Camarada Choco
Aventura 94
Esta é uma
estória que trabalha de orelha em orelha, com relações complicadas num tempo e
numa parte complicada da Amadora. Por isso o local onde as personagens
trabalham é contraditório, de luz, de paixão, de confusão, ou seja, um caos
ligado a uma marginalidade que, apesar de tudo, tem os seus princípios.
-
Não, não, - gritava o único motorista da Escola para Desaparafusados da
Venteira que guiava em pé, mexendo-se no assento, onde se deixara adormecer,
depois de ter estado a contar, não carneiros, mas os Desaparafusados que a
professora Raquete e o stor Pobre insistiam em levar para o contentor.
Na
cabeça dele desenrolava-se uma cena de chicotada ao estilo das “Sombras de
Grey”, e tudo porque riscara violentamente a carrinha, que ousara levar até junto
dos cavalos, sinal de que desobedecera às ordens da chefe, uma “doutora sem
canudo” com valores fluídos, que já só tinha sonos sem sonhos. Valia-lhe o
Primo do Choco, um ex-militar que tinha vindo de férias, e que costumava
criar-lhe um espaço de possibilidades dentro do autocarro com plataforma. O
ambiente estava tenso, o Pitrongas tinha comido as bananas do Fangio Espástico,
não se sabendo se se incluía a fixa, já traumatizado por andar com a cabeça pesada
depois da Carolina Caracol o ter trocado por outro com mobilidade autónoma. Mas
havia algo a formar-se lá para os lados do Bar.
-
Espatinha, quero um café duplo, - pediu a Vitaminas, batendo com o punho
fechado, e pondo-se em pé em cima do balcão.
Por
breves momentos todos sentiram raios, coriscos e trovões, mas mesmo assim ninguém
se sentiu iluminado pelos relâmpagos, excepto a terapeuta Giulietta que sentiu a
aproximação de um mecânico vindo por detrás e abraçando-a com as mãos
besuntadas de óleo.
-
I have a dream, - disse a fisio
abrindo os braços, e continuou. – Sonhei que um pensamento preso no lado errado
da minha cabeça se soltou. Já se questionaram porque é que ainda ninguém se deu
ao trabalho de estudar a mente da Empregadora? Com tantos psicólogos, o que é que
eles andam a fazer? Pelo menos um está sempre a tocar à guitarra, garanto-vos!
A
Vitaminas estava tão repleta de magnetismo, que a terapeuta Giulietta dizia já
ser uma consequência das solhas confecionadas pela mestiça, por isso o alarme
de incêndio, ao qual tradicionalmente ninguém ligava, acionou-se, trazendo para
junto de todos a Madrinha, vista na Festa Medieval em formato de múmia.
-
O que é que vem a ser isto, não há trabalho para fazer? – E olhou para o Frade.
– Já te disse que tens de dar o exemplo.
A
chefe máxima da Escola para Desaparafusados da Venteira era uma pessoa que
pensava sempre em coisas impossíveis, pelo menos doze horas por dia, porque as
outras doze estavam controladas pela medicação. E a conspiração prosseguiu, no
primeiro andar falava-se à porta fechada na "Távola Redonda das Terapeutas":
-
Um sindicato, vamos fazer um sindicato, - disse a Vitaminas tirando um papel do
bolso e lendo o conselho da Rainha de Copas da Alice - “Primeiro corta-se a
cabeça, depois faz-se o julgamento”. – E continuou com os enigmas. - Vou mandar
trancar todas as portas, excepto a que tem a chave dourada!
Tirou
dum saco uma garrafa de plástico, pôs copos em frente às amigas e deu-lhes
goles de chá fora de prazo, vendido pela Chinesa:
-
Temos de alargar o campo de ação pela força das circunstâncias! A nossa
adversária é controlada por algoritmos e emoções destrambelhadas, por isso
nunca quer saber o que se passa exatamente.
E
para agravar o algoritmo, alguém ousara atender o telefonema da Madrinha para o
Bar da Espatinha em termos inapropriados:
-
Churrasqueira da Brandoa, boa-tarde!
Estavam
num sítio onde havia sempre vozes e ouvidos por perto, de Desaparafusados e
Aparafusados, um diálogo de surdos e mudos que encapotava ruídos, que não
deviam ser subestimados. E a prova viva da terrível influência desta atmosfera
existencial estava na sala da Brazuca: o Nélinho já revirava os olhos tão bem,
ou melhor, do que a Mata Cágados, e já chupava charutos “Habanos”
compulsivamente, à vista de todos! Decididamente as fronteiras formais não
faziam parte deste espaço que se dizia de reeducação. De repente todos viram
sair da orelha esquerda da candidata um raio, que desenhou uma linha reta na
sala, e fez voar todos os papéis, ao mesmo tempo que abria com estrondo as
janelas, entalando as terapeutas de Faro entre a parede e a divisória, que se
deslocara com violência.
A
primeira medida mostrava já as diferenças:
-
Estão desde já proibidas de impingir o vesgo à terapeuta Giulietta, - gritou.
Ouviram
uma voz destoada e áspera, e por isso ficaram todas num estado sem tempo,
imóveis e mudas, sem vontade e sem pensamento.
-
“Quem está aí”? – Perguntou alguém do fundo do corredor, imitando Hamlet.
A
candidata riu-se com satisfação, deixando cair uma lágrima, só uma, que caiu
indefinidamente, fazendo-a aperceber-se de que estava no caminho certo. Só um
passo leve no corredor quebrou o silêncio inquietante e perturbador.
-
Frade, outra vez fora da sala? Já te disse que tem de dar o exemplo. Como castigo
vais às compras comigo e com a Fininha, preciso de colaboradores para empurrar
os carrinhos do Continente, e porem os produtos no tapete!
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