava demasiado assoberbado com os problemas existenciais, que estes lhe explodiram nas cuecas. O pintor alienado de paredes da Brandoa profunda movimentava-se agora em círculos, porque tinha uma acumulação não libertada de prazeres culpados.
- Esta não me tiras, – gritou, carregando com raiva na tecla com ligação directa ao culpado:
- SOS Voz Amiga, em que posso ser útil?
- SOS?? Então não é o ladrão de amantes?
-Ladrão de amantes???
- A ucraniana….as frangas …já não arrebita.
O psiquiatra puxou da caneta e pôs um “x” na indicação “bizarra falta de juízo”. A chamada telefónica estava a ser feita por um homem que toda a vida conhecera apenas a linguagem do conflito, precisava de odiar, mesmo que isso implicasse deitar fogo a si próprio. Vivia à socapa, com um olho na vida e outro na polícia. O lambe-cus estava a chegar ao fim da linha, tomara finalmente consciência da imagem que tivera toda a vida, e estava envergonhado, desesperado, não aguentava mais viver assim assolado pelo flagelo da sua origem na Brandoa profunda.
- Já nem na taberna os meus amigos do bagaço acreditam que sou arquiteto, – continuou o queixoso. – E até já descobriram que o meu Labrador, com que tento impressionar as cabeleireiras, é um rafeiro.
Mais um “x”, mas desta vez em “Perturbação Social Intensa”. O pintor de paredes da Brandoa profunda perdera a pouca auto estima, estava desmoralizado, deprimido, já nem o Latrinas e o Pirolito, colegas de curso de “guaches a mijo”, acreditavam nele e nas suas conquistas virtuais, já nem o bagaço conseguia disfarçar a sua grave perturbação de ansiedade. Deu lustro ao cachucho de latão a imitar o ouro.
- Ainda está aí? – Perguntou o psiquiatra, com a esperança de que o pintor disfuncional tivesse ido lamentar-se para outra freguesia.
-A minha flauta já não encanta ninguém – gritou, com uma voz pindérica.
Eram complexas as circunstancias em que se desenvolvera a sua gestação existencial, em subúrbios clandestinos e mal cheirosos da Brandoa profunda, que o levaram a desenvolver um passo foleiro e trôpego, com uma silhueta alquebrada e uma prosa analfabeta.
- Fique sabendo que estou a escrever um livro, – urrou, tentando esfregar as nódoas profundas de cor amarela das calças pretas compradas nos indianos do Martim Moniz.
E disto isto com raiva desligou, ficando sentado no chão a coçar a próstata e a lembrar-se da oxigenada da imobiliária.







Sunday, April 10, 2011

Um pincel fora de prazo - I


Camarada Choco
Aventura 78
 O Pintor Alienado

Trabalhamos sobre o sonho, a alucinação e a memória. É um território em que a imaginação e a realidade estão ao mesmo nível, ao ponto de já não serem capazes de os distinguirem. E foi assim que o  pintor alienado viu um rapaz atlético, alto e espadaúdo, de olhos vivos, capazes de engolir todas as fêmeas presentes no Festival da Canção do Intendente. Tocou ao de leve no reflexo e com a ponta dos dedos os lábios. Ainda teve tempo de ver os olhos rasgados a luz, e um sorriso de marfim. Desviou o olhar da água da retrete e ficou de frente para o espelho. Foi envolvido por súbitos clarões, fragmentos curtos de relâmpagos, fantasmas reais, que o transformaram a preto e branco, com muito grão, num espectro psicótico, a roçar o niilismo, mergulhado na escuridão angustiante dum WC duma taberna da Brandoa profunda, partilhando a solidão dos sentimentos. Havia no pintor alienado uma inquietação, não se insinuava qualquer linha de fuga imprevista, estava num estado de insanidade porque tinha tomado consciência da humilhante situação a que chegara. Os segundos passaram um a um. Olhou para o velho patético com cor de caixote de fruta do MARL e cabelo de caniche tinhoso que estava diante de si, e não fez um gesto, não disse uma palavra. Sentou-se na retrete e tornou a observar o seu reflexo. Para ele o amor era um lugar estranho em que o tempo era medido pelo número de cuspidelas.  O pintor alienado pertencia a uma casta incapaz de navegar em espaços não analógicos. Já não via as coisas mas o espaço em volta delas e por isso sentiu que os seus sentidos estavam a perder a unidade, a sombra escura nos seus olhos luminosos mostravam que o sentimento era carnal. Era uma das mais sérias crises de dimensão psicanalítica.
- Não aceito o que me foi oferecido, - gritou, levantando-se e pondo as mãos nas hastes de veado com que a alucinação da andropausa o tinha presenteado.
Acreditar nestes estados psicóticos tinha sido um imperativo de sobrevivência deste ressabiado da Brandoa profunda com laivos de doutor. A convulsão era agora muito maior que a vida, e por isso tirou rapidamente o telemóvel clandestino das cuecas borradas e discou o número. Deu dois toques e desligou.
- Não…este não, vou escolher outro.
Olhou pela janela e viu um sol branco. Reviu-se na sombra de uma árvore centenária. Estava sem nenhuma perspectiva de integração. A palidez da pele do homem sem rosto não deixava dúvidas de que já não havia um pingo da pouca razão que os genes lhe tinham dado. Saiu da zona do cagatório e viu a sua sombra passar por si arrastando os pés pelo soalho. Sonhou com palavras, imagens e cores de um tempo que nunca existiu, onde uma mulher emergia súbita e gentilmente da leveza do ar, lhe sussurrava ao ouvido com frases que corriam, paravam, recuavam, avançavam, desapareciam e reapareciam. Foi acordado pelo flato de um dos colegas do bagaço. Estava tudo desfocado, desproporcionado. Sentiu um estranho, não corpóreo, porque não podia tocar, mas que podia escutar e encarar como um concorrente. Viu então a imagem da vítima do momento, e foi com  uma vigorosa alucinação que o tonto interminável, habituado a viver no lixo, tocou na tecla de chamada do telemóvel clandestino, cheio de dedadas acastanhadas. Quando a nova vítima da mais alta inutilidade da Brandoa profunda atendeu, as emoções espontâneas do pintor alienado de paredes da Brandoa fizeram-no gritar frases soltas com estrondo, levadas por um vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro de uma retrete. Revelou-se neste momento alguém com um Q.I. abaixo de anémona, um lixo insano.

Wednesday, March 30, 2011

Agarrem que é ladrão

Camarada Choco

Aventura 77

Apesar de já não poder guiar o “machibombo”, o Castanheira ainda estava “prás curvas”, e foi por isso que o intruso não passou despercebido e teve de acelerar mal se apanhou no exterior da Escola para Desaparafusados & Afins da Venteira. Mas no seu encalço ia o motorista mais famoso da Brandoa, capaz de conduzir uma carrinha de nove lugares com trinta Desaparafusados, e dos grandes, no interior, mais a Mosca Morta, a Tété Destravada, a Jaquina, e quantos fossem precisos, e tudo isto sem usar os travões na maior descida do local, com 90% de inclinação, que colocava sempre o conteúdo estomacal da Careca colado ao pára-brisas, altura em que o Castanheira passava a guiar por instinto. A primeira curva foi feita em slide, o intruso, que passará a ser conhecido como Xungoso, pareceu ir capotar, enquanto que o nosso herói  começou a ter “rates”, sinal de que as válvulas do escape já estavam lassas devido à idade; na recta o Castanheira ainda conseguiu pôr o turbo, mas foi traído pelos óculos chineses que insistia em usar, e por isso não viu que o Xungoso se despistara e entrara de rompante num dos prédios. Felizmente as carcaças da padaria serviram de air-bag e o nosso herói pode regressar à escola são e salvo. Deu de caras com a Afilhada Principal, a única vítima do Xungoso, que ameaçava tudo e todos com um mês de raiva, pois o intruso roubara-lhe o que de mais precioso tinha:
- Dinheiro?? – Perguntou a terapeuta Zézé.
- Isso não interessa!
- O B.I.? – Questionou a Fisio Raposinha.
- Faz-se outro!
- O Multibanco? – Interveio o Vira-Bicos.
- Tenho mais!
- Cheques?
- Nãooooooooooo!
O mistério adensou-se, porque é que a Sobrinha Principal ameaçava lançar a bomba atómica? Nem uma promessa de aumento a fez deixar de espumar. A verdade veio a seco:
- O Xungoso ousou levar a carteira onde eu tinha a foto dos meus anjinhos a atirar a vizinha do r/c chão do telhado do prédio!
Era demais, nem com o argumento de que oportunidades  de registar os seus meninos em actividades pedagógicas iriam ser diárias, a convenceram a recolher as garras.
- Eu quero a foto!
E tudo se esclareceu algum tempo depois quando se descobriu que após o despiste o Xungoso largara a carteira. Mesmo assim a Afilhada Principal apresentou queixa às autoridades, e prometeu apresentar como prova as imagens dos filmes clandestinos da Madrinha, a Dra. Com Caneco (ex-Sem canudo).
- Ordeno-lhe que deixe de apresentar queixa, - gritou a Dra. Com Caneco, com receio de também passar a ser companheira de carteira do Xungoso.
- Nem pensar, o seu colega…perdão…aquele indivíduo, quase traumatizou os meus meninos, - berrou a Afilhada Principal, de dedo em riste. – Se eu chegasse a casa sem a foto, os meus anjinhos poderiam deixar de arremessar velhas do telhado, e isso teria com toda a certeza implicações nas suas vidas adultas. Eu quero ver a cara do Xungoso, para o atirar do prédio mais alto da Venteira.

Thursday, March 24, 2011

A Caminho do Caos

O Camarada Choco

Aventura nº 76

Quando a Menina Tatrícia viu a amiga da Mosca Morta nem quis acreditar: sapatos de agulha, cabelo Estilo Moisés, calças rotas da Brandoa, unhas primorosamente pintadas, carinha laroca, e decote atrevido. Distribuía miminhos pelos Desaparafusados e sorrisos Pepsodent aos Aparafusados.
- Vens trabalhar para aqui, vens – resmungou a Menina Tatrícia. – A primeira vez que mudares uma fralda e ficares com merda nas unhas, voltas para a loja a ganir.
Mas não foi assim, a Pirosa apaixonou-se perdidamente pelo Choco e nunca mais largou o clube...integrou-se. E num dia de chuva os Desaparafusados que estavam à responsabilidade do padrinho do Choco foram acordados, enquanto dormiam alegremente no ginásio, por um som descorporizado, onde se via através dos ouvidos, hossanas atrás de hossanas, entre o estridente e o inaudível. A Pirosa arriava de olhos fechados na Lobisomem, que assimilava os papo-secos ao mesmo tempo que gritava por todos os poros, no meio de um lusco-fusco com cheiro a merda, à frente de uma turba em estado letárgico, reflectida no espelho do cagatório número 3, que já não via o pano da Kalélé há várias semanas. O corpo da Lobisomem estremecia à medida que ia enfardando. Na sala da Dona Pilca, já praticamente reformada destas histórias, a Barbuda não aguentava a pressão e declarava-se perseguida pelos colegas Desaparafusados, e por isso ameaçava greve à apanha dos croquetes diários das cadelas se as condições de trabalho não fossem imediatamente alteradas:
- Não quero ser mais chamada de Barbuda, exijo ser tratada por Lili Kroketes, com dois “k”. Entendido?
De Desaparafusados percebia o Stor Pobre, sentia-os à distância, em qualquer lugar, a qualquer hora:
- Tens toda a razão, é justo, a partir de agora a ordem para ires apanhar os croquetes vai ser dada em código e não te dirijo o olhar. Vou fingir que é com um dos teus colegas que estou a falar.   
- Aceito, – disse a Barbuda…perdão, a Lili Kroketes.
A palavra passe passou a ser “Barrote Croquetes”, com o Stor Pobre de olhos colados no monga Raló, e o Bitó a fazer de eco. E como não havia duas sem três, entrara outra sala em convulsão:
- Tinto, trocou o clássico cinzeiro por carrascão? – Gritou a Dra. Sem Caneco (ex Sem Canudo) sem se aperceber de que na sala ao lado (a quarta!) acabara de tirar o Nélinho do seu estado natural de letargia libertando-o, mais uma vez, dos seus impasses, e continuou. – Com estas garrafas de tintól para muitos dos nossos queridos Desaparafusados não vai ser o “Dia do Pai”, mas um normal “Dia da Pinga”.
- Mas a garrafa é do tamanho dum bribon, para esses não lhes faz efeito nenhum, – justificou-se a Sobrinha da Tarde Número Um, já com meia-paralisia facial.
Felizmente a cena foi interrompida pelo ciclone emocional, e já rotineiro, do Nélinho, que exigia a presença imediata da Doutora Sem Caneco no primeiro andar, para um taco-a-taco. A Madrinha já tinha mudado de alvo e estava agora com o estado compulsivo virado para a Beta Cigana que, por ser namorada do filho do presidente, passara a bater diariamente em todos os colegas Desaparafusados do Lar e ameaçava com despedimento os Aparafusados que a impediam de distribuir os papo-secos. Mas o problema mais grave dizia respeito ao Choco, mais precisamente ao seu pepino, que ele insistia em esgalhar diariamente ao longo dos últimos meses, tendo sido até aqui classificado o gesto pelos especialistas como “punheta”, mas que agora mudara de figura ao ter sido descoberto um terceiro tomate. Informada a mãe, o caminho da urgência do Centro de Saúde foi a atitude mais correcta, mas a Dona Native não se revelou, mais uma vez, a pessoa indicada para transmitir ao “dótór” a descoberta:
- Ele “em” um “tico-tico” (sic), passa a “ida” a tocar à gaita, – disse de rajada a progenitora Desaparafusada.
Nem aqueceram o lugar, foram de imediato recambiados para a consulta de psiquiatria, como já era habitual, pois o “dótór” insistia em despachar todos os doentes de rajada, para assim atingir a quota diária e pirar-se para o privado, onde fazia o mesmo mas amealhava muito mais.    








Sunday, March 13, 2011

Venteira Brinca




Camarada Choco
Aventura 75
As autoridades da Venteira queriam impressionar o povo, e assim convidaram todas as escolas da zona para um grandioso desfile de Carnaval, mesmo as do interior profundo, que iriam mostrar a todos que a paixão continuava a ser o tacho…perdão a Educação. Por isso foi com orgulho que a impagável Doutora Sem Caneco, apelido que substituíra o verdadeiro, “Sem Canudo”, alegando pressões políticas dos adversários, que desejavam roubar-lhe os tachos…perdão, o labor e a dedicação “aos coitadinhos dos Desaparafusados” (sic), recebeu das mãos do Presidente da Junta o convite para o mega desfile à roda do chafariz. O ofício que chegou às salas ordenava a todos os participantes para estarem devidamente apalhaçados às 10 horas da manhã, afim de irem conviver com os Aparafusados da rua de baixo. O Pitrongas apresentou-se como candidato a super-herói, com uma toalha vermelha de bidé a fazer de capa, o pijama azul do pai a acentuar-lhe o ar feminino, e as cuecas encarnadas fio-dental da mãe a dar-lhe o imprescindível toque aerodinâmico; o Ládi Manquê, também conhecido como o Coxo-Mais-Rápido-da-Brandoa, apresentou-se impecavelmente travestido com o equipamento da selecção de futebol de Cabo verde, a terra onde tinha aberto o coco de lés-a-lés, após uma queda nas rochas, e perdido grande parte do conteúdo esponjoso, que fora rapidamente substituído por areia da praia; o Choco, impecavelmente vestido de Cobrador do Traque, estava vidrado numa colega metida entre plumas, decote estonteante e pêlos que mergulhavam em profundezas convidativas, tão vastas e abundantes como pradarias, e por isso a mão direita aumentara as rotações debaixo da mesa, como já fazia habitualmente; a Doutora Sem Caneco apressava a comitiva, tudo nela era excessivo, a voz arrebatada às profundezas, a cabeça em movimento de rotação, excetuando o discurso que se mantinha naturalmente incoerente, abrindo as caixas das fantasias com raiva antes que tudo se desmoronasse na incredibilidade:
- Onde é que está o chapéu multicolor? – Perguntou, já com ar de arrufo.
Por momentos a Dona Pilca ausentou-se e ficou entregue ao seus próprios pensamentos, que lhe davam a imagem da chefe a entrar no Ministério com o fato de banho azul, que doara à Mary Maluca, com todos os sovacões ao léu e o soberbo chapéu de Pierot, que agora procurava desesperada.
- Pilca, – gritou.
- Não disparem, não disparem, – levantou-se estremunhada a já afamada Pintora de Guardanapos da Venteira, fazendo um enorme bigodão a um anjinho com a cara do Cabo Pilas.
À sua frente estava a Doutora Sem Caneco atrasada para uma reunião de angariação de fundos na capital, atirando contradições e paradoxos, e já à beira de se metamorfosear em algo cheio de dissonâncias, e do seu lado esquerdo passou apressada a pequena Lolita, o seu fiel Cobrador de Fraque para Prendas & Afins, imitando na perfeição os trejeitos da hilariante Madrinha.
- Meta já todos estes Desaparafusados na rua, e use esse pincel que tem na mão para dar retoques aos que não estão devidamente apetrechados para este dia tão chato…perdão, feliz, – gritou a senhora absoluta da Escola para Desaparafusados & Afins da Venteira, fazendo um gesto que exprimiu na perfeição a cacofonia dos doutores, autênticos doentes que prescrevem receitas, os seus chavões, o seu palavreado, repetido vezes sem conta em enfadonhos oráculos, responsáveis pela fragmentação do seu talento (fim de convulsão do escritor).
Quando o gang de Desaparafusados chegou ao local o mundo parecia estar a rodar a uma velocidade inferior ao normal e os seres atordoados pelo efeito do Tegretol. Foram recebidos por um palhaço com um dilema identitário, deixado para trás numa qualquer encruzilhada pedagógica, que lhes perguntou gentilmente:
- Querem pela frente ou por trás?
Após um espaço e um tempo de inércia, em que a Terapeuta Zelietta corou e se inquietou, ouviu-se um sonoro suspiro, e quando se preparava para responder levou uma cotovelada da colega, que a fez engolir em seco o que lhe ia no mais fundo do seu Sub-Consciente, que se caísse nos ouvidos errados dava com toda a certeza como pena um ano inteiro de Padres-Nossos e Aves-Marias, e cem voltas a Fátima de joelhos.
- Pergunte àquela sueca, – respondeu a Stora Raquete, com uma voz doce e frágil, apontando para a Sobrinha da Tarde Número Um, que aproveitara as festividades para se transformar naquilo que os genes lhe tinham negado.

Tuesday, March 08, 2011

E depois do "Adeus"


Camarada Choco
Aventura 74
O impagável Cabo Pilas nem queria acreditar no que via. No hall da entrada da Escola para Desaparafusados & Afins, da Venteira, alguém tinha afixado um papiro, extenso e exigente, uma promiscuidade entre imagens e letras, onde o texto era redigido em camadas, incorporando indecências e subtextos, com uma liberdade e engenho que levava os leitores, Aparafusados e Desaparafusados, a não saberem exactamente onde estavam. Era uma mistura crítica dos costumes e do misticismo que coabitavam na Escola mais famosa da Venteira.
- Até na hora da despedida me insulta, – resmungou, esfregando, com rapidez e repetição, as mãos uma na outra, exibindo alguns desajustes relativamente ao espaço onde labutava, metamorfoseando-se em algo cheio de dissonâncias, porque nunca tinha aceite o tempo da vanguarda.
Aquele quadro deixara o Cabo Pilas num estado de desaparecimento ontológico, para ele o papiro era uma espécie de buraco negro na iminência de o engolir. No fundo deste desabafo havia uma história, uma ilusão, inconfessabilidades onde a libido e toda uma esperança foram afogadas por graves problemas de vizinhança, e tudo isto por uma troca de nomes mal calculada: em vez de “Dr. Cabo Pilas” saíra a frio e sem retorno um “Chiquinho”! O ex-militar vinha atordoado do primeiro andar devido ao vazio da sala vizinha, e revoltado com a firmeza dos seus valores, das suas esquisitices que divertiam os colegas, que estavam ensopados no seu ADN e talvez nos odores das cuecas molhadas. Segundo a lenda, a figura rígida e confusa do Cabo Pilas devia-se ao facto de ser descendente directo de Adão, e duma infância e adolescência aconchegadas, que o tinham convencido da sua genialidade e sapiência, e daí a sua incessante procura pelo amor-perfeito.
- Comporta-te Pilas, – disse baixinho de si para si. – Deixa-te de lamechices, ela foi-se embora para o meio do Atlântico, e isso é bom para ti, o teu espaço vital aumentou, – e susteve a respiração, ao mesmo tempo que fazia um percurso geográfico e mental ao primeiro andar.
O seu pensamento catastrofista foi momentaneamente interrompido pelo aparecimento do seu irmão gémeo univitelino, que lhe deu os bons-dias. O percurso da Prima da Afilhada da Doutora sem Canudo até ao primeiro andar tinha sido atípico e contra a corrente dos direitos adquiridos. Entrara na vizinhança do Pilas a seco, sem pedir licença, e sem pausas. Recusou manter-se submissa a este eterno candidato a chefe libidinoso e autocrático, que só conhecia a vida no limite da tortura física e mental, com um subconsciente carregadinho de sal.
- Kodac, o que é que estás aqui a fazer? - Perguntou a Psicóloga Morena, que acabara de entrar e o olhava de costas.
- Mas que mania, já está cá há tanto tempo e não nos consegue distinguir?
- São os malditos pescoços!
Subiu com tristeza a escada e fechou com leveza a porta do gabinete, regressando à pureza selvagem, cheio de dores metafísicas, contradições e paradoxos.

Tuesday, March 01, 2011

A Batata Quente (versão nova do Desenvolvimento Pessoal e Social)


Camarada Choco
(nova versão do Desenvolvimento Pessoal e Social)


Tinha-se chegado a um ponto sem retorno, o abismo estava cada vez mais perto, a ponte para a outra cueca...perdão...para o outro desejo, tinha de abrir caminho a todas as aventuras e sonhos, e as almas brutas dos Desaparafusados estavam carregadinhas de emoções intensas, irresistíveis, de gestos, de rituais interditos, de quem os Aparafusados fugiam como o Diabo da Cruz. A Natureza andava a brincar com os Desaparafusados, negava-lhes muitos dos direitos dos Aparafusados, mas em relação a este aspecto punha-os ao rubro, e aí os Aparafusados empunham a ditadura da teoria que lhes negava a socialização da prática. E foi assim que, mais uma vez, o tema “sexo” ficou a cargo da Doutora das Almas, uma expert em secas, que decidiu que os Desaparafusados adolescentes iriam fazer uma visita de cortesia aos Desaparafusados com idade de voto, mas sem esse direito, apesar de muitos deles terem mais capacidades do que muito dos Aparafusados que iam às urnas. A excitação estava dentro dos parâmetros normais, incluindo várias borras, mijas e convulsões de última hora. Na sala a formadora esperava pacientemente os utentes, entretendo-se a desenhar no quadro um objecto constituído por dois círculos pequenos e uma linha recta avantajada. Os assistentes foram-se acomodando à medida que chegavam e algum tempo depois o local já fervilhava de mongas teenagers inconsequentes.
- Bem, podemos começar, – avisou a oradora, apontando para o desenho. – Isto é um Pénis! Alguém sabe o que é um Pénis?
- Énis...Énis, – levantou-se de imediato alguém da assistência com o braço no ar. – Énis, Énis.
- Diz lá, Palmira Melga, o que é um Pénis?
- Énis...Énis, – gritou em estado convulsivo, sendo acompanhada pela multidão em histerismo. – Énis, Énis.
- Vá lá, explica aos teus colegas, – insistiu a Doutora de Almas.
E como um gesto vale mais do que mil palavras, a adolescente puxou de imediato o Choco, que estava ao seu lado, e prontificou-se para mostrar o que era o “Énis”. O macho não cabia em si de contente por ter sido ele o eleito e deixou escapar a sua enorme língua de encontro ao chão. Abriu os braços e avançou a bacia em sinal de cooperação.
- Énis, Énis.
Puxou pelo indicador da mão direita e colou-o de imediato nos ténis vermelhos número 50 do seu querido e respeitado Choco. A decepção foi geral, mas não evitou que a turba exibisse sem pudor os seus ténis. O retorno à calma só foi possível porque o stock de drunfos estava sempre por perto, e até a doutora tomou um dos vermelhos, pois o tema também a enlouquecia.
- Énis, Énis, – repetia sem descanso a Palmira Melga, alheia ao caos em que se transformara o “Desenvolvimento Pessoal e Social”.
- Quem sabe o que é um “pénis”? – Insistiu a oradora.
De imediato o Choco tomou a iniciativa e, saltando para o palco, tal qual um felino, gritou bem alto para quem o quisesse ouvir:
- Áálho, áalho, áalho, – rosnou o herói do cinema mudo, ao mesmo tempo que baixava furiosamente os calções...perdão, os cinco calções multicolores vestidos dois meses antes. Nem as vozes contra o demoveram da exibição e num piscar de olhos ficou com a cintura pélvica ao léu, mostrando ao público o apêndice, agora avantajado devido ao calor da discussão, torto e com um nó, graças a Deus. E no meio disto tudo ainda se ouviram dois gritos alucinados, um da Doutora das Almas e o outro da Madame Amorim, que desmaiaram com a emoção. O Choco permaneceu em sentido exibindo o seu fabuloso Chevrolet com os pneus furados, também graças a Deus, uma precaução da Natureza, não fosse ele querer seguir as pisadas dos progenitores e manter indefinidamente a inscrição da família Choco na Caixa Nacional de Pensões. E ficou ali, congelado, debaixo da luminosidade certa, único e insubstituível, coquete e apaixonado, com uma plateia ao rubro, que cheirava a sexo. Foi necessário esperar algum tempo para fazer sentar a Papoila que, devido à sua fraca visão, insistia em ver o Chevrolet, tendo-se para isso deslocado para junto do colega e colado os olhos no descomunal pepino. Quanto aos outros machos presentes, todos eles também exibiam os seus dotes às colegas interessadas...todos? Todos não, dois deles, o Ambrósio Caspa e o Monga Macaco, por mais que procurassem, não conseguiam vislumbrar os seus cacetes, ausentes devido às contingências genéticas.
- Amigos, tenho outra pergunta para vos fazer, – avisou a Formadora, conseguindo captar a pouca atenção dos presentes.
O próximo tema era difícil e por isso a Doutora das Almas avançou com muito medo:
- Alguém sabe o que é uma “Vagina”?
Foi demais! Com esta o Choco não se aguentou e atirou-se sofregamente à Zobaida, que permanecia no seu normal estado letárgico rodeada de moscas, mas foi traído pela sua visão estereoscópica, indo cravar os dentes na roda traseira esquerda, que apresentava um piso careca, despedaçando-a com estrondo, facto este que provocou um súbito desequilíbrio na pré-histórica cadeira de rodas, que não aguentou a traição da força da gravidade, arremessando, de imediato, o seu pesado conteúdo de encontro ao chão frio. Mas como o destino é muitas vezes madrasto, nesse preciso momento ia a passar a apressada Lolita que apanhou com os quilos da colega, mais os quilos da fralda, ficando espalmada, tendo tido ainda tempo de gritar:
- Organizem-se!
Foi com muito esforço que o Camarada Choco organizou os poucos neurónios, tendo o Conselho Pedagógico, que reuniu de emergência, deliberado amarrá-lo a uma cadeira com um saco de gelo entre as pernas. Decidiu-se também avançar com a projecção do pequeno, mas muito elucidativo, filme “A Actividade Sexual dos Caracóis, das Lentilhas e dos Percebes” da autoria do Alto Comissariado Europeu para a Inclusão do Sexo dos Desaparafusados (A.C.E.I.S.D.), responsável por muitas viagens transatlânticas das doutoras, com e sem canudo, dos ministérios, que estava previsto para o final da sessão. Entretanto, os organizadores desta educativa e pedagógica Acção de (Des)Informação acharam por bem também eles recorrerem à ajuda dos milhares de drunfos postos à disposição dos presuntos....perdão...dos presentes. O Fangio Espástico protestou porque queria que pusessem no ar a cassete com a gravação da sessão do canal 18 da TV Cabo do dia anterior. As lentilhas acabaram por ser mais eficazes do que os caracóis, pois conseguiram adormecer o impetuoso Choco, que encostou a cabecinha no regaço da sua amada Floribela. Quanto aos responsáveis pela organização, optaram pela fuga em frente:
- Vamos falar outra vez sobre “Vagina”, – continuou a titubeante oradora, lançando um olhar medroso para as suas colegas, ao mesmo tempo que ligava o projector de slides que atirou para o ecrã a imagem de uma rosa com a respectiva legenda: “Sexo Seguro”.O nome da Rosa abanou as profundezas da alma e das....cuecas, do nobre e altivo Choco, obrigando-o a dar um pulo majestoso, tal como um cobridor, mergulhando de cabeça no retrato...
- Ele vai dar cabo do ecrã – alertou a Doutora das Almas, conseguindo afastar-se a tempo do predador.
Não se sabe a causa, nem o truque utilizado, mas todos foram testemunhas juramentadas de que o herói saiu do local com uma rosa vermelha entre os dentes. Quanto à do ecrã, desapareceu misteriosamente sem deixar rasto.
- Lá vão as lentilhas outra vez, – gritou o projectista, rodando o manípulo do aparelho.
A doutora estava sozinha, fechada, tal como a sua mala escura, pousada na mesa. Encontravam-se na sala dois mundos separados, os Aparafusados e os Desaparafusados, pensando os primeiros que dominavam os desejos dos segundos.
O despertador tocou e a Doutora das Almas acordou sobressaltada. Olhou assustada para todos os lados, mas viu que estava só. Correu para uma mesa, agarrou nos papéis do projecto com que pretendia impressionar a Madrinha e aumentar o currículo virtual, e reduziu-os a pó. Deu um gole na garrafa de água, deitou-se, mas já não quis dormir mais!