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315 estórias

Wednesday, February 01, 2017

Silêncios!


Comandante Guélas

Série Colégio Militar





“há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que a tua vã sabedoria supõe”

Hamlet


No Colégio Militar sempre se manifestaram todas as possibilidades, desde o brilho à escuridão, o espaço educativo foi muitas vezes capaz de glorificar incapazes e desconstruir capazes, era um local cheio de pontos de interrogação. O Colégio Militar era uma fábrica de dilemas, onde eramos todos diferentes e iguais, próximos e distantes. As exigências diárias, que resultavam da inevitabilidade de se terem de aturar mutuamente, começavam na interação com os que lhes eram mais próximos.

Esta é uma estória expurgada de sofismos! Não podemos esconder os nossos pecados, não podemos enterra-los, temos de carrega-los, temos de admiti-los. O orgulho não advém da consumação do erro, mas da coragem que é necessária para admitir esse erro. Os Meninos da Luz tinham uma capacidade de se entregar aos outros e a causas solidárias, como a Conferência de São Vicente de Paulo, tratada no meio como “Conferência”, que os fazia vestir a farda de terylene e abdicar das brincadeiras das quartas-feiras à tarde (galantear a Rosa, acender fogueiras, massacrar o Carioca, apanhar boleia no trator do senhor Nunes, chatear o Meia-Lua, interromper o namoro do tenente Mota, beber o vinho do padre Peixoto), para ir acudir aos mais necessitados da zona, registar num bloco as suas carências e, após validação superior, darem-lhes cheques colegiais. O Gordini, o Peidão, o Cebola, o Coiote, o Horrível, o Cabedo, e tantos outros bons samaritanos, faziam por isso parte de uma geração com grande sentido da prática e do concreto, estando assim imunes às suas qualidades intelectuais, que eram equívocas. A encíclica Populorum Gina, emprestada pelo Coiote, foi fundamental na formação destes meninos, que não tinham direito a liberdade às quartas feiras à tarde, porque os seus neurónios, ao contrário dos do Ginho que saiam pelas orelhas, não lhes permitiam ter acesso ao Quadro de Honra. Quando o Gordini recebeu autorização para ir fazer caridade, imaginou-se novamente sentado à mesa de uma das casas das lendárias velhas de Carnide, a empanturrar-se de bolachas e biscoitos, ao mesmo tempo que preenchia a folha do questionário, que teria de ser entregue na comissão colegial, sinal de trabalho piedoso intenso. Mas parte desta estória traz uma carga inflamável! Dizia-se que no batalhão todos eram só um, todos tinham os mesmos pontos fortes, todos tinham as mesmas fraquezas, o que acontecia a um, acontecia a todos, um desobedecia às ordens, todos desobedeciam às ordens. Dever, honra e integridade. O Colégio Militar não tolerava ladrões nem homossexuais. O primeiro assunto resolvia-se com facilidade, porque como os gatunos eram de boas famílias não roubavam, simplesmente se "descaminhavam", por isso neste espaço educativo somente se descaminhava, à grande e à francesa, daí a razão para a existência das "firmezas", a banalidade do mal, altura em que o ponto 9 do Código de Honra ("Repudiar a violência, a delapidação e o despotismo") era suspenso. Quanto ao segundo tema, dizia respeito a um confronto entre o indivíduo e o coletivo, onde bastava haver uma hesitação identitária para provocar uma ansiedade, um esconde-esconde, disfarces, arrepios, dúvidas existenciais. Mas abordar o assunto, que deve ser falado como muitos outros, exige calma, há camaradas muito sensíveis de ambos os lados da barricada, por isso já lá vamos, com pantufas, cor de rosa para uns, camufladas para outros, em vez das comuns botas cardadas. A vida no Colégio Militar era condicionada pela perceção e pela emoção, cujo plano de formação dos Meninos da Luz incluía a Sala de Leitura, onde as aventuras de um filho dum ribatejano e de uma inglesa faziam as delícias da rapaziada, que à noite se deliciava nas camaratas com as loucuras de umas suecas sem limites. Elas eram muitas, e aviavam muitos, enquanto ele lutava sozinho contra o Rommel, o Goering, o Hitler, e o Mussolini. Havia quem vivesse à beira do mais puro e simples desespero, onde o Jaime Eduardo de Cook e Alvega representava a tentação, em vez das míticas Ginas. Para a maioria as almofadas eram o alvo natural, enquanto que para outros os atributos dos vizinhos representavam a maçã da Branca de Neve. Era um debate recorrente, seco e tenso, que colocava a intensidade dos sentimentos no centro dos equilíbrios deste espaço educativo que se dizia cheio de pergaminhos. E nesta encruzilhada as verdades da razão nunca se sobrepuseram às verdades da fé, contaminadas pelo vírus da insensibilidade, pois quando os limites eram transgredidos havia consequências. A revista “O Falcão” nº 716 foi devastadora para muita gente do batalhão:
- Morreu o major Alvega! – Gritou um graduado no meio das formaturas que se dirigiam para as aulas da manhã daquele dia chuvoso de inverno dos anos setenta do século passado.
Frederico Guilherme I, o rei-sargento da Prússia, tinha um fraquinho por rapazes altos, e Pedro, o Grande, colecionava anões. Algures nos anos trinta do século passado, na leitura da ordem da última formatura, toda a companhia ouviu a punição de um soldado que estava em serviço na quinta, “por ter sido encontrado pelo sargento da ronda a cometer actos ilícitos em cima de uma vaca”, tendo sido condenado a dez dias de prisão. Durante a semana seguinte a vaca foi a estrela do Colégio Militar, todos os ratas a queriam ver, segundo contou o 291 de 1934. O último ano do Colégio Militar era de “comando”, e o que se fez de bom e de mau desde o início, era importante para se determinar as responsabilidades. Mas não funcionava assim! Uma transgressão foi longe de mais, e teve como protagonista um camarada com uma folha imaculada, exageradamente formal, amigo de todos, muito paciente, que dava grandes “secas” aos seus jovens subordinados, qualidades que lhe valeram uma via verde vitalícia. Cochichava à meia luz na sala de leitura com a rapaziada a quem dava explicações. Depois de sair deslocava-se ao colégio três vezes por semana, com a autorização de fantasmas poderosos, onde era recebido como um Super-Homem com um império na cabeça, abraçado e abraçando todos, especialmente os mais novos, alguns filmados a participar em jogos inabituais, participava com empenho no discurso do marechal durante a noite de todos os fantasmas. Até aí o clorofórmio gamado ao Valentim na enferma apenas servira para atordoar as galinhas do Nunes, o pai da Rosa, mas ele preferiu usá-lo em alguns pintos fardados de cotim, filmando as brincadeiras, e divulgando-as para um público restrito nas profundezas da internet. Os nossos atos são uma escolha. A vida no Colégio Militar estava metodicamente organizada, o tempo era cuidadosamente repartido, regular, apesar de para uns representar uma solidão e para outros a liberdade. E a liberdade do Chula foi um dia longe de mais, quando sentiu bolhas na nuca, sinal da aproximação de uma nuvem negra que iria borrar-lhe o cérebro num treino na sala de remo, durante uma noite. Foi assaltado por um estupor, uma orgia elétrica, um momento de desconexão neuronal que transformou os miúdos em franguinhos prontos a serem degustados. Dezoito anos de prisão, e no julgamento pediu a "castração química". A negação destes factos por alguns permite criar mundos virtuais, irreais, fictícios, fantásticos, dos quais, felizmente, o Colégio Militar não faz parte.


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