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315 estórias

Thursday, May 07, 2009

Como tu sabes…



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Comandante Guélas
 
Série Paço de Arcos
O dia do aniversário do Focas chegou e na vila de Paço de Arcos a agitação pairava no ar! Os lugares já estavam marcados no restaurante e a ASAE tinha passado a casa de pasto a pente fino, não fosse o Pontas ir servir atum do Jamor ao Mac Macléu Ferreira, filetes das Fontainhas ao Boa-Cara e polvo da Terrugem ao Proveta. A primeira surpresa da noite foi o avistamento do Serapitola, que parecia o Álvaro Cunhal em versão negativo. Tinha autorização para mastigar, mas falar nem pensar. O Cocciolo pediu o livro de reclamações para protestar contra as comemorações dos cinquenta anos do sobrinho do Isaltino, pois largara um masso de notas por meia dúzia de croquetes e um saquinho de favas fritas.
- Pensei que eram as entradas e para não perder a fome esperei a noite toda pelo jantar.
A um canto da mesa o Conan mantinha o recorde de cobrições, agora com os episódios de incontinência incluídos. Todas as semanas abandonava fêmeas da Costa do Estoril. De repente o telemóvel do aniversariante tocou:
- Allô Focas, aqui engenheiro Petroni.
- Engenheiro Petroni?!!! – Perguntou o Focas fazendo um zapping à memória das amizades, incluindo os defuntos, não conseguindo, no entanto, descobrir algum “Engenheiro Petroni”. – Deve estar enganado.
- Grande Focas vejo que já estás com esclerose, eu sou o Engenheiro Petroni e gamámos….crescemos juntos com figuras ilustres, como o Mocho, o Balatuca, o Pingalim, o Milhas, o Peidão, o Graise, o Velinho, o Pilas, o Maneleiro, o Marreco, o Xinoca, o Pontas, o Rato, a quem me esqueci de pagar o compressor…
- Pierre Pomme-de-Terre, já podias ter dito.
- Como tu sabes acabei engenharia, a minha filha anda no Britânico, como tu sabes…
E o Focas agravou o seu estado de espírito com esta aparição difusa e imprevista de um amigo do alheio. Como é que ele poderia saber do currículo actualizado do Pierre Pomme-de-Terre se o último que lera fora há 35 anos quando ele fugira para o Brazil com o diploma incompleto da Infantil (fugira da sala 4 depois de ter pedido emprestado os guélas dos colegas e a carteira da educadora Meca, para ir comprar “Gorilas” ao Kitanda), levando no seu encalço o chefe Bigodes e todo o seu pessoal, o padre no encalço das esmolas, o carteiro dos cheques dos reformados, obrigando a vila a dividir-se ao meio, uns para o engavetar e outros para o enterrar. O Pierre Pomme-de-Terre agora o senhor Engenheiro Petroni, representava um certo neo-romantismo amigo do alheio, que se tinha estabelecido entre o final do século XX e o início do século XXI. A vinda desta figura carismática paço-arcoense representava o regresso às fontes das tradições da vila, particularmente no que dizia respeito ao mítico cheque careca. A mesa em “U” agitava-se, havia quem tivesse perdido a tranquilidade. As carteiras começaram a ser guardadas e todos viram o senhor Rato a cravar, com raiva, a faca da carne no atum do Mac Macléu Ferreira, e tudo por culpa das recordações de um compressor trocado por um cheque careca do filho do marquês. E o engenheiro Petroni sabia disso, viu-se na resposta que deu ao aniversariante quando este lhe perguntou onde estava:
- Em Macau a fazer o projecto para as futuras Torres Petroni que vou erguer no lugar do Tino, com as fundações do próprio.
Com a vinda deste mecenas de sinal contrário vinha outro tipo de discurso, desta vez mais elaborado:
- Focas amigo, diz aí ao pessoal que eu agora já tenho outra “armadura estrutural”, no passado fiz muita “argamassa” que tenciono agora compensar com um “cálculo estrutural” à maneira, que “arquitrave” as “incrustações” do antigamente, prometendo um autêntico “baldrame”, estás a topar?
O Focas nem teve tempo de responder, pois o (in)desejado continuou:
- Não te preocupes, convido-te desde já para um almoço sem limites aí no restaurante onde estás a jantar, e tudo por minha conta, e explico-te detalhadamente o que disse em cima.
O Pontas, pelo “sim” pelo “não”, encerrou de imediato o estabelecimento e pôs trancas nas janelas.

Sunday, April 26, 2009

O dia em que o Capitão arrumou as botas



Comandante Guélas

Série Paço de Arcos
 

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O tempo era de mudanças, a Velha Geração de jogadores formada na Praia de Carcavelos, com o esgoto a servir de linha lateral, estava a receber novos reforços, filhos, sobrinhos e amigos destes, que traziam uma nova dinâmica à modalidade, para pior, uma vez que esta juventude estava mais habituada aos copos sentados do que aos copos em pé, reflectindo-se estes maus hábitos na sua péssima condição física. E esta característica fazia toda a diferença neste tão popular desporto de “fim-de-semana com autorização escrita das mulheres”. Mas havia alguém que andava com a cabeça à roda por causa desta invasão de tenrinhos, aparecidos por geração espontânea. Eles tratavam-no com respeito, diziam “sim” aos seus convites para tertúlias em sua casa, mostrando serem muito diferentes da Geração Rasca dos pais e dos tios, como por exemplo o Chico Sá, que perguntava sempre aos amigos “Ouviste o eco?” de cada vez que a bola batia com violência no “bumbum” do Capitão. Os tenrinhos até o tratavam por “Tio Porão”! Ao aceitar o lanchinho do Capitão, o Tona revelava não estar com a lucidez necessária, nem nunca ter ouvido falar da história do “Capuchinho Vermelho”. Foi preciso passar algum tempo, deixar baixar a poeira, ganhar a distância, para que os amigos o confrontassem com a verdade. Este “inocente” convite do militar de Abril mudou para sempre a carreira futebolística deste jovem ingénuo e veio mostrar o fosso que separava aquelas duas gerações de “profissionais” da bola. O jovem careca não estava habituado a deparar-se sempre com um defesa adversário que protegia a sua área e a bola de costas viradas para ele. E tantas foram as vezes com que se deparou com um “bumbum” a convidá-lo para a luxúria que, tal como a Leonor do poema, acabou por partir-lhe a bilha, mais propriamente enganar-se e chutar no pé do velho, em vez de o fazer no esférico. Por momentos aqueles dois corpos, um tenrinho e o outro com caruncho, moveram-se, agiram, num único movimento sussurrante, tocando-se levemente no ar, num gesto que se aproximou dos outros coxos, com um virtuosismo técnico tão elaborado, que fez com que ninguém visse que o Milhas tinha tocado com as duas mãos na bola. O reencontro do Tona com o Capitão teve uma sensibilidade poética, que levantou a dúvida quando se deu o contacto do corpo rançoso com o solo e dele saiu um grito alucinante com diferentes interpretações:
- Foi um gostinho, – disse o Fininho.
- Deu o berro, – atirou o Chico Sá.
- Perdemos o guardião do saber e da memória de uma espécie de homem que um dia nos treinou para o Torneio de Futebol de 5 no Pavilhão de Paço de Arcos, – lamentou o Milhas, deixando cair uma lágrima.
- O Capitão é que se esborrachou, mas o Milhas é que está a delirar, – exclamou o Peidão.
- É falta do velho! – Sentenciou o único jogador lúcido, o Caramelo.
O caso não era tão simples e natural, tinha agora uma dimensão metafísica. A imagem do mais velho jogador de futebol de Paço de Arcos esticadinho no pelado, estilo bacalhau, iria ficar gravada para sempre nas memórias de todos, como um momento único, desarmante. Mas ninguém se apercebera das terríveis consequências, ao nível comportamental, que este espectáculo, simples e natural, iria ter sobre a Nova Geração. Dali para a frente tornaram-se diferentes. Fora preciso aparecer uma nova revoada de tenrinhos para atirar por terra e arrumar a excitante carreira futebolística do mais capitão de todos os capitães, a seguir ao Patrão Lopes. O dinossauro foi ao chão em decúbito ventral e por lá ficou no meio de estranhos movimentos de cobrição e dor. Quanto ao Tona, encontrava-se de pé debruçado sobre o ferido, sem saber o que fazer. A Velha Geração aconselhava-o, por gestos, a deitar-se sobre o moribundo, evitando que ele arrefecesse, e também como forma de compensação pelos danos sofridos. Mas o Capitão queria outro, o futuro médico e disse-o em estilo comando:
- Leva-me a casa!
Todos imaginaram a entrada do militar em casa ao colo do tenrinho, tal qual um par de recém-casados. A recusa do contemplado foi imediata e as atenções voltaram-se novamente para o Tona, que tentava escapulir-se da zona do acidente.
- Eu vim de mota, – desculpou-se, abrindo os braços.
- O ferido não se importa de ir sentado de lado, muito agarradinho, – esclareceu o Chico Sá.
Quem ajudou o Capitão a instalar-se no Mini e a desenrascar-se a partir daí foi o Choné, um jogador com uma perna-de-pau e uma careca maior e muito mais velha do que a do Tona. Quanto ao velho, não teve outro remédio senão pendurar as chuteiras junto às recordações de África, as caveiras de antílopes e as cabeças em pau-preto, com as cuecas do pelotão!

Monday, April 20, 2009

Jogadores à beira de um ataque de nervos




Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


A tradição cumpria-se com mais um jogo a chegar ao final sem a intervenção externa da campainha. Pela milésima vez o Chico tinha atingido a “redline” e queimara as juntas da cabeça, colando-se à sombra do Tio Fininho, que estava impecavelmente vestido com um equipamento preto de árbitro da “Sexta Divisão do Batatinha”, o célebre Abramobatata do campo de Vila Fria, vizinho da lixeira camarária. O estado de alma do Chico reflectia-se no fumo que lhe saia pelas orelhas e na cor avermelhada que lhe forrava a “fácies”. Estava próximo de um ataque de caspa! Ao longe o papá, impecavelmente vestido com um equipamento do Sporting, que incluía meias e chuteiras verdes do Quaresma, tentava trazer o filho para a realidade, sabendo de antemão que tal seria impossível, porque a gasolina que tinha bebido no Algarve quando foi ao gamanço com o amigo chinês, depois de terem demorado a noite toda a desmontar uma cadeira feita de tubo de plástico, entranhara-se nos genes, não havendo nada que conseguisse apagar o tal risco profundo que, em quase todos os jogos, colocava o pequeno-grande Chico à beira do precipício.
- Não lhe ligues, o Fininho é assim mesmo!
Mas nada demovia o colosso de estar colado à sombra do “tio”. O mal dele era ter ido para o curso de Logística da Escola Náutica. Desde esse momento o Tio Fininho tornara-se muito exigente com os estudos do “sobrinho emprestado”, um rapagão que trocara os livros pelos copos, fazendo-lhe interrogatórios massivos sobre o comportamento da “Carreira 22”. Pelo meio ia-lhe agradecendo os golos que teimavam em entrar na baliza da equipa de que o colosso fazia parte, tendo como companheiro o inebriante Milhas, que teimava em dar orientações tácticas desde que o apito assinalara o início da partida. E no calor da discussão ninguém se apercebeu da saída intempestiva do careca de meia-idade de nome Jorge, que tinha atingido o prazo de jogabilidade, em virtude de ter sido traído pela “claustrofobia por espaços vastos” que o impedia de respirar, compensando o défice com escarretas fininhas. Pelo meio o filho do Vaca Prenhe interrogava o Pequeno Polegar, de nome de guerra Biblot, sobre os motivos que o levavam a ir sempre disputar as bolas altas nas Grande Áreas. Mas o assunto da jornada era a grandiloquência do Chico, que teimava em Rosnar junto ao “tio”, enchendo-lhe o fatinho de perdigotos, e isto o jogador Fininho não tolerava:
- Não me diriges a palavra com a boca cheia de azeitonas, – indignou-se o jogador com equipamento de árbitro, apontando um indicador ameaçador ao “Colosso das Palmeiras”.
E nisto uma bola tresmalhada passou a rasar a cabeça do Milhas. Tinha sido o Rubi, que ainda não se apercebera que o jogo estava em “pausa”.

Wednesday, April 01, 2009

O “Caso Ramalho”








Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Quando o Peidão entrou na praia de Carcavelos na sua Yamaha 50 Mini-Enduro, tirou o penico de aviador que levava na cabeça e foi de imediato chamado por um agente da GNR que estava junto ao restaurante “O Narciso”.  Resolveu não fugir, como habitualmente, e a atitude de cidadão exemplar custou-lhe um belo dia de praia. Esperava que os agentes da autoridade tivessem acordado com "bom-senso", mas enganou-se! Foi de imediato acusado de ter vindo de casa com a cabecinha ao léu e por isso, contra a corrente que grassava no país, iriam aplicar a lei. Mas não contavam com a reação do cidadão: trazia na carteira uma bomba atómica!
- Se este senhor pode andar à boleia numa mota da GNR sem capacete, eu também tenho esse direito, estamos em democracia.
A foto da revista foi aberta e ficou escancarada para os agentes da autoridade e para o povo, que normalmente nestas ocasiões festivas aparecia sempre de geração espontânea. O documento exclusivo do Peidão mostrava o Presidente da República, o Ramalho, a transgredir a lei, ainda por cima com a cumplicidade da GNR. O guarda ficou estático e sentiu o bafo do povo atrás de si, que se aproximara para ver a fotografia. Houve risos e comentários de reprovação, afinal tinham votado num fora-da-lei.
- Montagem, isso é uma montagem, - acusou o mais graduado. – Vou passar-lhe uma multa por difamação.
- “Difama” quê? – Perguntou o outro.
- Este cidadão está a insultar o Comandante Supremo da Nação - sentenciou, olhando de cima para baixo.
A assistência estava ao rubro, a autoridade já era confundida com os artistas do Circo Palitó. E tudo se agravou quando tentaram tomar posse administrativa do documento, que desapareceu no meio do povo
- Esse polícia que está na fotografia é falso,  – gritou um dos agentes, apontando um dedo acusador ao réu.
- Quantos são vocês na GNR? – Perguntou o caluniador do cidadão de nome Ramalho.
- Para aí uns quinze mil, – respondeu o agente, que era parecido com o famoso guarda Ricardo.
A risada foi geral, o povo aplaudiu o desempenho irrepreensível do pessoal do Circo Palitó.  A autoridade viu-se obrigada a tomar medidas. Definiu um perímetro de segurança, abriu o livro de instruções para multas rodoviárias, e depois de muito soletrar, “difamação” nem vê-la. Foi necessário contactar com a central.
- Alô, alô, aqui 24 chama a central, escuto.
Respondeu-lhe um ruído semelhante a um ressonar. Insistiu.
- Alô, alô, aqui 24 chama central, escuto.
Desta vez o ruído assemelhava-se ao de um balão a esvaziar. O povo tornou a aplaudir, a situação estava a ficar incontrolável.
- Temos de nos deslocar para uma zona mais aberta, - informou o chefe. – O senhor vai ter de nos acompanhar.
Uma BMW 750 à frente, uma Yamaha 50 Mini-Enduro no meio e outra BMW a fechar. Todos a 20 Km/hora, assim os obrigou o cidadão Peidão, alegando que a mota não dava mais. Os heróicos agentes da GNR foram obrigados a ir com as botas a arrastar pelo alcatrão, porque àquela velocidade tinham de ir em primeira e aos solavancos. Quanto ao povo, despediu-se acaloradamente dos animadores de praia.  A caravana parou na zona do Motel, junto a uma cabine telefónica. Mas surgiu um problema. O único que tinha trocos era o arguido, que não tencionava gastá-los com os agentes da autoridade. Até que surgiu, também de geração espontânea, um individuo numa Casal Boss 50, que se aproximou em alta velocidade, e rodeado de uma nuvem de fumo, do trio, identificando-se de imediato como agente da PSP de Oeiras. Foi posto ao corrente do crime e aproveitou para mostrar que era muito mau.
- Se quiserem tenho lá uma cela para ele, - gritou, atirando uma baforada de fumo contra aquele que ousara pôr em causa a honestidade do homem que enfrentara, uns meses antes, em posição de forcado em cima de um tejadilho de um carro, uma turbe de chaparros que disparava pistolas de fulminantes .
O reforço acabou por ser útil nos trocos. Quando a central foi posta ao corrente da situação, o cabo levou de imediato um cartão vermelho por andar armado em intelectual, e não se ter reduzido à sua condição de GNR com a 4ª classe. A infracção era por falta de penico e a multa era essa. O resto era estar a faltar às suas obrigações, que eram patrulhar a Costa do Estoril. Escusado será dizer que o papel unicamente serviu para o habitual, já que a partir de Junho só os otários pagavam as multas, como era tradição.

Friday, March 20, 2009

Abromobajoulo



Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

O Verão no Algarve consumia cada vez mais dinheiro e por isso era necessário arranja-lo, pois as férias grandes eram mesmo grandes. O Bajoulo conseguia passar um mês inteirinho ao Algarve, sem interrupções, com uma nota de mil escudos e regressava a Paço de Arcos mais gordo, estilo leitão de Barrancos, trazendo ainda cinco mil na carteira. Era o dois em um, nas boites namorava e abastecia-se. Naqueles saudosos anos pós-revolução havia mais alemãs com pulgas por metro quadrado do que Ctenocephalies felis felis sozinhas e o Bajoulo estava em vantagem em relação aos suínos que elas traziam, pois ele era produto nacional e falava fluentemente em alemão. E as meninas bebiam no mínimo vinte cervejas, só para aquecerem. Por isso caíam-lhe todas no regalo, deixando as malas descuidadas. Este adolescente anafado já era muito avançado para o seu tempo, pois só se abastecia nestes Multibancos germânicos. Os desvios eram vários, longos e metódicos. Numa primeira fase conferia a forma e a localização da carteira, na segunda fazia os ajustamentos corporais necessários, que incluíam a aproximação e a distracção da fêmea com modos corteses e medidos, e na terceira preocupava-se com os pormenores, ou seja, a abertura do fecho e a localização das notas. Todo este ritual demorava tempo e exigia muita gramática, o Bajoulo falava da vida como se contasse um segredo. Mas tinha uma ética e por isso mostrava sempre o maço de notas aos amigos e pedia-lhes a opinião da quantidade aceitável, tudo isto em mímica e ao mesmo tempo que namorava com a turista.

Monday, March 09, 2009

Abromobatata




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Comandante Guélas
Série Paço de Arcos

Ainda o Abramovich andava de fraldas e já o pai do Pierre-Pomme-de-Terre tinha uma chata com cabine feita de lona comprada nos ciganos, a quem ele chamava Iate. Como em Paço de Arcos todos o conheciam, a feira das vaidades rumava a Sul, mais precisamente para o Algarve. No início das férias o rebento ficava sozinho em casa a “estudar” para os exames, ou seja, a desviar umas librinhas de ouro para os gastos. E num dos verões apareceu um problematizo adicional: o arranjo do descapotável do chulo do Pimenta, com que haviam marrado numa parede! Durante vários dias o Bajoulo e o Batata tinham impressionado o Pica (o café) com o potente cabriolet que, de cada vez que arrancava, dobrava a meio, dando sempre a sensação de se ir dividir em dois a qualquer momento. O majestoso Iate dos Batatas, o “Pirolito II”, estava estrategicamente fundeado na praia mais “in”. Em terra davam-se os últimos retoques para a cena, os papás Batatas colocaram os derradeiros emblemas com motivos do mar, âncoras e búzios, para dar a impressão de várias voltas ao mundo ao leme do “Pirolito II”. Na cabeça do chefe morava um chapéu digno dos melhores lobos-do-mar e na tola da esposa uma espécie de toldo, a imitar as mais finas castas inglesas. No barco, vindo expressamente de Paço de Arcos na noite anterior, depois de se ter desenvencilhado das libras no “Dobrão”, Pierre-Pomme-de-Terre esperava pelo sinal que viria de terra. O papel que lhe tinha sido atribuído era o de paquete, que iria a terra numa chalupa buscar os patrões, para irem almoçar a bordo. Quando a praia ficou cheia com as famílias mais importantes de Lisboa, o papá tocou a corneta, comprada numa das bancas da feira de verão que estava junto à estátua do Patrão Lopes, e o marinheiro fez-se ao coco, ao mesmo tempo que os patrões se dirigiram para a beira-mar. O encontro foi digno dos melhores filmes de Hollywood, os magnatas Batatas estavam mais brancos do que o próprio OMO, uma brisa marítima fazia ondular o vestido voluptuoso da dama, enquanto que o chapéu à Comodoro dava um ar imponente à figura do Pomme-de-Terre Sénior. O coco atrasou-se um pouco, como tinha sido decidido no guião, para que a praia tivesse direito a apreciar um fenómeno ainda muito raro naqueles anos, mas rotineiro nos dias de hoje. O Batata chegou com uma remada digna das melhores caravelas, saiu em salto, tal como um felino, mostrando à populaça o seu belo fatinho à marujo e atirou ao papá, agora no papel de capitão Haddock, com cachimbo e tudo, uma soberba continência igual às dos filmes da Segunda Guerra. O patrão agradeceu e entregou-lhe a mão da marinheira, para que lhe desse apoio no embarque. Quando estava tudo a postos, o marujo Pierre-Pomme-de-Terre deu uma remada tão brusca, que fez a chalupa dar uma volta de 180 graus, que a colocou de quilha para o ar e sentou os papás no fundo do mar!

Sunday, February 22, 2009

Os sapatos do coronel Osório


Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


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Iria haver festa na vila, o Focas estava com casamento marcado e a despedida prometia ser longa. Começaram por arremessar um dos seus sapatos para a varanda do coronel Osório, que já se encontrava mais para lá do que para cá, depois de ter dividido com a esposa um jantar no café do senhor Américo. O militar ainda ouviu o impacto da falua made in senhor Coutinho no estor, mas confundiu o barulho com um tiro disparado pelo John Waine no filme que estava a dar na televisão. O que iriam dizer os futuros sogros quando o Focas aparecesse lá em casa para ir buscar a noiva e se apresentasse com um pé calçado e outro com uma meia “CD” rota? O casamento do Focas não poderia ser posto em risco, porque o Pilas já estava a preparar a festa, idêntica à do casamento do Peidão, em que trotou o dia todo, gatilhou nos extintores e abanou a fruta para as tias quando estava de cuecas em cima da prancha mais alta da piscina antes de saltar e gritar, “o que vocês querem está murcho”.
- Temos de ir buscar o sapato do pobre Focas, senão ele ainda se constipa, - disse o Velhinho, recuperando o equilíbrio depois de se apoiar numa árvore.
O jovem adulto escolhido para ir tocar à porta do militar, estava virado para a loja de electrodomésticos do Ligóia com o sexo cansado de fora a debitar mijo, muito mijo.
- Não dou, - gritou peremptoriamente o coronel Osório, não aceitando a explicação que colocava o sapato do Focas na sua propriedade devido a um golpe de vento traiçoeiro.
A hora para ir buscar a noiva aproximava-se. Como o andar onde morava o Velhinho era o de cima, um segundo plano foi montado, e consistiu em pescar a barcaça. Mas na varanda utensílios ligados ao mar só havia uma poita.
- Eu sou capaz de pescar um tubarão com uma linha de cozer, - atirou o Velhinho, chegando-se ao parapeito da varanda com a cana na mão.
Olhou para baixo e viu três sapatos, apesar de todos só verem um. Quando o isco começou a descer para ir salvar o sapato do Focas comprado na sapataria do senhor Coutinho, o pescador teve uma fraqueza nas mãos, devido à cevada que lhe forrava o interior, e deixou cair com estrondo a âncora em cima do objecto do noivo. O coronel abanou e deitou-se no chão em posição de defesa. Nova reunião, novo porta-voz, mas agora um com um ar mais convincente e da zona: o Pierre Pomme-de-Terre!
- Não, - tornou a gritar o militar da velha guarda para o adolescente arraçado de leitão com anjo barroco, de carne tenrinha e sorriso virgem.
O Focas não teve outro remédio senão pedir emprestado o sapato de cor diferente ao seu futuro cunhado, o Proveta, que o esperava no rés-co-chão, e não saiu da porta de entrada, sem acender as luzes, alegando uma reunião extraordinária com o padre. Saiu a correr e a coxear, mas com os sogros a babarem-se de orgulho por tão devoto enteado. No entretanto o gang reunira-se de emergência e aprovara por unanimidade a proposta do marido mais responsável da zona, o senhor Peidão, que lançara uma fatwa para a meia-noite: encher a varanda do coronel Osório com todos os sapatos velhos de Paço de Arcos e arredores. E a lei foi cumprida, durante meia-hora choveu granizo na varanda do militar. No dia seguinte o Osório foi visto com um enorme saco de plástico atestadinho de sapatos, a caminho do contentor da praceta.

Sunday, February 01, 2009

Estremoz cidade serena



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Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Uma das passagens de final do ano do Gang foi passada a quilómetros de distância, no meio de chaparros, tios chaparros, classificação que não constava nos manuais escolares dos “meninos de boas famílias” da Costa do Estoril.
- Chaparros queques?! – Perguntou admirado o Charlot.
- Tão queques que só podemos entrar de fato e gravata, e a festa é no casino lá da terra, um misto de mesas de matrecos com sofás de veludo, - explicou-lhe o Proveta, ajeitando a gravata do pai que lhe chegava aos pés!
Um dos membros do Gang namorava com uma menina cuja família tinha morada na respectiva terra e achara por bem convidar todos aqueles adolescentes das famílias mais brazonadas de Paço de Arcos, para assim subir na hierarquia social da “chaparrolândia”. Iriam todos de comboio, já equipados para a festa. A meio da viagem e já um pouco chateados por não fazerem nada, o Gang resolveu passar à acção, dando início a um jogo radical que consistia em mudar de carruagem, mas pelo lado de fora. Quando o maquinista se apercebeu do jogo, já havia vinte adolescentes, de fato e gravata, do lado de fora, facto inédito nos anais da CP alentejana. A brincadeira só acabou quando todos cumpriram o percurso definido: partida na última carruagem e meta na primeira. As autoridades da composição bem tentaram mete-los para dentro, recorrendo a gestos e a buzinadelas, mas a prova só acabou quando o Velhinho terminou o circuito. Meia-hora de descanso para os “bravos de Paço de Arcos” e nova animação: slows unisexo. O Focas e o irmão do Marreco levantaram-se e, ao som de uma música romântica, abraçaram-se e dançaram com sensualidade para a carruagem que ia atestada de velhas chaparronas tipo morcegos. Para abrilhantar o número, o Pilas foi à casa de banho e encheu de água uma camisa-de-Vénus, que pôs a circular pelos passageiros. A pouco e pouco a carruagem foi-se esvaziando de autóctones, acabando por ficar exclusiva dos “meninos de boas famílias” da Costa do Estoril. Entretanto algo parecia ter acontecido, um fenómeno do Entroncamento: o Peidão crescera durante a viagem, as mangas do blaiser castanho que o Pedro Sá lhe tinha emprestado acabavam nos cotovelos.
- Era o que eu usava quando a catequese ainda me aceitava, - explicou o proprietário, escondendo o facto de ter sido expulso da instituição aos 10 anos por ter desviado dinheiro da caixa das esmolas para ir comprar um maço de GS Filtro.
A chegada a Estremoz foi inesquecível para os habitantes. A rua principal estava recheada de laranjeiras carregadas de frutos reluzentes. Segundo reza a lenda, quem começou a guerra foi o Pilas, que acertou em cheio com uma laranja na cabeça do Conan que ripostou, mas falhou o alvo, esborrachando o esférico no fatinho catita do Velhinho, que também não gostou e respondeu à letra,…..Bastou meia-hora para a estrada principal estar pintada de cor de laranja. Mas como tinham de chegar a horas ao jantar na casa da família da namorada chaparra de um dos paço-arcoenses, sacudiram os caroços dos fatos e apresentaram-se na morada indicada. Foram recebidos como heróis e deram de caras com um repasto digno de príncipes. O Conan foi o primeiro a beijar a dona da casa e pediu para lavar as mãos. Só que não disse toda a verdade. Tinha saído de casa com a tripa cheia e durante a viagem a trepidação do comboio inibira o conteúdo de sair. Mas a “Guerra das Laranjas” acalmara-o e agora saíra tudo de uma vez. A fila para o WC aumentou, mas o Conan recusava-se a sair, puxando compulsivamente o autoclismo. Quando se viu obrigado a abandonar as instalações sanitárias, pois caso o não fizesse os colegas de escola ameaçavam deitar a porta abaixo, trouxe atrás de si um cheiro nauseabundo que não ficava nada atrás do Litopol. Devido a este “grande percalço” o jantar acabou de imediato e o Gang resolveu ir fazer uma visita de cortesia à pensão onde estavam alojados os dois únicos paço-arcoenses com posses: o Bakaus, teoricamente o maior cobridor do país, um conquistador cruel que não escolhia e atacava as suas presas sem estados de alma, e o sempre abonado com libras, o Pierre Pomme-de-Terre. Só dois tocaram à porta enquanto que os restantes permaneceram acoitados numa esquina. Uma velha estilo bruxa abriu a porta:
- Boa-tarde minha senhora, viemos dar um beijinho aos nossos manos, que estão aqui hospedados, - disse o pilas com um sorriso rasgado.
- São meninos de Lisboa?
- Sim, - respondeu o Conan, afastando com as mãos os vestígios gasosos da “obra” que tinha produzido uns quarteirões acima.
- Entrem, a casa é vossa.
Entraram todos.
- Chiça, e eu a pensar que as famílias numerosas eram aquelas que não tinham televisão, – resmungou a mulher morcego.
A contabilidade da casa era rigorosa, havia um contador à saída de cada tomada, mas o Bakaus já tinha feito uma ligação directa. O aquecedor estava ao máximo e o aparelho de controlo a dormir. Em cima de uma das mesas estava o garrafão de colónia “Lavanda” do gordo caixa-de-óculos com nome afrancesado. Quando o Gang se despediu dos “manos” o perfume transbordava dos sapatos italianos do Pierre Pomme-de-Terre. A festa decorreu sem incidentes de maior e alguns dos adolescentes acabaram a dormitar nos bancos do jardim, nunca tendo conseguido adormecer, porque a polícia colara-se ao espaço público e intervinha de cada vez que se deitavam.

Monday, January 19, 2009

GNR versus Picadili


Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
Aquela manhã de segunda-feira era de treino, o Circuito de Manutenção A do Estádio Nacional iria receber a visita de dois expoentes máximos do atletismo paço-arcoense. O Gang dos Meninos Ricos e Caucasianos de Paço de Arcos tinha de estar sempre em boa forma física, pois as “chinchadas” à fruta do senhor Manuel eram diárias, assim como o gamanço nocturno dos peixes dos vários lagos da Quinta do Leacoke. O meio de transporte utilizado pertencia ao Mac Macléu Ferreira, uma soberba Vespa 50, como jurava o livrete, mas com centímetros cúbicos clandestinos devido a estar “Kitada”. Um problema de última hora obrigou a uma mudança nos planos. Os atletas não levaram capacetes porque as instalações do Estádio Nacional encerravam sempre nesse dia da semana. Confiavam na Providência Divina que, com toda a certeza, iria proteger estes dois devotos praticantes das garras da autoridade. O seu currículo provava que eram portadores de um documento, passado pelo Arquivo de Identificação de Lisboa, após autorização da PJ, que atestava o “bom comportamento cívico e moral” destes “filhos de boas famílias”. E o São Pedro sabia disto!
- Não vai aparecer ninguém, eles acordam sempre tarde, - explicou o astuto motorista, limpando os óculos.
Quando o par de adolescentes ia calmamente a fazer o aquecimento em cima da mota, fumando alegremente dois GS Filtro, apareceu, não uma, mas duas BMW da GNR e um carro patrulha, com tudo o que era sirene a gritar. O estudante Mac Macléu Ferreira olhou para os agentes e informou-os de que iria imobilizar-se no carreiro que estava em baixo. A autorização foi concedida e o Peidão, como cidadão exemplar, fez pisca para a direita com o braço e só o desfez quando se apercebeu que o companheiro de treino não só não fazia questão de parar, como seguiu caminho pelo morro abaixo, fazendo zig-zagues por entre os pinheiros, que cada vez eram mais. Por momentos os agentes da autoridade não reagiram, ficando divertidos a apostar quando é que os jovens desportistas iriam marrar numa das árvores. Contra todas as probabilidades, as dioptrias do Mac não foram um empecilho, mas sim uma vantagem. Ele tinha aprendido a conduzir por instinto. Aperceberam-se que não iriam ganhar nada, a não ser uma repreensão do chefe ao final da tarde, e arrancaram em alta velocidade para a rua debaixo, onde ia desembocar o morro. Quando o adolescente desportista Mac Macléu Ferreira viu o comité de recepção, deu meia-volta e acelerou para o cume, mas desta vez com um cavalo extra, o Peidão, que passou a empurrar a Vespa, pois a menina ainda estava em rodagem e não convinha dar o berro naquele momento. De repente apareceu uma depressão e os três deitaram-se de imediato. Lá em baixo ouvia-se o barulho das autoridades desesperadas. Meia-hora depois o silêncio.
- Despistámos os chuis.
Levantaram-se e decidiram empurrar a máquina até ao alcatrão mais próximo, ou seja, na parte de cima das bancadas do campo principal. Quando se preparavam para deixar a terra batida eis que dão de caras com uma operação “stop” personalizada. Dois GNR saciem sorridentes detrás de uma árvore, empunhando pistolas. Novo treino, nova corrida. Mac Macléu Ferreira começa a correr e a empurrar a mota com a mão direita, ao mesmo tempo que levanta o braço esquerdo em sinal de “meia-obediência” à ordem de rendição dos agentes da autoridade, com o companheiro de equipa a fazer o mesmo, mas com os braços trocados.
- Não atire, não atire, - atiraram os paço-arcoenses, à medida que a rotação das pernas ia aumentando.
Mas a prova era desigual, a vantagem tendia para os representantes do Estado. Bastaram meia dúzia de metros para deitaram a mão aos adversários, que foram de imediato conduzidos para junto das BMW, que estavam escondidas junto a uns pilares do edifício central.
- Que azar senhor guarda, - interveio o Peidão, o que fumava menos. – Tivemos quase para descer o morro outra vez.
- Vocês são sempre os mesmos. Fogem pelo carreiro, escondem-se e depois julgam que despistaram a polícia, - explicou o agente, rindo-se. – Basta-nos vir para aqui esperar.
A autoridade demonstrava aqui que havia já um estudo estatístico das ocorrências no Estado Nacional, apesar de tudo se ter passado numa altura em que a 4ª classe bastava para se pertencer a um órgão de soberania. Dirão hoje os nossos pais que na altura deles é que o Ensino era a sério!
- Sem capacetes, sem documentos, uma fuga à autoridade, uma tentativa de fuga, isto vai ser uma pipa de massa, - prometeu um dos agentes abrindo o bloco e começando a escrever.
Quando entregou o papel, constava só uma multa, falta de capacete do condutor.
- É para não irem para o café de Paço de Arcos dizerem que enganaram os chuis.
Os atletas adolescentes agradeceram a compreensão e partiram estilo cordeiros a empurrar a Vespa-50 de Mac Macléu Ferreira, agora com a ajuda das duas mãos.
- Podem ir montados na mota. Era o que iriam fazer mal dobrassem a esquina.
O condutor deu ao “kiko” e a mota atirou para o ar os centímetros cúbicos clandestinos.
- Belo motor, - riu-se o polícia.
A equipa de atletismo da GNR tinha acabado de cilindrar o duo do café “Picadilly” (“Pica”)!



Monday, December 08, 2008

Amor de Perdição





       Camarada Choco 
                                            Aventura 64
A história repete-se, os Desaparafusados por vezes têm amores platónicos por Aparafusados, e não olham a meios para atingirem os fins, que nunca sabem quais são. Um Aparafusado apaixonado, estilo Vira Bicos, colhe um Mal-Me-Quer e começa de imediato a ladainha do “bem-me-quer” , “mal-me-quer”, sendo o veredicto guardado para a última pétala. Os Desaparafusados são diferentes, cada um usa a sua estratégia. Esta história envolveu o Pitrongas, o melhor aluno da Venteira, que percorrera todas as salas do rés-do-chão, desde a número um, a turma dos quiabos, onde aprendeu o “Milho Rei” de trás para a frente, para os lados e do avesso, transitando num ápice para a sala de nível dois, a Biblioteca do Nélinho, onde se especializou em “Ginas” e “Sabrinas”; na turma seguinte, a dos “embrulhos”, ensinaram-lhe a empacotar presuntos chineses, tendo terminado este ciclo na número quatro, com retoques em báus , pinceladas em anjinhos e modelagem de pacotes. Ganhou o Bacharelato em Cartonagem. Como continuava a mostrar excelentes capacidades avançou para a licenciatura, tendo iniciado os estudos na Sala das Roscas, onde mostrou especial apetência por parafusos, gostando muito de lhes colocar as anilhas grossas. Pediu transferência para as Artes, onde efectuou um curso intensivo de Teatro para Sonâmbulos, com o implacável Vira-Bicos, colega de escola do Batatoon. Mas a sua consagração foi quando se cruzou com o maior pincelador da Brandoa, o famoso ex-Cunhado do Choco, responsável pela cadeira “Arte de Pintar em toda a Tela”. Pelo caminho cruzou-se com o Stor Pobre, que lhe transmitiu uma sensação de dever cumprido, a quem os invejosos acusaram de lhe baralhar a alma. Foi num passo vagaroso e saboreado que se apresentou no espaço do mestre Pintor, que lhe deu como primeira grande responsabilidade pôr o Benfiquista Bacalhau a verter águas. Mas esta sempre foi uma missão ingrata, pois o colega nunca queria só esvaziar a Bexiga, e nunca se soube o que acontecia na altura em que os dois se trancavam na casa-de-banho. Quando se preparava para mudar para o ensino superior, no primeiro andar, começou a ter comportamentos dignos de um Desaparafusado do Tojal: todas as noites, após o “noddy”, fechava-se no quarto e fazia com os calos o que o Vira Bicos fazia com o Mal-Me-Quer. Com esta fixação nos pés, o Pitrongas arriscava-se a criar uma pausa na sua fulgurante carreira académica e, desse modo, apagar da memória uns pés com calos, o único ponto em comum com os Aparafusados. Na sua cabeça desfilavam enigmas, logros, mistérios, embustes, traques, equívocos, ecos, reflexos, paradoxos, que lhe riscavam ainda mais a alma e depenavam a existência. Todos os sábios, que abrangia quase toda a Cerci, tentavam desvendar o porquê deste amor de perdição do artista inacabado pelo Stor Pobre. Tinha atingido com brilhantina no cabelo o estatuto de boneco de ventríloquo e atirava agora todo o fenomenal trabalho académico pela pia abaixo, porque resolvera enveredar por um amor não correspondido, que lhe estava a dar cabo dos cascos. O que é que ele veria naquele Stor Pobre, careca, com falta de dentes, folgas nas juntas, que urinava sentado, e outras mazelas da terceira idade?

Wednesday, November 12, 2008

O Submarino II



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Comandante Guélas
Série Paço de Arcos 
O Motim

A próxima regata, a do “Pirilampo Mágico”, era de noite e o comandante do “Carapau Cocciolo” inscrevera-se, determinado a levar mais uma taça para o convés, junto às grades de cerveja. E foi durante uma reunião de fim-de-semana, em que se delineava a estratégia de “velejar por toda a costa” (patrão Lopes), que o cartógrafo Mac Macléu Ferreira tomou conta da ocorrência.
- De noite, com o 75% à proa? – Perguntou indignado o ex-loirinho e agora quase calvo, caixa-de-dioptrias.
- É mais uma vantagem para a nossa vitória, - explicou o comandante. – A organização exige que cada concorrente leve um objecto florescente e nós temos a sorte de um de nós brilhar. Vamos pontuar por “originalidade”.
- Mas isso já interfere com os meus negócios, - gritou o cartógrafo tendo um ataque de tosse, que não se sabia se era do tabaco ou do coração.
- Com os teus negócios? – Perguntou o marujo Cabeçudo, agora um especialista em “Política Internacional”, desviando o olhar do livro “Como fazer bifes de cavalo saberem a tornedó”, da autoria do Professor Tino, e fixando-se nas incalculáveis dioptrias do careca loirinho.
- Com o 75% amarrado à proa e a brilhar como um lampião, as lulas irão tomar de assalto o “Carapau Cocciolo” e amanhã não terei moluscos cefalópodes para empacotar, - gritou o empresário de moças recheadas dando uma palmada no 75%, que já roncava e acordou estremunhado:
- A minha dentadura, a minha dentadura???
Segredos e tabus era o que não faltava na vida desta tripulação com o maior currículo da vila e arredores. Numa entrevista recente à “Voz de Paço de Arcos”, Mac Macléu Ferreira declarou que nunca revelaria o segredo do recheio das suas lulas e o mestre da embarcação confidenciara que fora preciso investir muito tempo e algumas cervejas para dar prontidão à tripulação, porque fazer parte do submarino era uma profissão a tempo inteiro.
- O meu trabalho como capitão da embarcação não é reunir os “magníficos”, mas sim ver-me livre deles no final do dia, quando as cervejas acabam, - explicou ao senhor Coutinho, o dono da revista. – Já tive um dia de chamar de urgência um chinês para vir buscar o mano, que pretendia sair pelo lado do mar. Se a polícia marítima visse seria acusado de estar a desembarcar clandestinos.
Na marina é impossível passar pelo “Carapau Cocciolo” sem saber o que é o “Todos os Chatos”. Os membros do submarino foram talhados ao ponto de irem ao fundo da natureza humana buscar os melhores flatos, especialmente no que eles representam de vaidade para quem os solta, mostrando a elegância, a acuidade e a profundidade destes skills náuticos. Os marujos do “Todos os Chatos” são mestres na retórica e oratória náutica, aparecendo muitas vezes sonolentos , só saindo do torpor quando cortam a meta no terceiro lugar. Nestas alturas aplaudem a mãos cheias o momento em que o maçadíssimo Vaca Prenhe ergue a taça do último. Mas houve um dia, tirando o caso da lulas, que a tripulação do “Carapau Cocciolo” esteve perto do motim: em vez de várias grades de cervejas o carteiro entregou, à vista de toda a marina, um pacote de fraldas “Lindor Anatómico”. O 75%, que tem uma concepção épica do mar, acusou os colegas de “achincalhamento marítimo” e a sua fúria chegou a ser arrebatadora e comovente, tendo fundido várias lâmpadas da Marina e atraído todos as tainhas da zona. O submarino virou traineira e tudo voltou ao normal quando o Mac Macléu Ferreira, um careca loirinho fascinante e com uma história ainda mais fascinante para contar, foi a correr hastear o pavilhão. A única excepção foi o marujo Cabeçudo que tinha acabado de perder o seu novo livro, “Como transformar carne de cão em carne de veado” (Zé da Quinta). Nesse momento acabara de atracar o rival “Todos os Chatos”, onde o sentimento predominante era o tédio. A primeira imagem do submarino traineira era a de um veleiro em actividade intensa, cuja acção da tripulação antes de cada regata era levar o 75% em mãos, seis, para a proa, previamente forrada a papel de jornal. Nestas ocasiões a imagem de um veleiro de competição dava então lugar à de uma unidade de cuidados intensivos.

Sunday, November 09, 2008

Kaos


Camarada Choco
Aventura 63 

- Aproximem-se, tenho umas prendas para vocês, - chamou a Doutora Sem Canudo, acenando com uns papéis nas mãos.
- Cheques, vai dar-nos dinheiro extra? – Perguntou o Nélinho atirando com os livros ao ar e saindo a correr da sala com os braços no ar.
- Não me digam que o saco azul está a transbordar? – Questionou outra.
- Melhor, muito melhor, - prometeu a proprietária de tudo.
A expectativa era enorme, a multidão de chinesas foi-se acumulando em redor da generala, senhora absoluta do local onde se prometia aparafusar Desaparafusados, mas que até aqui só tinham conseguido desaparafusar Aparafusados, e tudo graças ao legado desta eleita da Brandoa. Na fila de trás estavam as escravas, atraídas pela promessa de um emprego, mas reduzidas ao eterno cargo de “voluntárias”. O Cabo Pilas alinhava-se junto à chefe, já antevendo o momento da substituição.
- Tia, - chamou a ele a Madrinha.
- Tia?! – Reclamou a Proprietária.
- Desculpe, eu queria dizer Doutora Sem…Com…Sem…Com, - e encravou.
- Desembuche que eu tenho de distribuir os convites.
O Pilas estendeu-lhe as folhas escritas pelos Desaparafusados que tinham ido visitar o centro militar vizinho da escola e afastou-se a tossir. O Pitrongas que ia a passar fez-lhe logo o diagnóstico do costume: “pintelhinho na garganta”!
- Já aqui estão todas, podemos começar. Como devem saber, eu gosto de premiar quem trabalha…
- …vai dar-nos mais trabalho, - atirou a pirosa, compondo o mostruário de broches que os Desaparafusados da sua sala sabiam fazer.
- Ou então os contemplados são os do costume, o Porres e a Piulia, mesmo estando de baixa até Dezembro.
- Tenho aqui três convites para uma exposição de Cooperativas na FIL, a “Co-Operative”!
A debandada foi geral e só três ficaram encurraladas: a Pirosa, a Menina Tatrícia e a Outra. A Doutora Sem Canudo agarrou-as e nomeou-as embaixadoras.
- “Co-Operative”? – Perguntou a Menina Tatrícia, levantando o braço e um sobrolho.
- Eu traduzo para português, afinal de contas sou uma Doutora e tive Inglês Técnico. “Co-Operative” quer dizer “Cooperativa” e “Cooperativas” só há umas: as de Desaparafusados. Esta exposição é sobre reeducação e eu quero que a minha quinta esteja na vanguarda da educação e não seja como muitas que ainda usam paus de gelados para fazer talas. Bem, tenho de me ir embora, espera-me mais um voluntário.
E a confirmação de que a Doutora Sem Canudo era uma enciclopédia viva da Farinha “Pensal”, aconteceu quando as embaixadoras deram de caras com o stand da Malásia: “Mongkos”!
- Mongkos?!
- Sim Pirosa, quer dizer Mongas em Malaio.
- Não, não é isso, já viram o poster.
Era estranha a educação de Desaparafusados na Ásia. Numa varanda bem iluminada, várias estudantes com necessidades educativas especiais exibiam umas coloridas mini-saias, acompanhadas de uns decotes que fariam corar de vergonha o senhor Pintor, ultimamente conhecido por Mamma Mia por andar vestido à padeiro.
No dia seguinte a Madrinha apareceu cedo na sala de Artes Plásticas e presenteou o Cunhado do Choco com um novo voluntário.
- Um utente novo?
- Um voluntário que traz acopulado qualquer coisa ligada aos “desenhos animados”.
- “Desenhos animados”? – Questionou o Mama Mia, levantando o sobrolho de especialista.
- O currículo era uma folha A4 em branco e eu lá consegui dar-lhe uma habilitação mínima para vir para aqui. Tem a categoria de “Faz-de-Tudo infinitamente”. Chama-se Pateta e vem para aqui ajudar os colegas…não…os utentes.
E enquanto tentava justificar mais um escravo, um vulto apareceu por detrás e chamou:
- Tia!
A Madrinha voltou-se esganada e deu de caras com o Cabo Pilas.
- Acompanhe-me imediatamente ao meu gabinete.
Entretanto o Choco despira-se totalmente num abrir e fechar de olhos apanhando de surpresa o chefe bibliotecário, o senhor Nélinho. Numa sala próxima o Stor Pobre lia o processo duma Desaparafusada que se dizia filha do Stor Rico. Tinha vindo de São Tomé, como cautela ganhadora de uma enfermeira sua tutora, que a única coisa que sabia de hospitais era limpar o chão e despejar cinzeiros. A Preta Fininha tinha tido um ataque epiléptico, na altura em que a mãe sofrera um ataque de malária e morrera. De imediato os familiares acusaram a pequena de bruxaria e expulsaram-na da aldeia à cocada. Como era sempre a descer, nunca mais parou acabando por chocar, algumas horas depois, com a dita Enfermeira Sem Canudo, que a levou para o hospital e tratou de arranjar a papelada para vir fazer reabilitação à cautela premiada que lhe tinha caído ao colo, na Europa. Chegavam mais depressa aqueles com um monga ao colo, do que os outros que resolviam vir de barco. A Preta Fininha aterrou na Portela só com nome próprio, pois perdera os apelidos durante a fuga, tendo a seu lado a extremosa tutora, agora senhora de uma habitação social e de um subsídio maior que o ordenado do presidente do seu país natal. No andar de cima o Pilas tentava justificar as cartas de agradecimento que os seus Destravados tinham escrito ao comandante do quartel militar vizinho após a visita.
- Ó Cabo Pilas, garante-me que foi a Ludrinhas que escreveu esta carta:
“Venho por este meio agradecer ao senhor coronel o convite que me fez para visitar as suas instalações, de que gostei muito, ficando prometido desde já que serei voluntária na próxima incorporação para a arma de artilharia, pois acho que o meu meteorismo intestinal será muito útil ao país”.
- É tão certo como eu medir um metro e noventa. A Tia…perdão…Madrinha há-de reconhecer que o meu trabalho é exemplar e deveria recompensar-me com o cargo de Coordenador. A outra dorme o dia inteiro.
- E esta é a carta do Choco:
“Meu caro colega coronel, gostei muito de visitar as suas instalações, fizeram-me recordar a minha juventude nos Comandos da Brandoa, em que distribuía diariamente vários morteiros à minha mana e mamã. Espero em breve tornar aí e envergar de novo umas fraldas e uns babetes dessa tropa especial onde o meu padrinho Cabo Pilas andou”.
- Eu não brinco em serviço, ando muito mas não brinco. Penso que deveria ser recompensado.
- E esta é de quem?
“ Colonel, gostlei muintlo de visitale os escotleilos e não me vlou malis esquecele do caminho”
- Essa é minha


Sunday, November 02, 2008

O Peru de Natal



Comandante Guélas 
Série Paço de Arcos

Quando o Vaca Prenhe foi conhecer a futura sogra, a senhora nem queria acreditar no que via. Educara a filha nos melhores colégios do país, onde se fumava atrás do túmulo de D. Dinis, com princípios morais dignos da nobreza e agora aparecia-lhe em casa um estudante cromagnon, tipo Caniche gigante, que estava retido há vários anos no 7º Ano do Liceu, tendo conseguido passar unicamente à disciplina de “Introdução à Política”, retenção esta que, segundo a sua verdade, se devia a uma traiçoeira pneumonia dupla. Só podia ser um pesadelo! Beliscou-se mas os cabelos pelos ombros estilo carapinha, do pai do seu futuro neto, continuavam a fazer-lhe cócegas nos olhos. Olhou para baixo e reparou que o “coisinho” vinha equipado com uns soberbos chinelos ortopédicos com unhas estilo garras. A filha trocara o Pitrongas, um Flamingo majestoso, por este Pteurossauro da Terrugem. O tempo passou, a revolução deu-lhe um empurrão académico milagroso e o cromagnon acabou por definir o seu grande objectivo de vida, que era ter direito a “Dr.” nos cheques. Mas às vezes tinha recaídas existenciais! E uma delas foi no período do Natal. Para subir um pouco na escala de preferências da sogra ofereceu-se para ir buscar o peru, no carro dos pais, a Caxias. E levou o cunhado Peidão, um jovem atinado e já com muitas preocupações ambientais, que seria o seu moço de recados pois o Vaca Prenhe já se considerava doutor e ficava mal a um jovem adulto com tantas habilitações académicas, ir buscar uma ave à cozinha duma messe, recheada de praças e cabos. O cromagnon ficou sentadinho ao volante a ver a chuva a cair com violência e a fumar um cigarrinho. Recolhido o bicho, que vinha desmontado, o motor do carocha preto tornou a roncar. Ainda tinham percorrido poucos metros quando o carro parou repentinamente. O Vaca Prenhe olhava fixamente para o horizonte. Junto a uma paragem de autocarros rodeada de água por todos os lados, estava um jovem cristão de fato azul cueca, pronto para ir passar a consoada com a família. O Peidão olhou para o cunhado e viu-o a deitar fumo das orelhas, ao mesmo tempo que acelerava o carro, que estava em ponto-morto. No ombro esquerdo do motorista estava um morcego com uma capa vermelha e no outro um anjinho estilo OMO.
- Ele está a gozar contigo! – Segredou-lhe o morcego. – Prego a fundo rapaz, como antigamente.
- Tu agora já és pai e marido, tens algumas responsabilidades, - avisou o anjinho.
- É só mais uma vez, dá-lhe uma banhada, – gritou o da esquerda.
- Pensa no desgosto que vais dar à tua querida sogra.
- Acelera antes que chegue a carreira. É a despedida de solteiro que a tua mulher não te deixou fazer.
O carocha já roncava!
- Se não avançares já, nunca mais te ajudo nos exames nacionais como te fiz em português, quando levaste o livro certo e copiaste aquilo tudo. E sabes o que isso significa? – Ameaçou o morcego com a capa vermelha bufando-lhe aos ouvidos.
O carro saiu a guinchar, o Vaca Prenhe levava o Peidão colado ao banco, com o peru a querer sair da caixa. A enorme poça levantou-se toda de uma vez e o jovem cristão de fato azul-cueca desapareceu no meio do Tsunami natalício.