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315 estórias

Wednesday, January 28, 2015

Único & Única



Comandante Guélas

Série Colégio Militar

O Colégio Militar sempre foi um paradoxo e sempre manifestou um desconforto, porque sempre foi uma crítica ao sistema vigente, que não poupava inimigos nem cúmplices. Pagou com a omissão ou com uma má reputação esta atitude. Por isso a estória vai começar pelo Único e ser encerrada pela Única, duas personagens colegiais que ficaram para sempre gravadas nas memórias de várias gerações de alunos.
No picadeiro o Jaimito preparava-se para dar uma aula de equitação, e mais uma vez destinava um quadrúpede desaparafusado, o Único, ao aluno com quem mais embirrava, o matulão do 480, que tinha um pavor por este tipo de mamíferos. E estava à frente de todos. Atrás de si tinha o Salame, que mordia, seguido da Rata, uma égua branca que dava cangochas quando lhe tocavam na garupa. O quarto era o Quadrado, de cor castanha e feitio muito vivo, que um dia partiu o braço ao 80. Seguia-se o Alfange, uma máquina a disparar coices por tudo e por nada, com o Eusébio, que tinha mau feitio, atrás de si. Continuavam a Tangerina, a Quirina, o Patacho, o Vapor, o Cabeça de Mula,  e muitos outros quadrúpedes que ficaram para sempre nas memórias dos alunos, e que também passaram pelos estômagos de alguns, porque fazer parte desta estranha família dos Meninos da Luz, implicava sacrifícios. E não nos podemos esquecer da Nono, uma égua mansinha mas que, para não fugir à regra, também gostava de dar coices. Por isso ia sempre para o fim da fila. O oficial colocou-se num dos cantos do picadeiro com o chicote na mão, e ordenou ao soldado que o ajudava para se posicionar noutra ponta, também de chicote na mão.
- Montar - gritou, dando início à aula de equitação.
Quando o barulho dum relâmpago cortou o ar todos se puseram em movimento, cada vez mais acelerado, à medida que a trovoada aumentava. O que montava a Tangerina depressa ficou pendurado, com uma mão no arreio e preso só num estribo. De repente o barulho de um saco de batatas a cair no chão com estrondo sobrepôs-se a todos os outros. Era o 480, que tinha sido traído pelo efeito da força centrífuga!
- Quem é que mandou apear? – Gritou o Jaiminho aproximando-se do aluno.
- Eu não aguento mais, meu capitão.
- Já lá para cima.
Nova corrida, nova rodada, os chicotes voavam por cima das cabeças de todos, e o 480 já se agarrava desesperado ao cepo da sela.
- Se voltas a agarrar aí vais ao chão, - avisou o equitador, atirando o chicote para cima do Único.
Deixemos esta aula alucinante, impensável nos dias de hoje, porque os cavalos são de pôr moedas, iguais a muitos que estão à porta das pastelarias da capital, e mesmo assim os pais dizem à associação que os filhos se queixam de “dores no rabo” e continuemos o passeio pelas nossas fabulosas memórias do século passado. 
- É gado, é gado, - gritava o Semita distribuindo ponteiradas pela turma, que tinha estado a imitar ruídos de animais à medida que o ajudante do engenheiro Grijó, também conhecido por Ruca e Fiasco, cortava as doses de sódio e potássio que iriam ser usadas na aula prática de química. – Psché, num monte de esterco fazeis nódoa.
O 376 estava com a cabeça no devir, olhava com orgulho para o Cartão de Identidade duplo, que lhe permitia sair do colégio quando bem entendesse. O “Homem” (Oficial de Dia) guardava religiosamente os originais, que iam para o geral das companhias ao sábado, dia da saída geral. Esta era a maneira mais cómoda de sair. E como ele, muitos também possuíam um duplicado.  A aula de Biologia do Perdigão decorria dentro da normalidade até que o professor pediu ao 125 para explicar à turma os efeitos visuais do caroteno. O aluno levantou-se, como mandavam as regras, e disse:
- Quando a minha mãe põe os tomates ao sol, - e foi interrompido pelo riso geral da turma.
Na música o Carioca estava no ensaio para a mudança de voz, e tinha à roda do seu órgão o 515, que também possuia um Cartão de Identidade extra, o 518 e o 351.
- 518, cante, - ordenou o professor.
- “Dó, Ré, Mi, Fá…”
Os colegas riram e gozaram com a voz estridente do colega. O Carioca olhou para o 351 e pediu-lhe:
- Olha ó menino, vai ali à bateria e traz-me as baquetas.
O 515, que estava de frente para o docente, desconfiou do pedido e preparou a fuga. Quando o colega satisfez, a rir, o pedido do Carioca, este levantou-se e arriou-lhe forte e feio com os paus, ao mesmo tempo que o avisava, “não estamos no recreio”.
Através destes flashes das memórias sente-se o respirar do colégio, assim como o vento e a luz, que são cúmplices da nossa passagem pelo espaço. Por isso esta estória, que foi iniciada pelo Único, é agora encerrada pela Única, a mítica Rosa, a musa dos anos setenta, presença habitual em todos os sonhos colegiais, metamorfoseada em centenas de almofadas, atual funcionária do SEF, na ponta final para a reforma. Se o país fosse justo, os anos que passou a bambolear-se para os Meninos da Luz deveriam contar a dobrar, e estaria por isso agora a curtir o sol em qualquer uma das Ilhas do Seixal, na companhia da Maria Macaca, da Antonieta, e a sua prateleira e pandeireta de sonho, e para os mais tímidos a mulher do Patronilha, todas juntas para mostrarem ao zarolho, que infernizou a vida aos petizes juntamente com o Ferrari, a qualidade das Tágides da Luz!



3 comments:

Pedro Chagas said...

Impõe-se uma reportagem para mostrar ao mundo essa mítica Rosa da qual tanto ouço falar, mas que já não tive o prazer de conhecer.

António Miguel Miranda said...

Pedro, a Rosa deverá ficar nas memórias como era (uma hipotética deusa de quem ninguém se lembra da figura, mesmo aqueles que a emboscaram)...e não como deverá estar, nos Serviços Administrativos do SEF,à espera da reforma, senão adeus Rosa!

Gordini said...

Lembro perfeitamente da sua fisionomia. Era uma rapariga alta e magra. Tinha uma cara interessante sem ser deslumbrante. Sabia que era observada e emprestava ao seu andar alguma sensualidade. António Abreu Ferreira