Camarada Choco
Aventura 93
Aventura 93
Aproveito
a estadia no Fernando da Fonseca, para onde me levaram já no Red Line, depois de vários meses a
gritar em linguagem gestual que estava com dificuldades em usar a minha piroca,
para fazer uma transmissão direta ao meu padrinho, tentando convence-lo a atualizar
o dia-a-dia do nosso clube, “Os Tubarões do Seixo”, a mítica equipa da Venteira
cujo “i” cai à entrada do clube. Antes de me ligarem aos tubos estive lado a
lado com a dona Etelvina dos Santos, uma velha de noventa anos que rosnava, e por
vezes confessava que estava à espera que a mãe a viesse buscar, e que o médico
das urgências teimava em chamá-la pelo altifalante. Por esta altura deve estar
no frigorifico! Quando o soro começou a entrar na veia consegui estabelecer a
ligação, e a estória apareceu em alta definição. Começo por agradecer à
pedagogia antiga por ter dado primazia à “aprendizagem do cagar sozinho em toda
a sela” do que o “saber escrever o nome próprio em maiúsculas no final da escolaridade
obrigatória”, como exige hoje o Ministério da Educação aos terapeutas dos
Desaparafusados. Os rabiscos que sempre fizemos nos papéis, que ainda servem
para publicitar uma “Venda de Natal” no Parque Central, uma espécie de limpeza
de garagem, sempre obrigatoriamente concorrida, porque a cotação em emoção de
um Desaparafusado está sempre em alta, e dá emprego garantido aos familiares
dos decisores, descrevem toda uma vivência, que é urgente deixar para memória
futura, antes que as “santinhas” me fritem de vez a micro mioleira. Eu sei que
sou um manipulador, troco afetos por comportamentos que me são mais
confortáveis.
-
Alto e pára o baile, - gritou alguém,
A porta da
Escola para Desaparafusados da Venteira abriu-se com estrondo, levada por um
vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se
fosse, não do domínio do ar, mas do interior de uma alma atormentada. A Dra. Sem Canudo vinha decidida a atazanar a vida de todos, trazendo
a reboque espíritos plasmados em enteados, primos, sobrinhos, e vá-se lá saber
quantos mais familiares, que naturalmente não existiriam se o Tegretol fosse
tomado a horas certas. Usava as usuais predições apocalípticas, sobre a ruína
que implicaria serem outros a decidir.
-
Dra. Catana, não há festa para ninguém, diga aos cavaleiros, reis, rainhas, de
copas, de paus e de espadas, que a festa “Medieval” tem de ser mudada, porque uma
minha enteada, …perdão, os ordenados dos meus oprimidos, e dos seus amigos, não
estão cá nesse dia, e ainda por cima ela já comprou o fato de “Padeira da
Venteira”.
Lá
fora, alheia a todas estas movimentações, a terapeuta Julieta acelerava no
bólide, tentando assim despachar o carregamento do telemóvel da Ovos Moles, cujo
aparelho resolvera desligar-se, pondo a sua proprietária à beira de uma
travadinha.
-
Prego a fundo, não posso ficar desligada do mundo!
Junto
ao passeio o grupo das terapeutas esperava pelos restantes, para o cafezinho da
praxe, o momento terapêutico mais importante do dia, uma mesa redonda que
obrigava sempre os presentes a uma introspecção em voz alta, cujo tema variava
todos os dias. O último, “espelho, meu, espelho, meu, quem é mais
desaparafusado do que eu”, tinha revelado verdades assustadoras, desde uma
terapeuta inscrita desde bebé como cliente de um centro de profundíssimos, por
ter passado uns tempos da infância com a cabeça à banda, um psicólogo bombista,
uma com marcas do Além, outra que nasceu tão cabeluda que foi logo ao cabeleireiro,
um stor com várias travadinhas no percurso escolar, etc., etc. As confissões foram
tantas que a partir de uma certa altura a mesa começou a abanar, pondo em
alerta um casal de velhotes que tentava conseguir sobreviver a mais um dia com
a perspectiva das pedras da calçada alteradas. Mas a ausência mais notada era a
do Frade que, por ser muito próximo da Dra. Sem Canudo, resolvera ir tomar o
café na intimidade do gabinete para “dar o exemplo”, como lhe pedira a madrinha.
Foi
o cheiro a bafio da Tigreza da Venteira que conseguiu tirar a Dr. Catana da sua
próxima viagem à terra do Che, não sem antes ela gritar com o punho no ar:
-
No passará!
As
imagens das possíveis decisões que teria de tomar, foram desde o arremessar a chefe
pela janela, até assá-la num espeto medieval, com uma maçã na boca. Se toda
esta confusão habitual em vésperas de eventos levará a momentos orelhudos
futuros, não sabemos, nem queremos saber, este foi indubitavelmente o
salamaleque com que a exótica e desconcertante coqueluche da Venteira
delimitou, mais uma vez, o seu território. Mas encaminhavam-se nuvens negras em
direcção à escola da Venteira: alguém, vítima dos efeitos secundários da medicação que andava a tomar, vinha apresentar a sua candidatura,
depois de uma das cadeiras do poder ter ficado vaga devido aos condicionalismos
da existência!
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