Comandante Guélas
Série Colégio Militar
O dia da Restauração aproximava-se, o capote do graduado mais novo já
esvoaçava por cima dos claustros abraçado a uma Cruz, e acima dele uma
Barretina que tapava a cabecinha do pára-raios. Não muito longe o professor Grijó,
ou melhor, o Semita, distraíra-se, mais uma vez, a jogar xadrez na sala de
professores e quando se apercebeu já só encontrou meia turma à porta do
pavilhão de química. Por isso, quando iniciou a experiência com o Sódio e o
Potássio calculou mal as doses, e o estrondo assustou o ajudante, mais
conhecido como Ruca, não estivéssemos nós no reino dos números e das alcunhas.
Como já era tradição, a responsabilidade caiu no subalterno:
- Ó Morais, és um bronco, disse-te para cortar mais fininho o produto!
A turma riu em uníssono, mas foi por pouco tempo.
- Tenho aqui as vossas notas, que são uma miséria, - disse o Semita olhando
para o Zacarias. – Moço, levas para casa uma bengala (sete valores). E tu,
número 384 uma bicicleta (oito valores), e tu 463 outra
Bengala -, e assim sucessivamente.
Noutro pavilhão um tenente-coronel armado em peru, o Galo, dava início ao
teste, e avisava os Meninos da Luz de que não queria ninguém a cabular, pois
como ex-aluno sabia todos os truques. Abriu a janela da sala e gritou:
- Ó ordenança, o meu cavalo já está arreado?.
- Eu montava era as tuas filhas! – Disse entre os dentes o Vaca, fã incondicional das meninas
do ten-Coronel de Cavalaria, que costumavam ir montar ao Colégio Militar com o
papá.
Permaneceu em movimento o tempo todo, com
as botas de cano alto a marcar o ritmo no soalho, como se estivesse numa
marcha marcial, enquanto o 320, o Peidão, o Peida-Gorda, o Judi, o Vinasse, o Six e muitos outros, copiavam à fartazana, com
os auxiliares de memória debaixo dos tampos transparentes. Uma parte da aula de Trabalhos
Manuais mais parecia um campo de tiro ao alvo, tal era a quantidade de barro
que forrava a parede branca da sala. O trabalho consistia em fazer uma rosa,
mas ninguém conseguia chegar ao fim, era humanamente impossível, que o diga o
69, o número mais vergonhoso do Colégio Militar, o único
a marchar com os “braços à altura do ombro” e a “bater os calcanhares”, mesmo a
levar biqueiros no cú, e dos raros que não cabulava, pois sempre que colocava a
última pétala, o Becas distraia-o e o Peidão, um aluno com uma
vasta ficha na Direção, ou outro que estivesse mais a jeito, enfiava um abrunho
na flor, reduzindo-a novamente a uma amálgama de barro. Do outro lado da sala o
professor Clarence (Cross-Eyed Lion da série Daktari), via o caos do colega com um olho e o teto com outro. Estava a classificar os trabalhos em cartolina, e acabara
de dar vinte valores à Torre Eiffel, que não iria durar muito, pois dois dias depois foi
vítima de um incêndio de origem criminosa, depois do Horrível, o Peidão e o 120 terem entrado clandestinamente nas instalações para
fumar um cigarrito, e ensaiado uma tocha com o símbolo da cidade luz, para
relembrar o ainda distante “Spell e King”. A festa que se aproximava era o 1º de
Dezembro e, antes do Batalhão marchar para a população, iria haver um confronto
final entre portugueses (graduados) e espanhóis (os do 6º ano), armados com
mocas, toalhas encharcadas na véspera, ensaboadas, enroladas e secas, que
ficavam com a dureza do cajado alentejano, com os restantes a assistirem à cena
no primeiro andar dos claustros, depois de terem atirado pela varanda o boneco
do traidor Miguel de Vasconcelos. Mas havia mais. De um momento para o outro os
inimigos transformavam-se em lusitanos ressabiados, formavam duas colunas a
perder de vista e obrigavam os castelhanos, a arraia miúda da assistência, a
passar pelo meio, ao mesmo tempo que lhes serviam mocada, e da grossa. Umas horas depois estava tudo engalanado a marchar!
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