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315 estórias

Monday, January 21, 2008

Cosas Nostras





                         Camarada Choco
                                          Aventura 54


Quando o Choco entrou na Escola para Reabilitação de Desaparafusados ninguém queria acreditar no que estava a ver. O herói do cinema mudo barulhento trazia um “olho à Belenenses”, digno dos melhores filmes do John Wayne (João Vinho). Teria sido um atentado dos Aparafusados? Não! Fora o presente matinal do papá por ele ter urinado na cama e encharcado o “colchão de quedas” comprado a um vendedor de material desportivo, depois de ter explicado ao cabeça-de-casal que a oportunidade era única e dava ainda direito a levar, completamente grátis, uma toga pata teses de doutoramento.
-Podes mijar para onde quiseres, menos para o colchão de ginástica onde eu e a tua mãe damos cambalhotas.
Mas o dia do pai do Camarada Choco, candidato à sucessão do Cavaco, tinha começado torto. Quando se preparava para misturar no leite os “croquetes para perros”, comprados no Bazar Chinês, secção de desporto, ouviu um grito da patroa tão alto e estridente, que o obrigou a dar um novo abrunho no filho, que era para não deixar dúvidas quando ao seu papel de chefe daquela típica família da Brandoa.
- Ele não fez nada, - disse a mãe, entrando toda desgrenhada na cozinha e dando um encontrão no cágado, que entrou de cabeça dentro da panela do caldo-verde.
- Fica já dada para a próxima. Mas afinal o que é que tens, ó mulher?
- Ó, ó, gamado, - engasgou-se a dama, apontando para a janela.
Novo sopapo no Choco.
- Ele não fez nada.
- Para a próxima safa-se. Fala decentemente, pareces uma deficiente.
- A “caminheca” não está no sítio. “Abafaram-ta”.
- Não te percebo, é melhor ires limpar o “colchão de quedas”, enquanto eu tomo os flocos para ver se me passam os bicos-de-papagaio.
O choque foi tão violento que o pai do Choco ficou estático durante alguns momentos. Tinham-lhe gamado a “caminheca” carregadinha de ferramentas chinesas. Por sorte o Choco já se tinha ausentado para a Faculdade e estava agora no sótão, o último patamar para a Licenciatura em Tampinhas, nas mãos do Professor Doutor Nélinho que andava com uma crise de Sem-Canudo, dando ordens, umas atrás das outras, à sua Piulia, que estava fresca que nem uma alface, contrariando o estado normal de “mais para lá do que para cá”, e tudo isto devido ao Tino, que a tinha convidado para uma noite de arromba.
O edifício sofrera uma invasão de tampinhas de plástico, que ameaçavam pôr os Clientes na rua por falta de espaço. E para agravar ainda mais o reino da Madrinha, o Fecais, uma espécie de “canudado” mentecapto, assessorado pelo maior monga Aparafusado da Brandoa, o Vóscar, queriam a todo o custo tomar o poder, que uma vez já tinha sido deles, para assim puderem passar mais um cheque avultado a um amigo, como o tinham feito no passado, e todos juntos passarem novamente umas belas férias nas Ilhas do Seixal, e do dinheiro nem rasto, nem responsabilidade, só prescrição. Mas desta vez tinham pela frente o Camarada Choco, o maior, o melhor. Mas o mal não era só na Venteira. Por esse país fora ter um Desaparafusado tinha sido sinal de emprego garantido e propriedade vitalícia. Há muitos anos, muitos longos anos, lá para os lados da Portela, havia um “proprietário” que não largava o tacho, desde que montara a Quinta para Desaparafusados. As leis da República Democrática ficavam à porta do seu castelo, preparou-se muito bem para ficar até morrer, as eleições seguiam os cânones africanos, os mandatos eram ilimitados, e o mito dizia sempre aos votantes que “após ele seria o dilúvio”. O crime era mais que perfeito. Mas havia mais! Como o filho partia tudo em casa, recambiou-o para o “seu” castelo, com direito a todas as mordomias, escondidinho lá no cantinho duma das vivendas, longe dos olhares indiscretos. Enquanto que os filhos dos camponeses só tinham direito a quinze dias de férias, assim diziam as regras, a permanência do seu monga era vitalícia. E ninguém ousava desafiar o rei, porque sua majestade tinha bons contactos no Poder da República, e a República incentivava estes tiranetes, porque eles ofereciam-lhe anualmente a “Festa das Vaidades”, com governantes, televisões e mongas amestrados. Mas voltemos ao desafio Fecais&Vóscar versus Camarada Choco.
- Eu quero um emprego para a minha esposa iletrada, mas ela só aceita ser Doutora Coordenadora Sem Canudo., - gritou o Fecais, que se intitulava “Gestor”, que só podia ser da “mula russa”, mas que um dia assinara um cheque de dez mil contos, para a entrada de uma cave miserável na Brandoa, que estava a ser vendida por um amigo de confiança, perseguído injustamente pela polícia.
- Apoiado e assinado, - concordou o Vóscar que, ao levantar-se para dar mais força ao cúmplice, desequilibrou-se com o peso do tintól, e caiu ao colo do monga Aparafusado que estava ao lado, que oficialmente era pai duma desaparafusada, e que estava mais para lá do que para cá devido ao excesso de carrascão que emborcara ao almoço, mas que mesmo naquele estado que nem a um monga se aceita, ele conservava o direito ao voto, que podia pôr novamente mo poder a dupla de “assinadores de cheques para mim e para os amigos”.
- E vou dizer mais, - insistiu o gestor da mula-russa. – Como homem-do-carcanhol que já deu provas de incompetência, quero partilhar com V. Exas., - e piscava o olho só aos “Mongas não Mongas”, que infelizmente pareciam ser a maioria, - tenho mais um esquema para tirar dinheiro aos ricos para dar aos meus amigos, os “pobres de espírito”.
E como não tinha argumentos que justificassem o golpe, atacou novamente no alvo mais fácil, as Afilhadas da Tarde.
- As duas senhoras tiveram um aumento de lei desmesurado. Proponho tirar-lhes metade do ordenado, pago pelo Ministério segundo as tabelas oficiais, e guardar a massa no cofre onde tenho o dinheiro que ganhei com a “entrada”. Com estas duas metades fica garantido o tacho para a minha mulher.
- Apoiado, - interveio de novo o Vóscar pondo-se de pé e tombando para o outro lado, onde dormia profundamente outro “Monga não Monga”, cuja mulher tinha como incumbência levantar-lhe o braço na altura de votar.
A reunião foi interrompida pelos gritos raivosos da mãe da Zulmira Destravada, uma cliente muito antiga, que se tinha sentido ultrajada quando a Doutora Sem Canudo lhe lembrara que tinha em atraso vários meses de estadia no lar “O Saco da Madrinha”.
- O ministério não específica no subsídio para qual de nós é que vai o carcanhol, - dizia indignada a queixosa. E eu compro o tabaco com que dinheiro? A senhora desenrasque-se, corte no ordenado das suas Afilhadas Da Tarde como diz, e muito bem, o Fecais. Eu vou votar nele porque se ganhar vai distribuir cheques pelo pessoal.
- Apoiado, - gritou o Vóscar, caindo para a frente e arremessando violentamente o papá da Violeta de encontro à fila seguinte, criando um efeito dominó sobre os bebedolas, que só pararam quando já não havia mais votantes naquele sentido.
- Ela em casa diz “mãe dá-me uma carcaça que eu estou cheia de traça”, - jurava a mãe à Dona Gilete.
- Aqui é muda, - contrariava a menina de meia-idade responsável pela tentativa de reabilitação da deficiente.
Eram os chamados “Milagres Caseiros” que faziam com que os Clientes fossem Desaparafusados na Escola e Aparafusados em casa. Estaríamos perante uma fuga ao fisco? Cidadãos que passavam por aquilo que não eram, para que os progenitores tivessem benefícios fiscais, principalmente na compra de automóveis, onde eles não punham os pés, para não sujarem? Ou então a Desaparafusada era a Dona Gilete que não sabia línguas e por isso a moça mantinha-se em greve oral vitalícia?
- Em casa a minha menina pede, em francês, para ir arriar o cagalhão, - informava com certeza absoluta, e intrometendo-se, como era seu hábito, o senhor Baldinho, um Pai Sem Canudo com a mania que estava inscrito na Ordem, revirando os olhos mais rapidamente que o rebento. – Portanto, exijo falar imediatamente com uma Coordenadora ou parto isto tudo…faço queixa à ASAE…telefono para os CTT…faço qualquer coisa ruim. A mim ninguém me diz que a minha destravada mija pelas pernas abaixo e precisa de fraldas, porque mesmo que eu nunca lhe tenha feito controle dos esfíncteres, porque dava muito trabalho e teria de abdicar das cervejolas, ela despeja para onde está virada. Ouviram? É uma ordem.
Num canto de Lisboa, bem longe daquela confusão da Venteira, o Rematador era avaliado na “performance vocal” por uma Doutora cujo canudo era desconhecido, de um Centro que todos diziam ser um “Modelo” e que para isso necessitava de pôr a andar dali para fora, e para bem longe, os mongas que “davam muito trabalho”, ficando somente os candidatos de “sucesso garantido”. Tinham a mesma política que os colégios privados, ou seja, “fora com os destravados xungosos, só queremos os intelectuais”.
- Vou aplicar-lhe um teste para medir a quantidade de palavras que tem na garganta, - explicava aos técnicos que tinham tido o azar de ir à consulta com o Rematador, e cuja especialidade não era a da voz.
Assim não haveria testemunhas do embuste. A aplicação do Protocolo foi tão rápida, que nem a avaliadora percebia as perguntas que fazia, apesar de ser obrigatório que o Desaparafusado desse a resposta correcta, para assim poder pontuar e subir na vida.
- Imagina que este porco cor-de-rosa é branco. Onde é que ele está? – Foi a apoteose final.
O Rematador olhava para o tecto, com o “imagina” dava sinais de convulsão iminente, acerca das cores a cara revelada ser analfabeto, e quanto à posição limitava-se a olhar para o tecto. Quanto à avaliadora, apresentava um cabelo mais sebento que o do avaliado, e nem se dignava a olhar para o monga, tal era o frete com que estava ali. A única satisfação é que este ficava já aviado e só voltaria daqui a um ano, caso não morresse. Quanto a ela escreveria na agenda “missão cumprida”. O teste acabou tão rápido como tinha começado e as conclusões revelaram-se delirantes:
- Um breve olhar pelos gatafunhos que eu fiz nesta folha revelam-me que o monga deverá ter um Q.I. de 4 e está a desenvolver uma gaguez!
Assunto encerrado, regresso à nossa querida casinha. A terapeuta Bélinha, a verdadeira técnica, foi informada do incidente com a sebosa e limitou-se a responder com desprezo:
- Gaguez?! Mais o miúdo ainda nem começou a falar!
Estávamos a anos luz daquele “Centro Modelo” que se antecipava aos acontecimentos. Em frente destas cabeças “iluminadas” qualquer pai que baixasse os calções e mostrasse os tomates arriscava-se a que lhe dissessem que iria ter um filho coxo.

Sunday, January 13, 2008

O Fugitivo

                          Camarada Choco


                                            Aventura 53


O dia do Juízo Final chegava solarengo, toda a Cooperativa estava em efervescência. O “Dia do Faz-de-Conta”, comemorado de Norte a Sul do país, mais conhecido como a “Festa do Natal”, estava programado para arrancar às 14H00 e representava o culminar de mais um ano civil de Reeducação, uma espécie de “Balanço Pedagógico”, para o qual todos tinham sido obrigados a participar. Davam-se os últimos retoques nos mongas, o Vira-Bicos, mais uma vez, olhava para os “números” dos outros como uma perda de tempo, querendo manter-se no top daqueles que conseguiam pôr uma plateia em sono profundo trinta segundos depois de chegar ao palco, e os “voluntariamente obrigados” rezavam para que o dia passasse depressa e que os seus entes queridos não aparecessem para os verem a fazer figuras tristes. O estranho “Espírito de Natal” era o responsável pela paz, podre, que se vivia desde manhã e pelo aparecimento, por geração espontânea, dos representantes do poder local e por outros “artistas” que, afinal, também se preocupavam muito com os Desaparafusados, principalmente no dia de cada mês em que pingavam nas suas contas os eurozitos para os “incluir” na casa dos outros.
Duas horas antes as carrinhas dirigiram-se, carregadinhas de “artistas”, sinal de que cada vez eram mais, tudo graças à tecnologia e aos remédios milagrosos que ousavam contrariar a Natureza, e torná-los, mais ano menos ano, numa classe maioritária e esclavagista, para o Cine-Teatro da Amadora. Os Aparafusados tinham de dar os últimos retoques e não os podiam largar, por isso ia tudo ao molho, e já sem Fé em Deus, para o último ensaio, dos que iam para o palco e dos que ficavam na assistência. Com um pouco de sorte metade adormeceria e acabariam por não chatearem. Afinal de contas, a festa não era para eles, tudo não passava de Aparafusados a fazerem figuras tristes para outros Aparafusados, tendo à mistura um ou outro Desaparafusado domesticado, para fazer género.
- Onde está o Fadista? – Perguntou de repente a Pirosa acordando com violência as colegas, que tinham adormecido com a seca que a Stora lhes dera.
- Eu vi-o hoje de manhã, - respondeu a Dona Piúlia, revelando a eficácia dos Tegretóis que andava a tomar, ao mesmo tempo que punha uma mão sofredora na barriga. – Eu juro que em 2008 vou pôr um ponto final nas “baixas”.
- Cruzei-me com ele ontem a caminho do “Bar Saco Azul”, - informou o Castanheira ao mesmo tempo que tentava ligar ao Primo do Choco, que tinha ido com o Porres aos Psicotécnicos obrigatórios para motoristas destravados.
O Fadista não constava na plateia, não estava a ocupar nenhum dos cagadoros da casa de espectáculos e no balcão só estavam os técnicos camarários com ares de mongas. O mais antigo e resistente Cliente (o nome agora politicamente correcto para mencionar “monga”, que pelo andar da carruagem futuramente talvez fosse substituído por “engenheiro”) , que ameaçava chegar aos 100 anos, a derreter-nos o dinheiro que tão esforçadamente descontávamos para os impostos, e enterrar-nos a todos pelo caminho, não constava na sala e deveria constar porque se esperavam os pais a qualquer momento e não era lá muito correcto informá-los de que se tinha ausentado para parte incerta. A comunidade de Aparafusados entrou toda em Alerta Vermelho, toda (?!), toda não, o irredutível Vira-Bicos estava mais preocupado com o seu fato de Undertaken do que com o fugitivo. Iniciou-se uma busca. Onde é que se teria metido o monga pitosga, que nunca largava o rebanho? Porque é que tinha dado o “grito do Ipiranga” antes da chegada dos papás? Revistou-se a Escola de alto a baixo, não fosse ter sido engolido pela praga de tampinhas de plástico que iam lentamente engolindo o espaço reeducativo. Pelo caminho contaram-se histórias de outros desaparecimentos semelhantes, como daquele que também se ausentara duma festa na margem sul e reaparecera dois dias depois na festa familiar de comemoração do seu desaparecimento e da vinda da respectiva indemnização.
- O show must go on, o Mocho não faz cá falta nenhuma. Vai-se à loja chinesa aqui da rua e há lá muitos iguais a ele, - disse o undertaken ensaiando um Ranjamba.
A Carris já estava parada, a Menina Tatrícia e a Dona Pilca tinham sequestrado um autocarro e só o deixavam continuar a viagem se os funcionários telefonassem para os colegas e inspeccionassem os restantes veículos.
- A esta hora já está nas Docas a tomar um copo, - disse a Tareca, a mais empenhada nas buscas.
- Raio do Mocho, tinha o dia todo de amanhã para desaparecer, - resmungou a Menina Tatrícia, enfiando no bucho uma bolinha de Berlim com creme, mantendo assim os níveis de Glicose necessários para a busca.
- Calma, calma, não quero que isto se transforme na anarquia habitual, - gritou o Nélinho, armado numa de “Sem Canudo”.
- Já largaram o Porres, ele tem um faro apurado, que é para compensar o lapso da perna.
- O quê, chumbaste? – Perguntou o Castanheira quando atendeu a chamada do Primo do Choco.
- Disseram-me que não bato bem da bola, acusaram-me de ter a junta da cabeça queimada, só porque lhes disse que andava a transportar cavalos. Eu tenho lá culpa que o Rodrigues me mije a carrinha todos os dias e que a Papoila me trinque os assentos, mesmo sem dentes. Mas o mais incrível é que o nosso colega Porres passou sem uma nódoa. Até apanhou a nota de “muito sensual” na prova do andar.
- Isso foi por causa de ter tido uma “Escola de Condução de Carroças”. Fez muitas amizades, tratou do exame por telefone.
- Bitó, Bitó, - dizia o fugitivo para o senhor Armando do quiosque.
- “Bitó”?!! Não conheço essa revista. Ó Virgínia, vem aqui para ver se percebes o que é que este chinoca quer. Já está aqui à meia-hora colado às revistas “Gina” e encheu-as de perdigotos.
- Bitó, Bitó, - insistia o Mocho.
- Tem cara de tarado, já lhe viste as lentes, parecem fundos de garrafa.
- Achas que é um pedófilo? – Perguntou a esposa do dono do quiosque, aproximando-se do estranho. – Tenta despistá-lo.
- Bitó, Bitó, - gritou alguém de longe, acenando com a mão.
- Outro?! Vem aí outro chinoca, mas parece ser pior, vê como ele tem um andar esquisito. Fecha a loja, senão eles ainda nos comem.
O encontro do Porres e do Mocho significou o retorno à calma de uma instituição à beira de um ataque de caspa. Fechados no quiosque, o senhor Armando e a dona Virgínia ouviam agora um estranho diálogo, que só podia significar uma coisa, o início da Guerra dos Mundos.
- Bitó, Bitó.
- Bitó, Bitó.
- E haviam logo de estar enterrados aqui, com tantas lixeiras…
- Parques, Armando, parques…
- …com tantos parques que tem a Porcalhota.

Tuesday, January 08, 2008

Dentadas à Desgarrada

                         Camarada Choco

                                                                   Aventura 52

Quando entrei na Escola parecia que estava no Líbano. O caos não era o normal, porque os feridos eram diferentes: ao Senhor Pintor faltava-lhe um pedaço da mão, apesar de ele coxear para “pintar a manta”; a Menina Tatrícia andava à procura duma parte da bochecha, não sendo capaz de pronunciar os “r”, e à Doutora Sem Canudo ainda não tinham feito o levantamento dos danos, mas era o suficiente para accionar o seguro e assim ser contemplada com um décimo quinto mês, mordomia esta vedada ao pessoal menor. O teste-surpresa de Filosofia de uma das Trabalhadoras-Estudantes das “Novas Oportunidades”, tinha desaparecido no meio da confusão e ela agora receava aparecer na próxima aula, porque assim tinha de fazê-lo lá e só sabia preencher o cabeçalho. Fora por isso que o Professor lhes dera o enunciado duas semanas antes, para que o sucesso fosse garantido, e a estatística governamental melhorasse. A causadora desta cena apocalíptica, que ferira três e causara insucesso escolar a outro, tinha sido a Maria, uma utente com nome de tia mas descendente da Marreca de Monsanto, colega de profissão da mãe que, pela milésima vez se tinha passado e levara tudo à frente, mesmo o Senhor Pintor, que era dotado de um corpinho que lhe tinha valido um convite, em 1968, para o “Concurso RTP da Canção”, como costumava contar. A Doutora Sem Canudo já estava com a situação controlada e encontrava-se na Sala dos Presentes de Casamentos, Baptizados e Funerais a interrogar a fera.
- Se tu continuas a Desaparafusar expulso-te da minha propriedade…da Escola e vais directamente para a Quinta dos Super-Desaparafusados, - ameaçou, protegendo-se duma das mãos da Maria, que lhe tentava agarrar o lençol…o vestido.
- Não, eu juro que não dou mais dentadas, - suplicava a arguida.
- Ai não dás não, porque se o fizeres vais directamente para a Universidade.
- Dá-me um comprimido dos brancos, - pediu a Fera Amansada.
- Qual comprimido, qual carapuça, - tu tens de te controlar.
- Eu preciso, eu preciso de um comprimido, - avisava a Desaparafusada.
- Não há comprimidos, acabaram, - explicou a Madrinha.
- Há, há, eu hoje fui com a outra à Farmácia, durante a minha aula de Treino Social, que inclui uma passagem da Técnica pelo Cabeleireiro ou pela Loja Chinesa, e vi-a a comprar desses comprimidos, - dizia, já um pouco alterada a Maria, acusando sub-repticiamente a Doutora Sem Canudo de estar a mentir, comportamento este vedado aos Desaparafusados, mas de uso diário pelos Aparafusados.
Era por estas e por outras que a candidatura do Camarada Choco aos destinos da Nação representava uma ruptura com a velha e gasta “Inclusão”. Os Desaparafusados eram a maioria, e por isso o Poder pertencia-lhes por direito próprio. E que não viessem com a esfarrapada desculpa de “Desaparafusado Não Vota porque é Desaparafusado”, porque então teriam de se explicar qual o conteúdo encefálico daquelas santas alminhas que os partidos dos Aparafusados iam muitas vezes buscar ao norte do país em grandes camionetas, com a promessa de uma ida a Fátima e só paravam em Lisboa para aplaudirem um candidato vencedor ou apoiarem uma causa ambiental, revelando-se todas as vezes uns autênticos “vegetais” quando questionados pela Comunicação Social. E se não queriam misturas, então que o país se regionalizasse de vez para haver um exclusivo para Desaparafusados, uma espécie de Cooperativa Gigante. Seria mais barata e muito mais eficaz do que a Desaparafusada Lei da “Rampinha obrigatória em tudo o que é Prédio”, para que de cem em cem anos lá fosse um cágado visitar a prima do décimo andar. Mas há conta disto tudo parasitavam muitos Aparafusados que a única coisa que sabiam fazer era chular. E era um “Grande Basta” que o Camarada Choco vinha prometer.
A Maria sabia que as palavras da Doutora Sem Canudo eram musica para os seus ouvidos e espectáculo para os outros, pois o vigésimo subsídio dependia da sua presença vitalícia ali, com e sem dentadas, e disso a Madrinha não abdicava porque precisava dele como de pão para a boca. Por isso, quando ela voltou as costas presenteou-a com um manguito dos mais elegantes símbolos pictográficos para a comunicação (S.P.C.), pretendendo com isto dizer-lhe, “a mim ninguém me muda”!
Cada uma à sua maneira anda à procura de um rumo para a vida. Aqui estiveram duas criaturas frente a frente, sendo cada uma o espelho da outra, uma Desaparafusada a tentar aparafusar-se e uma Aparafusada completamente desaparafusada. De cada vez que se cruzam têm de encontrar um ponto de estabilidade, que lhes confira o mínimo de convivência pacífica. Sem este olhar mútuo sobre o que cada um produz, o sistema funciona de modo incompleto, tornando-se demasiado redutor. As crises da Maria são sempre um estímulo à melhoria do desempenho profissional da Doutora Sem Canudo, porque uma Desaparafusada que se preze não cede a nenhuma ideia feita, a nenhuma retórica, que leve a dentadura a ficar saciada. Obedece sim a uma tensão, com princípio, meio e fim. E todos têm de esperar pelo fim, tudo o resto é conversa!
P.S.: Já fazem parte desta Campanha as aventuras anteriores:
Nº - 48 - Buffo-Terapia
Programa de Governo – Parágrafo 1 – Fim da Exploração dos Desaparafusados
Nº - 49 - Um Jantar no Farwest
Programa de Governo – Parágrafo 2 – Pôr ordem nos Aparafusados

Saturday, December 22, 2007

Um Jantar no Farwest

                          Camarada Choco
                                           Aventura 51

A festa já ia longa, o Vira-Bicos, o Cabo Pilas e a Psicóloga Loira ocupavam alegremente o piano e davam uma seca monumental aos clientes, cantando “Menina que estás à janela a ver o vizinho a mijar”. De repente entrou pela “Casa de Pasto” um branco em fuga, perseguido por dois pretos em fúria, precipitando os acontecimentos. Recuemos no tempo e deixemos estas típicas cenas de Massamá. Se não fossem estas almas caridosas, o “Gang do Trio Odemira” nunca largaria o piano e teria entrado pela madrugada a dentro a tocar à desgarrada o “Apita o Comboio”, com o Cabo Pilas a fazer de maquinista, da Linha da Caparica. Momentos antes o Virgulino, depois de ter mamado dois “Sumóis de Chouriço”, despejava “Phónixes” e perdigotos sobre os colegas, mostrando que este é que era o seu estado sóbrio. O pior foi quando quis exibir o seu papagaio e não encontrou a entrada da toca.
- Escondam-se debaixo da mesa, - ordenou a Afilhada da Tarde, a mais graduada do grupo, quando um dos pretos resolveu baptizar com uma garrafa de tintól a mona do branco.
- Chamem a Polícia, hou, hou, hou, - disse a Dona Pilca saltando para cima da mesa e começando a dançar uma Polka, com uma banana a fazer de microfone e um cabelo estilo sueca, depois de ter entornado por cima de si, com a emoção, o jarro de sumo de limão.
- Cala-te ò mulher, - gritou a Menina Tatrícia. – Mas isto são lá horas para cantares. Protege-te porque começou uma guerra e eu não quero perder-te. Preciso de ti para mais uma encomenda de 1000 pintos.
A lotação debaixo da mesa era de dez almas, mas devido à luta pela sobrevivência estavam lá trinta, muitas delas avantajadas. No tampo da mesa o Senhor Pintor gritava “agarrem-me senão eu vou-me aos africanos”, mas estava entalado entre várias frangas e não queria perder pitada da criação. A Pirolito aproveitou a ocasião e aplicou o que tinha aprendido na Bufoterapia, ficando o esforço documentado no cantinho de uma fotografia. Assim como entraram, os intrusos saíram, deixando no chão o cliente do INEM, que estava a ser sujeito a um intenso interrogatório do Cabo Pilas:
- Porque é que o senhor escolheu o “Porco Ibérico” como local de actuação? O piano está por conta dos “3 Estarolas Desaparafusados” e eu não pretendo largar-lhes as teclas tão cedo.
Lá fora a confusão no trânsito era caótica. A Fisio Raposinha tinha arrancado a alta velocidade em sentido proibido e por pouco não passara a ferro um agente da autoridade que estava de folga e com os copos. Para agravar a situação a Terapeuta Zézé ameaçava-o com um guarda-chuva chinês, caso ele insistisse em incomodar a colega. O Coronel Tapioca andava desesperado a reunir o rebanho tresmalhado, que tinha arrancado em várias direcções e arriscava-se a passar a noite num dos inúmeros bairros de sonho, que fazem da nossa capital uma típica região africana. As coisas amainaram com a chegada dos Robocops. O Cabo Pilas estava agora no exterior a tentar dar as coordenadas dos fugitivos, usando a longa experiência adquirida no bar do quartel de Queluz a servir penaltys aos oficiais, mas a polícia nem o via, nem o ouvia, porque estava muito escuro ao nível do passeio e as cabeças deles tocavam no topo dos candeeiros. Lá dentro os “3 Estarolas Desaparafusados” estavam agora reduzidos a dois, que insistiam em cantar “Eu vi um Sapo”, dedicado a um colega, mas agora dirigido ao moribundo.
- É para animar, - dizia o Vira-Bicos, dando uma entrada grátis para uma sessão de “Bufoterapia”, que incluía uma refeição de feijoada na véspera, no estabelecimento da Dona Espatinha.
- Agarrem-me que eu vou-me aos negritos, - gritava o Senhor Pintor a tentar impressionar as frangas, que agora se tinham aninhado no seu colo e lhe desestabilizavam o frango.
Lá fora a polícia já tinha um suspeito, um indivíduo fininho com um bigode de três pêlos, e semelhante ao “Topo Giggio”, que insistia em gritar “Phoonix”.
- Deve estar a avisar os blacks, - explicou o chefe. – Levem o lingrinhas para a esquadra.
Quem salvou a situação foi, mais uma vez, a Coronel Tapioca, que explicou ao graduado que o homem só tinha um neurónio e que a culpa era do anúncio da PT, que andava a desestabilizar os Desaparafusados. Debaixo da mesa a Chefe Bélinha desabafava com a Dona Sãozinha, explicando-lhe que, com a sua saída, os Serviços Administrativos estavam à beira do caos.
- Então e a minha sucessora?
- Está sempre estranhamente com a cara colada ao telemóvel.
- Se calhar a miúda está a precisar de óculos?!
- Óculos?!
- Pelo que me conta necessita, no mínimo, de 3 dioptrias e 1 Tegretol.
A pouco e pouco o ambiente foi regressando à normalidade, e as meninas retornaram às cadeiras ao som da “Garagem da Vizinha”, que o duo insistia em cantar, mesmo com os clientes a tapar os ouvidos.
- Preferia que os manos voltassem, a ter que ouvir estes Aparafusados com vozes Desaparafusadas, - queixava-se o Nélinho.
- Kodac, o que é que fazes aqui? – Perguntou a Psicóloga Morena aparecendo por detrás do Cabo pilas, que recuperava da emoção sentado na borda do passeio.
- Se a Doutora Sem Canudo estivesse aqui, eu tinha-a atirado cima dos manos e agora estávamos a comemorar o nosso 25 de Abril, - desabafava o Senhor Pintor.
- Ou então amanhã havia mais dois estagiários na nossa escolinha, - atirou a Pirolito, levantando uma das pernas.
Para a Dona Sãozinha e a Chefe Bélinha a noite já ia alta, pois quando a Coronel Tapioca fez a chamada ao pelotão dos Aparafusados, deu por falta das duas, acabando por descobri-las a ressonarem encostadas uma à outra debaixo da mesa.

Thursday, November 15, 2007

Bufoterapia

                          Camarada Choco
                                          Aventura 50

Os Desaparafusados são “pau para toda a obra”, à conta deles vão aparecendo, por geração espontânea, técnicos para todo o serviço. São os responsáveis por uma nova modalidade de “corrida ao ouro”, que tem o pomposo nome de “Acção de Formação”, onde os responsáveis se apresentam com currículos vertiginosos cheios de “Licenciaturas no Togo”, “Mestrados na Guiné” e muitos diplomas ganhos na farinha “Pensal”. O antigo “Chá Tupperweare” foi agora substítuido pela “acçãozinha de formação”, que vai directa para o papelinho da “experiência profissional”. E tudo isto a pensar na recuperação dos Desaparafusados e na carteira dos Aparafusados. Seguindo a linha desta intelectualidade a funil, a minha pobre escolinha foi assim contemplada como uma novidade, a “Buffo-Terapia”, que permitia aparafusar o pessoal através de sons. Mais felizardos estavam os Aparafusados, pois a acção destinava-se exclusivamente à elite. Mas que sons poderiam sair das pandeiretas, se de muitas das bocas raramente se viam os dentes e os encéfalos estavam forrados de gases? Mas quanto a isto nós, os ilustres Desaparafusados, sabemos muito bem distinguir os Aparafusados que “vestem a camisola” e os que não têm “outro remédio”. E podem tirar todos os cursos que quiserem, que de nós só levarão “buffas”. Mas, voltemos à questão dos sons que fazem milagres. Pus-me a imaginar:
- Bom-dia senhores doutores Aparafusados, eu sou o Mestre Roque Gamanço e estou aqui para vos fazer um desafio, que é aproveitarem o vosso próprio meteorito intestinal para a reabilitação dos Desaparafusados….
- AROOOOOONC – arrotou um formando, abanando as orelhas.
- Santinho, - disse o formador e continuou. – Como já viram, os gases encefálicos também servem.
- Desculpe, mas saiu-me.
- Pum, Pum, - saudou outro, levantando a perna.
- Já estou a ver que compreenderam qual é o lema desta acção de formação: liberta o gás que há em ti!
O ambiente estava pesado, um dos formandos já estava com cara de cu.
- Mas que javardice é esta? – Gritou a Doutora Sem Canudo, interrompendo-me a meditação.
Tinha dado de caras com um vaso xungoso, cheio de lixo e com um pau carunchoso armado em rosa.
- É o Cantinho da Pilca, - explicou a Menina Tatrícia, não se escapando de levar um empurrão da colega de meia idade, que com o desequilíbrio caiu ela aos pés do touro.
- Dona Pilca, que porcaria é esta? Já não me chegavam os candidatos a “Buffo-Terapeutas” do primeiro andar, e agora é isto? Ainda vem aí uma inspecção e passo a ter três queixosos na fila da porta: a Pirolito, o Cabo Pilas e a Inspectora. Eu vou recolher os donativos do café, atender os queixinhas e quando voltar quero aqui um jardim suspenso.
Cinco minutos depois ninguém conseguía passar para o refeitório, pois a Dona Pilca tinha juntado todos os vasos da Venteira e erguera, com raiva, a Floresta Mágica Mongólica. Pelo caminho tinha dado um chuto na velha que insistia em pôr os caniches a cagar na floreira da entrada.
- Agarrem a Lolita, - gritou a Kalélé.
Mas foi tarde de mais. A Lolita embrenhou-se no matagal e não saiu pelo lado do refeitório.
- Não me digas que trouxeste uma planta carnívora, - disse a Pirosa.
- Mais uma dessas e deito fogo a isto tudo, - berrou a florista, ficando de imediato com um bigodão, sinal de que a tampa ia saltar a qualquer momento.
Mas havia ainda mais um problema grave: uma “Manifestação de Tísicos”, liderada pela padeira Tareca, que ameaçava partir a loiça toda se não lhe dessem a conhecer a já famosa “Lista dos Bichados”, gamada pelo poder intermédio, mas que conseguira deixar a culpa no colo do Trio Odemira dos Serviços Administrativos, a Sãozinha Júnior, o Pato Donald e a Madame Patológica. Só acalmou quando começaram a distribuir as fotos íntimas do pessoal, que iriam levantar a ponta do véu da “verdade da mentira”.
- Aiiiiiiiii, - gritou a Terapeuta Zézé ao confirmar que o pulmão direito estava meio-cheio de tinto branco da Luz.
- Alto e param os pincéis, - ordenou o senhor Pintor, - eu quero que me digam se morro com o pincel rijo, como sempre desejei, ou que a brocha vai cair de caruncho por causa deste bicho que anda aí à solta?
O caos desta típica aldeia gaulesa da Venteira chegara cedo. Seria um sinal do fim do mundo?

Friday, October 26, 2007

O Construtor de Sonho

                          Camarada Choco
                                           Aventura 49

Há um velho ditado no Oeste da Brandoa que diz: “ Se te dizem que esta obra foi feita por um Monga, desconfia. Eles geralmente pouco fazem!”
E é a pura verdade! Todos sabem disto, mas negam-no se lhes perguntarem, apesar de andarem sempre a dizer aos miúdos e graúdos que é feio mentir. Assim, se olharmos para um quadro numa exposição camarária de “pessoal diferente”, noventa por cento da obra foi feita pelo técnico responsável, tendo-se limitado o autor oficial a uma simples pincelada, que estragou tudo o que já estava feito, obrigando o Aparafusado a fazer umas horas extraordinárias, de borla, para repor a legalidade da obra. Se recebermos um postal de Natal assinado por um desaparafusado desconfie-se, porque noventa e cinco por cento do presépio foi feito pela auxiliar, pois geralmente a responsável pela sala estar sempre algures a fazer as eternas, e já famosas, avaliações, que lhe modificam sempre o formato do penteado. O desaparafusado, como diz a tradição, é sempre o responsável pelo único olho com que o Menino geralmente aparece na inspecção final, obrigando a Comissão da Perfeição a colocar-lhe o berlinde em falta, pois naquele espaço são proibidos objectos imperfeitos, porque ninguém compra. Passa-se o mesmo com os Pirilampos: as velhas analisam primeiro o bicho antes de largarem a moedinha! Muitas das vezes regressam no dia seguinte para o trocarem por outro mais “perfeitinho”. E tudo isto em nome dos Desaparafusados, que tanto amam. E sabonetes “made in monga” com imagens de santinhos? Eles nem entram na sala de produção, não vá deixarem escapar pedaços de baba, que transformariam o cheiro a “Rosinha Manhosa” em “Sebo de Mongólia”. Mas não é de “acessórios” que esta história irá tratar, mas sim de “tijolos”. E como sempre em tudo o que está relacionado com este Clube das Mil e Uma Noites, tem o dedo da Madrinha. Decidiu um dia que os técnicos tinham direito à sua própria vocação atirando, mal entrou na propriedade, com o Nélinho para o sótão, de encontro ao “cimento e ao chumbo”.
- Quero vinte mil carcaças de betão para amanhã, – ordenou.
- E ajudantes?
- Podes ir ao rés-do-chão requisitar colegas e traz também uns desaparafusados para fazerem número. Aliás, o projecto foi a pensar neles, como todos os que me sustentam.
O Nélinho fez uma entrada de Açor nos gabinetes das colegas, trazendo de arrasto a Terapeuta Zézé e a Fisio Raposinha, pondo-as no ninho e obrigando-as a meter as mãos na massa.
- Só vos devolvo os “Cartões de Ponto” quando fizerem o servicinho, – gritou, tirando a camisa.
- Mas eu tenho Clientes à minha espera, – disse timidamente, levantando um dedo, a Raposinha.
- Caluda, quem manda neste sótão sou eu, o Doutor Nélinho, Sobrinho-Neto da Doutora Sem Canudo. Vou até ao bar tomar o pequeno-almoço e aproveito para ficar para o almoço. Quando regressar lá para o fim da tarde, quero cinco paletes empacotadas. Lembrem-se que quem vos paga os ordenados e os subsídios da outra, – e apontou para cima, mudando rapidamente o indicador para baixo, quando se apercebeu que estava no sótão, – são estes tijolos de betão com prazo de acabamento. Dos Mongas não esperem receber nada, pois eles só são úteis para a isenção do IA e do IVA, e nem conduzir podem.
- Estou com falta de ar, - queixou-se a Terapeuta Zézé, tentando meter baixa médica.
- Eu já lhe curo a emoção. Eu só tirei a camisa para vestir a bata. Estava a pensar em paródia? Comigo “conhaque é conhaque, trabalho é trabalho”, mesmo que aqui só beba conhaque, ouviu? Vá, siga já para os tijolos!
A “Dança das Cadeiras” é uma constante neste estabelecimento de reeducação, e quem hoje está sentado amanhã poderá não ter assento. Enfim, modernísses!

Friday, October 05, 2007

O pêssego da Brândoa

                          Camarada Choco
                                           Aventura 48
 
O produto secreto contra a sarna usado uns anos antes pela Protecção Civil, e que tinha deixado marcas na parede, estava agora a provocar os efeitos secundários, escondidos deliberadamente por quem pretendia tomar o poder: uma praga de estagiárias! E a situação era tão grave que elas ameaçavam ultrapassar o número de Clientes (nome pomposo atribuído agora aos Mongas). A cada dia havia uma novidade, elas apareciam por Geração Espontânea, eram de todas as formas e feitios, altas, baixas, gordas, magras, velhas, brancas, pretas, coxas, grávidas e……mongas! E tudo acontecera desde o momento em que a Doutora Sem-Canudo se auto-nomeara “Directora Geral”, com o correspondente auto-acréscimo de ordenado. E tudo dentro da Lei! As finanças estavam difíceis, metade do orçamento ia para a Folha de Pagamentos da Madrinha, que fazia colecção de cargos, como o major de Gondomar, e a outra parte esgotava-se nos almoços obrigatórios nos dias das reuniões às 10H00, na rua ao lado, diários, e que incluíam também o consumo de gasolina e gasóleo, caso se utilizasse o autocarro com a plataforma. Se a reunião fosse com as doutoras sem canudo do costume, a concorrência obrigava ao uso do “Machibombo com Elevador”, para que a Auto-Directora Sem Canudo da Venteira humilhasse as adversárias no momento em que lhes aparecia vinda do céu, tal qual um anjo. Mas um reinado destes tinha custos, muitos custos, e como a ambição era grande, e o mealheiro estava vazio, muito vazio, tinha-se de cortar nos bolsos dos outros. Daí esta invasão de estagiárias, de borla, escravizadas e que não tinham direito a reivindicações. A verdadeira história começa aqui!
A Beta do Samecas estava à beira do suicídio, o pau com que ele passara em direcção à casa de banho não tinha tido a influência das suas carícias. Havia monga no terreno e ela jurava fazer justiça com as próprias mãos, com a que funcionava e com a que estava gripada desde o nascimento. O Samecas estava em “estado de unicórnio” permanente, com o chifre a meio do corpo, e a cara dava a impressão de estar perigosamente perto da sensação de não ser aquele que acreditara ser. E tudo isto causado pela nova estagiária que resolvera sentar-se ao seu colo, contra todos os princípios que faziam dela uma aparafusada, dando-lhe de enfiada um ósculo violento no pescoço, arriscando-se a engolir um dos seus maiores quisto, o conhecido “Pêssego da Brandoa”. Estaria ela a usar novos métodos pedagógicos de reabilitação de desaparafusados ou seria ela própria uma estagiária monga, descoberta exclusiva da Doutora Sem Canudo, única directora com queda para este tipo de fenómenos do Entroncamento? Quando tentaram contactar com a responsável estava com um problema agudo entre as mãos: a Afilhada, agora com o nome próprio de Fidélia, recusava-se a trazer uma das carrinhas da colónia, alegando não ser a sua e ameaçando vir de burro. E nesse preciso momento a Bélinha, a irmã do Choco, estava congelada, em estado de Santinha, sinal de que a tradição epiléptica da família se mantinha. O brasão do Conde Chocalheiro, ilustre monga do século XVII, continuava a dirigir os destinos daquela ilustre família. À tarde a mães do Samecas reclamou as dentadas que o filho levava no lombo. Foi informada de que a responsável era a Belucha, a sua eterna noiva, agora possessa de ciúmes, pois o “Pêssego da Brandoa” estava-lhe destinado há muito, prometido para a Noite de Núpcias, e não seria agora uma estrangeira, e ainda por cima Aparafusada, que lhe iria roubar o seu “fillet mignon”. Por isso tinha decidido marcá-lo, da mesma maneira que ao gado, para acabar de vez com a concorrência.

Monday, June 04, 2007

O Pirilampo Mágico


                         Camarada Choco
                                         Aventura 47

A notícia de que o Camarada Choco tinha atingido o topo da carreira de desaparafusado não fora novidade. As suas cuecas tinham-se metamorfoseado em pergaminhos, provas inequívocas de uma vida de sucesso. “Topo” significava que o Camarada Choco era o exemplo de uma vida dedicada à “diferença” e aos desprotegidos, ou seja, uma espécie de Robin Hood, que tirava aos ricos para encher a mochila. A consagração devia-se à importante intervenção do neurologista, que há meses andava a brincar com o conteúdo da tola do nosso herói, obrigando-o a ingerir todos os “drunfos” do mercado, principalmente aqueles que davam direito a viagens à volta do mundo. Enquanto o químico só dava para um fim-de-semana no Algarve para duas pessoas, o Choco passou meses a dar de caras com a Santinha, toda nua, querendo isto significar um estado de congelamento semelhante a um pacote de ervilhas do Continente, em promoção, tirado da arca dos faisões, protegidos, que o Pintor descobrira a voar por cima do espaço aéreo duma das reservas de caça do Alentejo. Demorava sempre meia-hora até regressar à temperatura ambiente!
Assim, quando os bilhetes do cruzeiro no majestoso paquete “O Elefante Branco” começaram a cair no Centro de Saúde, o senhor doutor chamou a família do Camarada Choco de urgência, facto que a mãe, mesmo desaparafusada, achou estranho, porque estava há vários meses a tentar encontrar o dito senhor, mas o raio do homem passava a vida em congressos nas ilhas Fidji. Ainda a progenitora mal tinha passado a porta do consultório e já a receita de dois contentores de “Tegretol GT 5500 Turbo” estavam nas suas mãos. Era desta que o Choco iria aparafusar de vez!
O “drunfo” do tamanho de um melão demorou a cruzar o esófago, mas graças a um piaçaba milagroso chegou ao seu destino. O primeiro sinal foram umas argolas de fumo que começaram a sair das orelhas. O segundo foi durante a primeira micção, em que o nosso herói levantou a perna e encharcou o cágado, que se preparava para ver a “Floribela”. O terceiro veio sobre a forma de um flato que apagou todas as luzes da casa. Aqui o Chefe da Família reagiu, pondo a mão no cinto de cabedal chinês e ameaçando fazer uma tatuagem na bilha do Camarada Choco. O quarto correspondeu a um arroto monumental, tipo trovoada, que rebentou com a energia do quarteirão, impossibilitando o chefe de família de ver o beijo carinhoso entre a Floribela e o Guarda Ricardo. A fúria do senhor Firmino foi tal que, com a pressa de tirar o cinto, deixou as calças, as cuecas e o conteúdo destas no sofá e despejou a energia em cima de um “abajour” chinês, pois confundiu a luz que o Choco emanava no topo da marmita, com o objecto mais caro da habitação, a Santa-Meteorológica, que mudava de cor conforme o clima. Quando as luzes regressaram à casa mais famosa da Venteira, já o Choco tinha desaparecido entre os lençóis, de cor de cartão, e piava agora baixinho.
- Respeitinho é muito bonito, - disse orgulhoso o Chefe Silva. – Lá por ser adulto, não faz o que quer.
O Jardel foi o único que compreendeu o dono, respondendo com um aceno da cauda. Entretanto, o fumo que se foi acumulando nas entranhas da cama do nosso herói, já colara os lençóis ao tecto.
Eram vinte e quatro horas quando as badaladas da torre da igreja coincidiram com o ladrar do relógio de cuco que o pai do Choco tinha comprado nesse dia, em promoção, na loja do senhor Koçá Ky Buda. Nem mais um segundo passou quando o efeito do Tegretol GT 5500 Turbo atingiu a fase do “redline”, ou seja, o Camarada Choco iniciou a ópera pimba ,“O Rebarbado de Sevilha”, com as cordas vocais ao máximo e o escape em “ponto-de-rebuçado”. Tudo vibrava, a Santa-Meteorológica não conseguia fixar a cor, o canídeo Jardel iniciou um uivo digno dos melhores lobos da Brandoa, a mana Bélinha vestiu a cara-de-cu que costumava levar para as colónias, e a mãe (por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher, e neste caso uns genes especiais) telefonou assustada para os tele-táxis da Guarda. Quanto ao chefe máximo da tribo, começou-se a notar uma comichão anormal do bigode, que alastrou para uma explosão de raiva que atacou o Choco com o cinturão de cabedal da Indonésia, só parando quando o nosso herói adormeceu à custa de tanta “bordoada”.
- Modernices, são só modernices. O doutor enche-me o miúdo de remédios, mas ele só adormece à maneira antiga, - disse orgulhoso, recolhendo aos aposentos.
Só alguns dias depois e vários concertos interrompidos, é que o doutor se apercebeu de que a dose destinada a parar com as “travadinhas” cerebrais , punha o nosso herói fresco que nem uma alface sem ter necessidade de passar pelas brasas. E isso o Firmino não tolerava!

Monday, April 23, 2007

Silêncio, ia-se cantar o fado !


                           Camarada Choco
                                          Aventura 46

- Mil?! O Salão Nobre dos Bombeiros só dá para mil ?! – Perguntou uma das afilhadas da tarde, a candidata número um ao lugar da Madrinha, a Afilhada Fotocópia.
- Chega ao décimo otário e as inscrições acabam – atirou a pequena, mas atenta, Lolita e afastou-se em passos em rápido.
- A única coisa que sei é que saíram da sala 15 pintos e 8 galinhas, e dinheiro nem vê-lo, - lamentou-se a Dona Pilca, atirando mais uma vez a agulha para cima de uma pobre galinha, feita com os restos das últimas cuecas do Choco.
- Mas eu estou aqui a falar de CULTURA e você a debitar assuntos do galinheiro. Mil lugares é pouco para a surpresa que estou a preparar para a Madrinha. E ainda por cima com caldo verde, chouriço do “Lidl”, Pão Torrado dos chineses e acima de tudo Couve da Brandoa, para dar um ar chique à festa. Vai ser o dia da minha consagração aos olhos do Poder, como angariadora número um para a nova mama….perdão…..a nova Unidade Hoteleira. A Nova Geração nunca me ultrapassará !
- Galinha, a Galinha, se chega à Madrinha, - disparou a Lolita, desaparecendo na sombra.
- Já estou a ouvir os sons das guitarras a ecoarem pelo Pavilhão Atlântico, o Caldo Verde a excitar as línguas dos ouvintes e as Couves da Brandoa a forrar as almas dos artistas.
- Gases, isso são é gases, - disse a Lolita, esfregando as mãos.
- Sou ou não sou um génio, Pilca ?
- Quinze pintos e dez galinhas, e a massa, nem vê-la ! – Queixou-se a senhora de meia idade, remexendo no caixote de lixo, não fosse algum garnizé ter fugido.
- Ó mulher, mas estou eu aqui a falar de Cultura e a senhora só se preocupa com ninharias ?!
- É melhor uma galinha na mão, do que dois fadistas a voar ! – Cuspiu a Lolita.
Mas o pensamento da Afilhada Fotocópia já estava noutra dimensão, ao nível duma alucinação visual, em que se via a agradecer à multidão, que enchia o Pavilhão Atlântico. Mas, numa olhadela mais atenta, todos tinham a cara do Cabo Pilas, o único otário que tinha pago o bilhete. A Afilhada Fotocópia corria então em direcção à caixa das esmolas e deparava-se com o dinheiro do militar, em escudos. E quando os olhos se viravam de novo para a assistência, os Pilas esfumavam-se, e ficava somente o original. Entrava então no palco o Pitrongas, acompanhado pelo Choco, com uma guitarra chinesa sem cordas, e começava a festa:
- Eu já fui ao…..e ele deu-me…..foram duas e três, todas duma vez.
Na plateia era servido o Caldo Verde, vindo directamente das entranhas do Monga mais chinês da Escola, tal como aconteceu na aventura número vinte e um. No exterior, junto ao povo, a Dona Pilca e a Menina Tatrícia vendiam alegremente as suas soberbas Galinhas e os seus Pintos atrevidos, tendo os bolsos a abarrotarem de euros, tendo junto a elas a Madrinha e dar-lhes beijinhos e a coçar-lhes as costas.

- NÃOOOOOOOOOOOOOOOOOO……….., isto não me pode estar a acontecer. Uma Doutora com Canudo não pode ser ultrapassada por meia dúzia de Pintos e umas tantas Galinhas?! Juro pela vida dos mongas que os fados vão ser cantados.

(Entretanto, algures numa habitação, uma utente acabava de terminar o curso e rumava agora para uma vida melhor.)

- São gases, - diagnosticou a Lolita , a única que conservava ainda o juízo que Deus lhe dera.

Tudo foi interrompido pela Doutora Sem Canudo que avisava pela chegada da televisão e pelo início das filmagens:
- Quero todos os trabalhos dos nossos queridos desaparafusados na Sala de Visita da minha Afilhada da Tarde, a número dois.
- Mas de momento só estão disponíveis as Galinhas e os Pintos da Dona Pilca e da Menina Tatrícia, - informou a Afilhada Fotocópia.
- É única coisa que há. O pessoal aparafusado é pouco e os desaparafusados estão todos reformados desde que nasceram - informou a Lolita.
- As senhoras da capoeira vão todas para a Sala das Porcas dar milho aos pombos e no local das filmagens só permanece o pessoal do canudo, - ordenou a Dra. Sem Canudo, compondo a mesa e iniciando o discurso. Todas estas aves foram feitas pelos desaparafusados, com o acompanhamento pedagógico das minhas queridas afilhadas…perdão…especializadas. Como podem ver, a criação é toda diferente, as Galinhas estão mais viradas para a Didáctica e os Pintos gostam muito de Pedagogia!

Wednesday, March 21, 2007

No Reino do Leão





                         Camarada Choco
                                          Aventura 45
 

O convite chegou via fax, como já era habitual, mas quis o destino que  não fosse parar ao caixote do lixo, como era habitual. Mesmo vindo da Federação dos Pseudo-Deficientes (F.P.D.), os chamados “Meninos Desaparafusados da Linha”, que enchiam as escolas dos aparafusados, mas que muitas vezes eram recambiados para as cooperativas, para assim não chatearem os senhores professores da primeira classe do comboio do Ensino. E era com parte destes que o Estado se representava nas olimpíadas, abrindo os noticiários com a enchente de medalhas de ouro.
Mas desta vez a resposta foi “SIM”! De peito, ou costas erguidas, consoante o modelo do atleta, iríamos defrontar o Leão no seu Estádio. A Seleção começou de imediato a preparar-se para o embate. As Novas Tecnologias do Marketing foram postas em ação, tendo em vista arrasar com a concorrência. De “Ping Pong” só um entendia, o Brazuca, a nova aquisição da Cooperativa, descoberto numa obra, que tinha substituído a escola. E como era clandestino, talvez fazendo-se passar por desaparafusado conseguisse o tal visto milagroso. Era isso o que a simpática mãe esperava, para depois o tirar rapidamente dali, antes que a peste o contagiasse. O convite dos pseudo - clubes de desaparafusados, muitos dos quais mais aparafusados dos que os pseudo - aparafusados das escolas oficiais, às genuínas escolas de genuínos desaparafusados servia só para a estatística, porque em vez de meia dúzia de gatos pingados a fingir de deficientes, contariam com uma centena de desaparafusados de todos os calibres, daqueles que nenhuma entidade oficial convida, excepto se houver eleições. A nossa missão era vencer e convencer, mostrar que éramos os “Tubarões do Seixo”, nome mítico que levava sempre o “i” de cada vez que saiamos para o exterior. A tática tinha como elemento principal o Cascão, um superdesaparafusado que passava a maior parte dos dias a falar com as moscas. A chegada foi apoteótica, a cada “Tubarão do Seixo” aplicou-se uma camisola da loja dos trezentos com as palavras indicativas do local de origem: Venteira! Os primeiros leões foram de imediato informados pelo Stor Pobre de que iriam ser cilindrados e ao campeão de Portugal aconselhou-se a mudar de profissão. O Tubarão tinha vindo massacrar o Leão. Para o aquecimento foi destacado o Cascão, que começou de imediato a tentar acertar nas moscas com a raquete. Não precisava de bola ! O Brazuca foi mandado sentar, não precisava de aquecer, os anos de treino em casa com os primos eram suficientes. A prestação do superdesaparafusado provocava risos jocosos aos adversários, que viam esta prova como um passeio no parque.
- Mas eles são mesmo deficientes – desabafou um anão coxo com o Leão ao peito.
O Cascão continuava o seu aquecimento, tentando acertar nos insetos virtuais que ocupavam o seu espaço aéreo. Para impressionar o “inimigo” foi enviado para uma das mesas um par desaparafusados africanos da Brandoa, que de “Ping Pong” percebiam pouco…muito pouco…nada, absolutamente nada, mas mesmo assim eram melhores, muito melhores, que o Cascão. Chamavam-se Lali e a Vaisnessa ! O primeiro ainda tentou acertar na bola fantasma, materializada pelas informações que o olho maroto dava às poucas partes do cérebro que não tinham saído após a queda do penhasco na sua ilha, que lhe abrira o coco ao meio, e que tinham sido substituídas pelas poeiras que se acumularam durante o longo processo de cicatrização. Apareceu já assim, graças aos protocolos de saúde que davam a possibilidade de colocarem os feridos nos aviões com destino a Lisboa. E depois os professores e os outros técnicos é que se tinham de desenrascar, porque os médicos pouco ou nada informavam. Quanto à Vaisnessa, os dotes de jogadora também não eram grande coisa. Ao lado os felinos riam desamparados.
- Mas eles são mesmo deficientes, - tornou a dizer o anão coxo com o Leão ao peito.
A estratégia estava montada, os leões iriam cair que nem uns patinhos. Mais um par tomou de assalto o aquecimento: o Gorilão e o Monga Romeu. Acertaram cinco vezes em mil, o que não convenceu o anão coxo com o Leão ao peito:
- Mas eles são mesmo deficientes !

Primeiro Jogo

Leão versus Tubarão

A partir deste momento só o Brazuca nos representava, os outros não passavam de simples engodo. O primeiro representante do felino era o já célebre anão coxo, que se dirigiu para a arena com um sorriso de vencedor absoluto e bastaram poucos minutos para regressar à bancada ainda mais pequeno e duplamente coxo.
- Só isto ? – Perguntou o Brazuca, compondo a popa.
- Foi sorte de deficiente, - justificou-se o marreco zarolho, o próximo da lista. A eliminação do anão já tinha aberto uma brecha na jaula do Leão. O treinador observava agora com atenção o nosso Tubarão. O jogo demorou algum tempo, mas o marreco também foi com os burros. A situação estava grave. As luzes apontavam para o Brazuca. Foi a vez do Stor Pobre entrar em cena e arrasar com a concorrência. Alvalade não chegava aos calcanhares da Venteira. O treinador dos Tubarões colocou-se junto do treinador dos Leões e explicou toda a metodologia de treino.
- Está a ver aquele ali, - e apontou para o Cascão, o célebre caçador de moscas. – O Brazuca quando nos veio parar às mãos (dois dias antes), estava naquele nível.
- Espantoso ! – Admirou-se o representante dos felinos. – Que trabalho fantástico.
- Das 8 da manhã, às 8 da noite. O Stor Rico abre a porta e a Dona Pilca fecha-a. O Brazuca nem almoça, é só treino, só treino. O Cascão iniciou agora a sua carreira no “Ping Pong” e no final do ano estará ao nível do nosso campeão e para o ano virá aqui disputar a taça (caso houvesse algum milagre, pois estava assim desde que nascera há 14 anos, vindo diretamente da pipa que era a barriga da mãe, que no teste de amniocentese dera vinho tinto branco de Belas). Nos "Tubarões do Seixo" há centenas de mesas espalhadas pelos corredores, ocupadas durante todo o dia. A culpa é do Porres que, desde a chegada ao topo, Trabalho e Competência passaram a ser temas obrigatórios.
O Brazuca limpou tudo e obrigou o Leão a ficar de gatas, com o traseiro à disposição do Tubarão. A única foto oficial foi tirada debaixo da bandeira verde, com marcação incontestável na primeira página do jornal oficial de Alvalade.

Friday, March 02, 2007

As Lágrimas da Doutora



                          Camarada Choco
                                           Aventura 44

Habituados ao insólito, os “Cerciamos” (habitantes da Cooperativa de Reabilitação para Desaparafusados e Aparafusados) prepararam-se para o apocalipse, onde tudo daria lugar há insanidade e há loucura. Uns ainda se espantam (a minoria) porque não acreditam, outros porque estão cansados, outros porque receberam uma oferta melhor, talvez uma oferta que não pudessem recuar, ser afilhadas e, como consequência, mais prósperas e felizes. O abraço da ex-Doutora Sem Canudo à Dona Pilca e à Menina Tatrícia, fez transparecer um estado de alma, que criou uma vibração nas vozes de todos os presentes. Era o culminar de um amor caprichoso, tumultuoso, de encontros e desencontros, de desejo, sensualidade e ausências (o estado “santinha”, exclusivo desta Instituição). A um canto, discreta, estava a Dona Gilette, elemento cada vez mais raro nos colectivos dos desaparafusados. Atenta, paciente, formosa mas não segura, à espera da sua vez para vender o único produto possível da sua sala de quiabos: frasquinhos de compota de Baba e Borra de Monga, que lhe possibilitariam, segundo pensava a própria, comprar um talhão junto à Casa Forte da Madrinha.
As lágrimas da Doutora Madrinha eram ali ouvidas a tocar nos tacos, ao vivo e a cores, sem piano, em pequenas doses de crocodilo, repetidas tantas vezes quantas o montante entregue. A concentração, o esforço e a boa disposição imperavam na sala. Mas não em todos os cantos. O intrépido gaulês, o Senhor Pintor, denunciava a situação, propondo um novo olhar, que era sempre pessoal. Assim, estes jantares de Natal não serviam apenas para reconstruir novas alianças do passado, mas antes criar espaços para novas afilhadas. Foi o momento de um encontro privilegiado, onde se pressentiu o pulsar comum dum saco azul subterrâneo, por debaixo dumas saias, quase invisível, interior.
A geração de afilhadas é uma tendência que se tem vindo a desenvolver e a que todos devem estar atentos, por ser claramente favorável a quem desejar fazer umas colónias.
- No meu dia de anos nem um beijinho me deu, nem uma lágrima verteu. Só consegui os dez minutinhos finais da jorna – resmungou o Senhor Pintor, afastando, do fato comprado nos indianos da Praça de Espanha, um pêlo encaracolado. – Alguém haverá de ser responsabilizado por isto !
O ritmo alucinante do beija-mão era pontualmente interrompido por uma fotografia, enquanto que no corredor se tentavam adivinhar as prendas, não fosse alguém receber uma pega da Sala dos Têxteis. A Madrinha estava sempre presente, na forma como comíamos, nas palavras que usávamos, propositada ou inadvertidamente. Mas, com a Madrinha há sempre muitos “mas”…
- A “clave de Sol”, onde está a minha “clave de Sol”, que comprei nos chineses com o dinheiro dos vossos almoços….vossos não, meus almoços. Ninguém sai daqui se a “clave” não regressar há minha propriedade. Mas uma parte da plebe estava mais preocupada em guardar nas carteiras as velas, do que no discurso da “Madrinha de Algumas”. O jogo do arremesso dos porta-guardanapos foi bruscamente interrompido pela chegada, não programada, da companheira do Camarão.
- Estás proibido de jogar com a progenitora do Tremelga.
Era o segundo cartão amarelo da noite ! O jogo prometia aquecer, a Madrinha já não gritava só pela “clave de Sol”, mas também pelas “velas com a Santinha”. Nem os beijinhos das novas afilhadas conseguiam controlar a “baba de fúria”. E nestes momentos tudo vem à memória, até a garrafinha do vinho do Porto descoberta no armário da Psicóloga Loira. Mas o pior ainda estava para vir !
- A “Passarinha”, roubaram-me a “Passarinha”, - gritou a Dra. Madrinha Sem Canudo, deitando fumo pelas orelhas, sinal de que os segmentos estavam prestes a gritar.
- A “Passarinha” da madrinha ? – Perguntaram em coro as novas afilhadas, levantando-se com dificuldade da mesa de Natal. – Nós vamos investigar, já temos suspeitos. Acalme-se Madrinha que volta para casa coma sua “Passarinha”, a “Clave de Sol”, as “Velas com a Santinha” e todas as outras porcarias….
- Tatrícia – interrompeu a Dona Pilca, tentado abafar a última palavra da sua colega chinesa com um valente empurrão, que a atirou para cima do Cabo Pilas, que caiu desamparado no chão. – Queres dar cabo do posto que tanto nos custou a ganhar ?
E no meio disto tudo veio de novo à memória da Doutora Madrinha Sem Canudo a garrafa de vinho do Porto. Agora compreendia ela as razões de tanto “farróbadó” naquele gabinete. E escusava a Psicóloga Loira explicar que fora alguém que lhe pedira para guardar o produto e ela esquecera-se. As melhoras dos clientes não se deviam a palavras sábias, mas sim aos vapores do vinho do Porto. Era um tratamento fraude !
- Qualquer dia é o Nélinho a ser eleito Afilhado, - continuava a resmungar o Senhor Pintor. – Vou-me vingar em alguém ! – E levantou-se apressadamente da sala, desaparecendo nas entranhas do edifício.
Algum tempo depois ouviu-se um barulho metálico vindo do andar de baixo e para os lados do Bar. Todos se precipitaram escadas abaixo, pensando ser o Muro que apanhara de vez o Porres. Mas não, o arrastar de metal pelo chão era mais para lá. Pararam a escassos metros quando deram de caras com o Senhor Pintor a expulsar um armário do seu estabelecimento de pintura.
- Na Sala de Artes não se produzem sandes, sandoscas, croquetes, pastéis de bacalhau, mas sim telas com Nódis e outra bicharada – informou o Dr. Pintor, com o fato dos indianos já todo amachucado.
- O meu Sobrinho…o senhor Doutor Pintor Sem Canudo tem razão – confirmou a Dra. Madrinha Sem Canudo, tentado resolver a situação embaraçosa, recorrendo às palavras mágicas.
- Dá-me a impressão de tenho de acelerar a produção das minhas compotas, - atirou a Dona Gilette. – Ainda saio daqui hoje afilhada !
- Sobrinho ?!! Eu fui promovido a Sobrinho ?!! – gritou o Pintor, abraçando-se à Tia.
- E para provar a afeição que tenho por si, convido-o a acompanhar-me a um Curso de Formação de Power Point, que não me vai servir para nada, mas não dou o meu lugar a ninguém.

Wednesday, November 29, 2006

A “Caixa do Choco”

                         Camarada Choco

                                          Aventura 43

A contagem decrescente para retirar algo ao Camarada Choco tinha começado e já estava a influenciar a Instituição de Reeducação para Clientes Desaparafusados.

24 horas antes
Na sala do senhor Pintor reinava a confusão. Havia tesouras, martelos, cadeiras, pregos e outros objectos pedagógicos, pelo ar. O espaço artístico tinha entrado em auto-gestão após a saída do chefe, para uma exposição de 5 pinturas rupestres feitas por mongas estrangeiros, oriundos da Azinhaga dos Besouros. A excursão levara uma carrada de desaparafusados, fundamentais para a estatística final, para uma visita de cortesia, mesmo com o gasóleo a preços proibitivos, mesmo para os mongas, a uma amostra feita por uma técnica com um currículo a roçar o terceiro mundo, mas com bons contactos na nossa querida e muito estimada Instituição de Solidariedade Duvidosa.
- O que vem a ser isto ? – Insurgiu-se o senhor Pintor ao entrar no seu espaço cultural e a dar de caras com o Betão de sapatão em punho, a ameaçar esmagar de vez o Kodac. – Ou paras já ou vais ter com a mana, - ameaçou, usando uma voz de trovão, igual à que usara no Ralys em 1975, durante o assalto dos comandos.
- Com a mana não, eu não sou monga !
- Sempre que saio daqui o caos toma conta do meu estabelecimento. E ainda por cima fui apanhar uma seca. Eu e todos os mongas.
20 Horas Antes
A voz da Dona Pilca ecoava, mais uma vez, pelo estabelecimento.
- Ó Faísca, tira a mão dos meus guardanapos.
- Mas eu só queria levar um para casa, - desculpou-se a funcionária destravada.
15 Horas Antes
- Porra, - gritou o Virgulino, ao testar o cartão Multibanco no relógio de ponto. – Estou liso, o meu dinheiro desapareceu todo.
Na secretária o som estridente de uma campainha chamava a atenção da Doutora Sem Canudo. No monitor do Pato Donald a imagem de um saco azul ocupava todo o écran.
- Estou rica, estou rica, já posso receber os subsídios de Directora auto-nomeada, de Descoordenadora de Coordenadores, e de tudo aquilo que eu quiser.
10 Horas Antes
Quando o Vira-Bicos entrou na Cerci, quase que chocou com a Dona Espatinha e a sua monstruosa abóbora e os vinte mongas que a carregavam, incluindo uma bica quentinha que levava à cabeça. Tinha catado a cadeira eléctrica do Bacalhau, aproveitando uma ida dele e do Pitrogas ao cagatório, e atrelado a resma de desaparafusados que se preparavam para descansava no seu bar, para darem uma ajuda ao motor que não aguentava com tamanho dinossauro.
- Sai da frente ó marmelo, que eu só para na Direcção, - gritou, fazendo estalar no ar um chicote de marmeleiro.
- Epá, mas o que vem a ser isto ? – Insurgiu-se o peão, abanando com a deslocação do ar.
- Vou a caminho dos “Pontos” !
- “Pontos”?!
- Então não sabe que foi criado o “Cartão Canudo”?
- “Cartão-Canudo”?!
- Quanto mais prendas se der à Auto-Directora, recebe pontos neste cartão, e é só descontá-los no C.A.A.G.T.. Com esta abóbora e com o cafezinho que trago à cabeça, levo para casa uma caixinha de “Bollicaus” que foram com o Pedro Álvares Cabral e regressaram.
- C.A.A.G.T. ?! O que é que quer dizer?
- Cadeia de Armazéns da Afilhada !
5 Horas Antes
No primeiro andar a fila estava compacta. Os mongas tinham sido abandonados à sua sorte, a peregrinação à Torre de Babel ( Sala Canudo) entupia o corredor. O Porres tinha mandado reforços para controlar o trânsito, o agente Pato Donald não parava de autuar.
- Trouxe-lhe uma almofada feita de restos de piúgas e uma pega tirada a ferros dumas cuecas pretas do Choco, com o buraco onde estava o emblema do Benfica. – Ofereceu a Dona Piulia.- O Mano manda este quadro do Noddy.
- 15 pontos !
- Tenho aqui um painel de azulejos a retratar a vida árdua dos nossos clientes, - ofereceu a Dona Pilca.
- Mas estão todos a dormir ? – Constatou a Doutora Sem Canudo.
- É por isso que eu disse “árdua” !
- 7 pontos !
4 Horas Antes
No novo gabinete de uma das Afilhadas da Tarde, a própria tentava explicar à Faísca as vantagens de se inscrever num curso pós-laboral para alforrecas, podendo assim ganhar um canudo novinho em folha.
- Não sei, não sei, já não sou capaz, a minha cabeça está sempre em curto-circuito, - queixava-se a funcionária. Qual é a vantagem ?
- A vantagem ? Verá quando for à terra. Deixará de ser a “Faísquinha das Ovelhas” e passará a ser a “Doutora Faísca” !
- Como a outra ?
- Sim, como a outra!
- Alto e pára o baile, - interveio a Doutora Sem Canudo, dando um “basta” no trabalho árduo dos “Sacos para Presentes”, mais uma parceria, desta vez entre Logistas e Desaparafusados. E como já era tradição, os Aparafusados (daqui para a frente chamados “Chineses”) realizavam o trabalho escravo durante as várias semanas que faltavam até ao Natal, e quem ficaria com os louros, como sempre, eram os desaparafusados, agora promovidos a clientes e a estatística para a Segurança Social. O subsídio nº 34 da Doutora para os presentes dos familiares estava assim garantido.
- Cara Afilhada da Tarde, a Dona Faísca não precisa de mais habilitações, a sua formação em ovelhas, cabras e galinhas é mais do que suficiente para tratar do nosso rebanho de quiabos. E assim poupamos dinheiro !
- Mas….
- Nem “mas”, nem “meio mas”, a ideia de dar formação às nossas chinesas está fora de questão. Vou até decretar uma “Fatwa” a proibir mais canudos na minha Instituição, mas primeiro tenho de voltar para o trono, porque o povo espera-me.
3 Horas Antes
- Tenho aqui dois garrafões de “Gerupiga” do meu avozinho, - ofereceu a Terapeuta Zézé, esticando os braços.
- 300 pontos, uma calculadora chinesa e um pacote de leite só com um mês de atraso. Seguinte !
- Tenho aqui uma caixa de pauzinhos de gelado, para poder fazer talas iguais às que fazia no século passado.
- Óptimo, óptimo, assim faço de conta que endireito os marrecos e poupo dinheiro. Dou-lhe 400 pontos !
- Quatrocentos ?! – Indignou-se a Zézé. – Dê-me de volta os garrafões que eu trago-lhe uns troncos de árvore para endireitar cabeçudos.
- Pronto, pronto, dou-lhe mais 100 pontos.
- O quê, o que é que estas pindéricas são a mais que eu ?! – Interrompeu a Dona Piulia, retirando as pegas.
- Ok, tome lá mais 200 pontos e desampare-me o trono. Veja lá se não mete baixa !
2 Horas Antes
A situação estava a começar a ficar fora do controlo. Todas as enteadas queriam passar ao estatuto de afilhadas, e até já ameaçavam derrubar o trono, comprado com o já lendário subsídio do ar-condicionado. Pediram-se reforços !
- Os pontos não são tudo na vida. Voltem amanhã, - gritou o Porres, tentando controlar a situação.
- Os pontos são tudo o que temos, o resto é trabalhar e ganhar como chinesas ! – Queixou-se a Dona Gillete, encostando à parede um quadro de um Santo Mongol, vindo directamente de uma loja chinesa da Brandoa profunda.
- Porres, venha imediatamente aqui, - ordenou a Doutora Sem Canudo, dando ordem de “Stop” às peregrinas. – Que ideia é essa de os pontos “não serem tudo na vida” ? Não vê que assim tenho as chinesas felizes e ainda me levam as porcarias que teimo em coleccionar. Já tive de dar um cartão amarelo às minhas afilhadas da tarde por causa da triste ideia da “Formação” e agora é o senhor ? Mande-as de regresso ao trabalho, porque os clientes já estão a dormir há muito tempo e assim não há cartões para o Natal.
1 Hora Antes
- Posso entrar ? – Perguntou o Vira-Bicos.
- Já não há pontos, - atirou de rajada a Doutora Sem Canudo.
- Trago uma ideia, é de borla, mas dar muita guita.
- Guita ?! – Perguntou a Mãe-Natal Sem Canudo, levantando-se e tocando com os olhos no peito sensual do artista do “palco-monga”. – Adoro clientes que cagam pepitas de ouro…perdão…perdão…dos coitadinhos dos desaparafusados. Faço tudo por eles !
- Tenho um projecto para uma Filarmónica-Monga, que irá tocar em todas as Festas de Natal, em todos os Centros Comerciais, desde as montras dos talhos até ao Palácio de Belém, o mesmo que toca a Filarmónica de Berlim, ou seja, “Let it Snow”.
- Posso ? – Interrompeu a afilhada, trazendo ao colo a sobrinha.
- Saiam todos, tenho de ir avaliar a bebé.
- Avaliar, tia?! Outra vez?!
- Avalio todos os bebés que apanhar pela frente, as vezes que forem necessárias. Não é por acaso que também sou Doutora em Intervenção de Prevenção.
- “Intervenção de Prevenção”?! Intervenção Precoce !
Mas a bebé já tinha memória e pirou-se da tia, fugindo para o único local da Cerci onde a Directora Auto-Nomeada ainda não ousava entrar: na sala da Chefe Bélinha!
- Então e a Filarmónica ? – Perguntou o Vira-Bicos, levantando a perna para deixar passar a criança em fuga.
- Sim, sim, mas também quero que toquem o “Adeste Filetes” daquele rei…
- O “Adeste Fideles”, do Dom João IV, - corrigiu o artista.
- Sim, sim, tirou-me as palavras da boca, e também o “Lengeri à l’éter de Bude”…
- O “Lovange à l’Étérnité de Jesus”, de Messiaen…
- …foi o que eu disse…e também quero a “Obratória da Páscoa”…
- …”Oratória de Natal”, de Bach…
- …e também o “Concerto de flatos pêra a notché du Natálio”…
- …”Concerto fatto per la notte di Natale”, de Corelli. Ainda falta muito ?
- Quero tudo isto para a Festa de Natal !
- Com tantas ideias, como já é tradição, quem vai acabar por tocar no palco é o Pai-Natal do Bar ! – Atirou o Vira-Bicos, já com fumo a sair das orelhas.
Mas a Doutora Sem Canudo estava noutra, preparava-se para montar uma emboscada à pequenita, colocando-se junto à porta da Chefe Bélinha. Mal sabia é que a pequena já tinha sido evacuada pela janela e ameaçara a tia de agressão, caso a trouxesse de novo para as mãos da Inquisição.
0 Horas
Mas o problema do dia não eram estas ninharias. O assunto era sério, o Camarada Choco tinha sido levado para o hospital, porque insistiam em separá-lo do seu sinal nas costas, em forma de santola. As interrogações existenciais eram muitas ! A Cerci estava, pela primeira vez na vida, suspensa num limbo angustiante. Será que na altura em que lhe puxassem a Santola, o Choco se comportaria como um frade das Caldas e ficaria com o cano em sentido ? Ou o sinal seria uma tampa que, depois de aberta, se revelaria uma autêntica “Caixa de Pandora”, de onde sairiam milhares de choquinhos, que tomariam de assalto a Cooperativa ? O Porres estava preocupado ! Os critérios para a sua selecção como Presidente estavam a anos-luz das qualidades de um Choco, quanto mais de mil. E se ao ser retirado, o sinal ganhasse vida e gritasse para o Choco, “papá” ?
Para o médico apenas representava retirar mais um carrapato a um marreco, mas para a Humanidade da Roque Gameiro talvez representasse a abertura da “Caixa do Choco”. Sairia de lá tudo o que ele amealhara ao longo da vida ? Haveria um ataque sangrento, estilo “Guerras dos Mundos”, mas em vez de máquinas seriam cuecas pretas com o símbolo do Benfica, que se colariam para sempre nas bacias de todos os Aparafusados e Desaparafusados; e atrás delas resmas de faluas vermelhas nº 50, que tomariam conta dos pés de todos, incluindo as patas das cadelas. Conseguiria o Arrasta-a-Pata deslocar-se com as barcaças ao longo dos vastos corredores ? E o Primo do Choco, reconciliar-se-ia com o Stor Rico, visto agora serem irmãos gémeos ? E o Stor-Rico passaria a fazer pisca com as faluas, de cada vez que trouxesse a trotinete ? O “suspense” adensava-se.
Na sala de cirurgias a equipa fora apanhada de surpresa pela visita inesperada da Santinha, que obrigara o Choco a mumificar-se junto à entrada do ar condicionado. Mas havia mais ! A identificação do paciente tinha sido feita por fotografia e eles não sabiam quem era a mãe, a filha ou o filho. O progenitor, o senhor Fininho, foi chamado de urgência, para lhes indicar a sua obra prima, mas até ele já estava com dificuldades.
- Da última vez que o vi chegava-me aos joelhos e agora já estão os três do mesmo tamanho. A culpa é dos “gémeos” “Tricas Cólicas”, - disse o pai, tentando impressionar a equipa médica, mostrando assim ser um empresário intelectual.
- O serralheiro destravado quis dizer genes do “Treacher-Collins”, - esclareceu baixinho a enfermeira. – A mãe tem, os filhos herdaram. É por isso que parecem todos uns chocos.
- Então, como é que vamos resolver isto ? – Perguntou o médico, olhando para o relógio.
Só havia uma solução: fazer uma amostra aos três.
- Mas isso é uma violação da varanda alheia, - indignou-se o Fininho, abrindo os braços e protegendo o cardume.
O ar frio do aparelho começara a ter efeitos no comportamento do paciente. O único gene congelara e começara a aparecer gelo nas orelhas.
- Nhi, nhi, - balbuciou o Choco.
Só o telefonema de um cliente conseguiu tirar o Virgulino do Bloco Operatório.
- Mas eu volto depois de fechar a varanda, - ameaçou.
Com as calças pelos joelhos foi fácil identificar o cobridor, através de uma estalactite torta e nervosa.
- É este. Ponham os outros lá fora e vamos despachar a operação, antes que o maluco volte.