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315 estórias

Friday, June 08, 2012

Zona com Restrições


Comandante Guélas
Série Colégio Militar


A vida no Colégio Militar dos anos 70 era dura, desprovida de sentimentos éticos, com uma justiça sumária que causava duas sensações, o que a aplicava estremecia de prazer, o que a sofria estremecia de dor. E havia muitas interdições! Passar pelos claustros, era uma delas, só em formatura, excepto para os senhores graduados, os alunos do 7º ano. E nunca pelo corredor junto à bomba de gasolina. Por isso o contigente mínimo para se poder passar pelos claustros era de cinco elementos, quatro a marchar e um a comandar. De manhã tinha havido problemas com o professor de matemática, o Gunga, que não respeitava a ética do limite. Chegara à formatura junto à sala de aula, de óculos escuros, impossibilitando o chefe de turma, o Peidão (191), de dar as ordens necessárias à formatura: “firme”e “siope” (voltado para os colegas), “direita volver” (duas vezes sozinho), ficar de frente para o professor em sentido, continência, autorização, mais dois “direito-volver” sozinho, “esquerda volver” para todos, passo de corrida para a frente da primeira fila e ordem “em frente marche”, ao mesmo tempo que se deslocava lateralmente para a fila do meio, que recebia a mesma ordem quando o último da primeira entrasse na sala, seguido de passagem para a terceira fila, sendo depois o último a entrar, seguido do Gunga. Todos ficariam em sentido junto às carteiras, até receberem ordem para se sentarem. Mas o ”firme” não saía, o chefe de turma não conseguia dar a ordem, à sua frente os colegas riam, atrás de si o Gunga mirava-o do seu metro e noventa, com um ar imperial.
- Estou a ver que temos festa, - ameaçou o único professor de matemática que entregava os testes 10 minutos depois de os recolher.
Tudo correu na perfeição exceto a entrada. A turma, num ato de suicídio coletivo, continuou a marchar dentro da sala de aula, fazendo um barulho infernal com as botas. Não tiveram autorização para se sentarem, ou melhor, a ordem só foi dada depois de o Gunga ter distribuído abrunhos duplos a toda a turma, que permaneceu sempre em sentido durante o ato pedagógico.
Nesse dia, durante a hora de almoço, o funcionário Zé Pereira andou numa azáfama com o bloco de notas na mão, os copos caiam que nem tordos, e de cada vez que se ouvia o barulho do vidro a quebrar todo o pessoal gritava em uníssono “P.J.”, ou seja, “Paga já”, obrigando o funcionário a deslocar-se em passo de corrida com o bloco de notas na mão, até ao local da ocorrência. E como o lema do Colégio Militar era “Um por todos e todos por um”, arriscava-se sempre a ter de arranjar vários papelinhos para que a despesa fosse repartida. E a repartição neste dia chegou aos “1/90 avos” do copo do Barrada (664), ou para ajudar a Loira (667) quando um dia durante uma fuga ao Moca, depois de lhe ter acertado com uma escova de sapatos, conseguiu uma “camaradagem” até “1/180 avos de uma sanita”. Umas horas depois, na outra ponta do colégio, o Peidão (191), o Escalope (307), o Gordini (601) e o Horrível (125) encontravam-se encurralados no pavilhão com acesso único pela zona interdita. Precisavam de mais um elemento, mas não havia ninguém para aqueles lados. Arriscavam-se a ter de dormir no local! Tiveram de arranjar uma solução de recurso: o Horrível (125) desmaiou, e os outros iniciaram uma travessia dos claustros com o corpo imóvel nos braços, e em passo de urgência. Tinham tido tanto sucesso noutras ocasiões, em que o doente voltava a si miraculosamente após o atravessamento da zona vermelha, e todos corriam em debandada, só parando nas companhias, que não hesitaram em simular uma nova maleita num deles. Desmaio concretizado, um agarrou nas pernas e os outros dois distribuíram-se pelos braços, iniciando de imediato a travessia. Quando iam sensivelmente a meio caminho, apareceu à porta da sala dos professores o oficial de dia, e todos gelaram quando deram de caras com o tenente Aparício, o oficial mais pequeno da zona, mas o mais malandro, que ostentava num dos ombros uma placa para gigantes, que tinha escrito “COMANDOS”. O Horrível agravou o desmaio, enquanto os outros iam quase largando o desmaiado. O pequenote pôs-se no meio da via e deu ordens para entrarem com a vítima na sala, e poisarem-na num sofá. A ordem foi cumprida tão depressa, que o Horrível  acabou sendo literalmente arremessado para o local indicado, e deixado á sua sorte. Os socorristas só pararam na camarata, e rezaram pela alma do número 125, do ano lectivo 1971 / 1972. Entretanto, algures numa sala da zona interdita dos Claustros o tenente Aparício conseguira ressuscitar o desmaiado depois de vários abrunhos e outros miminhos.

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