Comandante Guélas
Série Colégio Militar
O Vapor
- É o Gui que vai mandar
na Força dos Estabelecimentos Militares de Ensino, - ordenou o Alguidar,
levantando-se e pondo-se em bicos dos pés.
O silêncio pesava. O Tó
sabia que todos sabiam que ele era mais um daqueles ministros que nunca comandara
nada, e que agora tinha tido a oportunidade da sua vida, negada uns anos antes
pela “enurese”, declarada por um atestado semelhante ao da sua licenciatura. O
país tinha um político em processo de “transferência”, deslocava sentimentos do
passado, ausência de pilão ao despertar, para pessoas do presente.
- Mas senhor ministro,
os outros já cá andam há mais tempo.
O assunto estava a
transformar-se num jogo floral, com barricadas e trincheiras, o poder usara e
abusara de inépcia política, assumindo o confronto como forma de vida, os do
outro lado, estavam fechados no seu mundo, perdendo a capacidade de entender o
que os rodeava. Todos faziam poucas tangentes à realidade, havia adagas e
espadas a tilintar.
- Quem manda sou eu,
está decidido, o gordinho vai comandar.
O
fundamentalismo instalara-se na Luz, já nem o pin escapava, havia quem os
quisesse tirar àqueles que no passado tinham dado luz à gloriosa Luz, o
Moca, o Patronilha, o Miranda, o Semita, o Carioca, e aos que com orgulho e
competência os substituíram, mostrando que o local estava sempre para lá de
formatados conceitos estéticos. A “Geração Calimero”, alimentada a Suissinhos,
que nunca provara um amarelo feito com bifes da testa e ovos do pai da Rosa,
saídos do interior das galinhas desmaiadas com o clorofórmio que
alguns tinham desviado ao Valentim e arremessado para cima das aves, pedia uma
revolução, e quando escutavam nos ipod o Pequeno Saul, o seu líder
incontestado, apetecia-lhes bater em alguém. Por isso esta estória merece um
ponto parágrafo.
O
passado com estórias continua a ser uma memória útil, onde certas decisões eram
difíceis de tomar, mas representavam um grande ato de coragem. O Vapor era um
equino rebelde, acreditava na possibilidade de escapar ao sentido único do seu
tempo, que o reduzia a uma simples cavalgadura militar, com direito a número
mecanográfico e a documento oficial de existência. A oportunidade surgiu num 3
de março e abalou as convenções, o Vapor fez uma insurreição do espírito que
deixou no éter, e nas memórias de muitos, a sua marca, não com “engenho e
arte”, que isso era exclusivo da rapaziada, mas sim com “engenho e ferradura”.
O Colégio Militar era detentor do mais antigo título de legitimidade na arte de
receber figuras ilustres e iria mostrar, mais uma vez, que estava de boa saúde.
Preparou-se com “ardor guerreiro” para a visita de um português que uns anos
antes enfrentara, durante uma campanha eleitoral, os tiros de uma pistola,
subindo para o tejadilho dum carro, tal qual um “doirado pomo brilhante”,
tornando-se no alvo perfeito:
- “Não
tenho medo”, - gritou para a turba que o esperava em Évora, no longínquo ano de
1976, deixando para sempre um risco na superfície da cidade alentejana.
Por isso tinha à sua
espera a meio da estrada da Luz a Escolta a Cavalo, onde se incluía o célebre
Vapor. Os cavalos envergavam fato de cerimónia, assim como os Meninos da Luz,
que só podiam pertencer a esta elite com as “lides do estudo” alcançadas. E
eles montavam como mais ninguém! Quando o barulho dos cascos de encontro aos
paralelepípedos se tornou audível, o comandante engrossou a voz e:
- Batalhão…firme…sentido!
A sinfonia das botas e
das armas dos alunos juntou-se ao ritmo dos equinos, e ao carro que trazia o
presidente.
- Ombro arma, -
continuou.
O Mercedes parou junto
ao monumento, e o Vapor encostou de imediato a garupa à porta por onde a
excelência pretendia sair.
- Apresentar arma!
E apresentadas ficaram,
pois careciam do consentimento do visitante para regressarem aos ombros. Quando
o presidente quis abrir a porta do bólide, esta esbarrou com o traseiro roliço
do Vapor, que espreitou através do vidro. O bípede sentiu a fúria de seguir em
frente, mas o quadrúpede tirou-lhe o cavalinho da chuva, parecia querer
fazer-lhe a folha. Por causa do impasse, a maioria dos militarzinhos encaixou o
cão nos cintos e aliviou o peso das armas, que já estava a tornar-se
insuportável. A pressão interna na porta do Mercedes preto era igual à pressão
externa. O Vapor estava inamovível. Por breves instantes o Gordini fez a
revisão da matéria dada:
- Qual é a unidade
padrão da pressão? – Perguntara uns tempos atrás o Semita ao seu colega Peidão.
- É o Rascal! –
Respondera a seco o colega, provocando o riso da turma.
- “RASCAL”???? Moçooo,
sabes o que é um Jericoacéfalo? É o que tu és….um burro sem cérebro, - e deixou
cair o ponteiro no coco do 191, – ao mesmo tempo que se virava para a turma. –
Nesta aula uns dormem de olhos fechados, outros de olhos abertos.
- Esta cavalgadura não
vai ficar a rir-se, - pensou o ilustre visitante exasperado, empurrando a porta
com raiva, riscando o vidro com as estrelas.
O equino foi apanhado
desprevenido, afrouxara o flanco depois de sentir os esporins a picarem-lhe a
barriga, e perdera a primeira batalha.
- A mim ninguém me pára,
- disse orgulhosamente o presidente quando sentiu a cabecinha ao vento.
Compôs a farda, ajeitou
o chapéu, e olhou com desprezo para o Vapor, que espumava por todos os poros.
Mas este já tinha feito os cálculos, e por isso disparou de imediato um soberbo
coice, decidido a fazer a folha ao intruso. A direção das ferraduras estava
correta, o queixo do inimigo era o alvo, o local previsto para a aterragem
indefinido, mas uma mão invisível protegeu ambos de um destino cruel, o bípede
safou-se de ficar com a cara ainda mais à banda, o quadrúpede de ser
transformado em bifes no jantar seguinte e o colégio de alterar o sentido da
História. A partir deste momento o visitante registou para sempre nas suas
memórias que o único vento de uma tempestade inesperada, veloz e aterradora,
com o cheiro da humidade da palha apodrecida, não do domínio do ar, mas do
interior obscuro das cavalariças, fora sentido na Luz.
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