Comandante Guélas
Série Colégio Militar
A vida no Colégio Militar dos anos 70 era dura,
desprovida de sentimentos éticos, com uma justiça sumária que causava duas sensações, o que a
aplicava estremecia de prazer, o que a sofria estremecia de dor. E havia muitas
interdições! Passar pelos claustros, era uma delas, só em formatura,
excepto para os senhores graduados, os alunos do 7º ano. E nunca pelo corredor junto
à bomba de gasolina. Por isso o contigente mínimo para se poder passar pelos
claustros era de cinco elementos, quatro a marchar e um a comandar. De manhã
tinha havido problemas com o professor de matemática, o Gunga, que não respeitava a ética do limite.
Chegara à formatura junto à sala de aula, de óculos escuros, impossibilitando o
chefe de turma, o Peidão (191), de dar as ordens necessárias à formatura:
“firme”e “siope” (voltado para os colegas), “direita volver” (duas vezes
sozinho), ficar de frente para o professor em sentido, continência,
autorização, mais dois “direito-volver” sozinho, “esquerda volver” para todos,
passo de corrida para a frente da primeira fila e ordem “em frente marche”, ao
mesmo tempo que se deslocava lateralmente para a fila do meio, que recebia a
mesma ordem quando o último da primeira entrasse na sala, seguido de passagem
para a terceira fila, sendo depois o último a entrar, seguido do Gunga. Todos
ficariam em sentido junto às carteiras, até receberem ordem para se sentarem.
Mas o ”firme” não saía, o chefe de turma não conseguia dar a ordem, à sua
frente os colegas riam, atrás de si o Gunga mirava-o do seu metro e noventa,
com um ar imperial.
- Estou a ver que temos festa, -
ameaçou o único professor de matemática que entregava os testes 10 minutos
depois de os recolher.
Tudo correu na perfeição exceto a
entrada. A turma, num ato de suicídio coletivo, continuou a marchar dentro da
sala de aula, fazendo um barulho infernal com as botas. Não tiveram autorização
para se sentarem, ou melhor, a ordem só foi dada depois de o Gunga ter
distribuído abrunhos duplos a toda a turma, que permaneceu sempre em sentido
durante o ato pedagógico.
Nesse dia, durante a hora de
almoço, o funcionário Zé Pereira andou numa azáfama com o bloco de notas na
mão, os copos caiam que nem tordos, e de cada vez que se ouvia o barulho do
vidro a quebrar todo o pessoal gritava em uníssono “P.J.”, ou seja, “Paga já”,
obrigando o funcionário a deslocar-se em passo de corrida com o bloco de notas
na mão, até ao local da ocorrência. E como o lema do Colégio Militar era “Um
por todos e todos por um”, arriscava-se sempre a ter de arranjar vários
papelinhos para que a despesa fosse repartida. E a repartição neste dia chegou
aos “1/90 avos” do copo do Barrada (664), ou para ajudar a Loira (667) quando
um dia durante uma fuga ao Moca, depois de lhe ter acertado com uma escova de
sapatos, conseguiu uma “camaradagem” até “1/180 avos de uma sanita”. Umas horas
depois, na outra ponta do colégio, o Peidão (191), o Escalope (307), o Gordini
(601) e o Horrível (125) encontravam-se encurralados no pavilhão com acesso
único pela zona interdita. Precisavam de mais um elemento, mas não havia ninguém
para aqueles lados. Arriscavam-se a ter de dormir no local! Tiveram de arranjar
uma solução de recurso: o Horrível (125) desmaiou, e os outros iniciaram uma
travessia dos claustros com o corpo imóvel nos braços, e em passo de urgência.
Tinham tido tanto sucesso noutras ocasiões, em que o doente voltava a si
miraculosamente após o atravessamento da zona vermelha, e todos corriam em
debandada, só parando nas companhias, que não hesitaram em simular uma nova
maleita num deles. Desmaio concretizado, um agarrou nas pernas e os outros dois
distribuíram-se pelos braços, iniciando de imediato a travessia. Quando iam
sensivelmente a meio caminho, apareceu à porta da sala dos professores o
oficial de dia, e todos gelaram quando deram de caras com o tenente Aparício, o
oficial mais pequeno da zona, mas o mais malandro, que ostentava num dos ombros
uma placa para gigantes, que tinha escrito “COMANDOS”. O Horrível agravou o
desmaio, enquanto os outros iam quase largando o desmaiado. O pequenote pôs-se
no meio da via e deu ordens para entrarem com a vítima na sala, e poisarem-na
num sofá. A ordem foi cumprida tão depressa, que o Horrível acabou sendo literalmente arremessado para o
local indicado, e deixado á sua sorte. Os socorristas só pararam na camarata, e
rezaram pela alma do número 125, do ano lectivo 1971 / 1972. Entretanto,
algures numa sala da zona interdita dos Claustros o tenente Aparício conseguira
ressuscitar o desmaiado depois de vários abrunhos e outros miminhos.
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