Comandante Guélas
Série Colégio Militar
Um número, uma alcunha e uma arma, eram estas as três peças fundamentais do
enxoval do Colégio Militar. As duas primeiras ficavam para sempre tatuadas na
alma do aluno, mas a última era efémera, mais ano menos ano iria ser esgalhada
por outras mãos. Mas para que fossem eternamente Meninos da Luz teriam de ser
armados cavaleiros, tal como fizera D. Filipa de Vilhena uns anos antes na
noite de 30 de Novembro para 1 de Dezembro de 1640 aos seus dois filhos,
dando-lhes as espadas do pai e do avô. Os alunos mais novos, os ratas, iriam
assim receber, segundo a descrição oficial, “os saberes dos mais velhos”, numa
cerimónia a realizar na zona mais nobre do colégio, o Zimbório, mais conhecido por
claustros. Era um local de rituais, uma espécie de Stonehenge,
onde também já se cumprira o apertão do minorca dado pelo
Comandante de Batalhão ao aluno mais pequeno, conhecido como o “batalhãozinho”,
que na nossa altura ostentava o número 121, o Pejó, e conseguia ser mais baixo
que a sua Mannlicher, e assim permaneceu durante um longo reinado, sendo depois
ultrapassado pelo Cuecas de Buda, o 45, nunca se sabendo se comprou
sapatos com tacão, ou se os bifes de cavalo o fizeram aumentar uns milímetros.
E foi precisamente na véspera de um 1º de dezembro, que o Leitão, o 384, gritou “Feio”, quando viu o professor careca de história e geografia, António de Simas Alves de Azevedo, a caminhar nos claustros, tendo apanhado desprevenidos os colegas que tentavam arrombar a
porta onde o funcionário guardara as bolas de Berlim que iriam ser distribuídas
no reforço da manhã. A fúria do docente foi tal, que desatou a correr pelas
escadas acima deitando a mão ao primeiro estudante que viu, o
Elefante, 300, que estava sentadinho a fazer cábulas pata o teste do Semita, que ostentava o nome Grijó no B.I., e que costumava contar aos seus
alunos que quando tinha a idade deles cuspia no pão que levava para a escola,
para que os colegas não o comessem. Os claustros eram grandes, muito grandes, e
em cada ponta gritava-se “Feio”, “Feio” e mais “Feio”, e o mais sensato era o
“Feio” sair dali enquanto podia, pois o cerco aproximava-se, e o professor
careca arriscava-se a um “ramalho”, um ritual reservado para os dias de aniversário,
mas que na prática servia para todas as ocasiões festivas. Seria agarrado pela
cabeça, obrigado a curvar-se, enquanto os outros lhe dariam toques nas costas
com os cotovelos, ao mesmo tempo que cantariam, “ramalho, ramalho, ramalho és
tu, vai chamar ramalho ao olho do cu”. Teve bom senso, no primeiro andar do Stonehenge colegial não era aconselhável enfrentar a rapaziada! A vítima seguinte chamava-se Pequito. Quando se preparava para ditar o
sumário foi envolvido por um coro de gritos estridentes, saídos de carteiras com os tampos levantados.
Acabou por acusar o único aluno interessado em aprender francês, e cuja
intenção foi mesmo ir buscar o livro às entranhas da carteira: o 69, “o número
mais vergonhoso do Colégio Militar”, segundo dizia o 125, o Horrível! Caso não
provasse a sua inocência, arriscava-se a descer uns pontinhos na “Escala de
Comportamentos”, uma modernice introduzida pela revolução, que tinha
substituído a “obsoleta” pena de detenção de fim-de-semana, mas cuja duração foi
curta porque insistiam em deixar os pioneses ao alcance dos meninos, fazendo
apelo ao seu sentido democrático, o que levou a que o Peidão, o 191, o Zacarias, 666, o Gordini, 601, o Coiote, 95, o Peixinho, 591, e outros bons rapazes,
passassem da red line para o verde esperança, enquanto o exemplar 69, que mantinha os braços à altura dos ombros
durante todas as inúmeras marchas diárias, mesmo levando biqueiros consecutivos
no cu, e foi dos raros que levaram para casa todas as medalhas
disponíveis, estava sempre com o pionés no zero, e o tenente Cuequinha à beira
de um ataque de nervos!
Noutro canto do colégio o professor Grijó, que já há muito tempo tinha
estacionado o Volvo 130 azul junto ao
pavilhão de Desenho e Trabalhos Manuais, dava por encerrada a oral de Química:
- Moçoo, sabes andar de bicicleta? – Perguntou, ajeitando com a mão o
cabelo amarelado.
- Sei, - respondeu o Peida-Gorda, 668, já antevendo os oito valores.
- Então vais levar uma bicicleta – disse, com a voz rouca que o
caracterizava, e continuou. – Ó moço, tu não tens memória, tu tens uma vaga
ideia.
Mas muito iria acontecer antes de passarem a ser, para todo o sempre, os
“Cavaleiros da Luz”. Como de costume as armas foram distribuídas na véspera, e
cada um levou a sua para a camarata. À noite havia combates corpo a corpo com
baioneta, Mannlichers a fazer a vez de
espadas e almofadas transformadas em escudos. Brincava-se à séria, com gosto,
nunca ninguém se magoou, mas se alguma coisa acontecesse havia sempre a
Enferma e a eterna aspirina de prevenção. À noite houve “Pinturas”, e muitos
nem dormiram com a emoção. Não havia tempo nem para traumas, nem para
esgotamentos. O auge das comemorações deu-se quando os graduados se aproximaram dos
“ratas”, o equivalente aos noviços nos conventos e, sacando-lhes para fora as
baionetas, tocaram alternadamente nos ombros, ao mesmo tempo que diziam,
segundo as fontes oficiais, "armo-te cavaleiro para que, com este sabre,
sejas sempre vencedor e nunca vencido", mas que neste ano de 71 fora um
pouco alterado por alguns graduados: “armo-te cavaleiro, puto e paneleiro”!
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