Comandante Guélas
Série Colégio Militar
O Colégio Militar
era o dono do nosso tempo, por isso só quem lá viveu é que poderá compreender
esta partilha de fragmentos de nós, que nos dão um caráter único que continua
vivo nas nossas memórias. E porque há memórias que nos acompanham desde muito
novos, criámos uma memória que se confunde com o real. Na mística abundam as
palavras “bondade”, “senso”, “equilíbrio”, “determinação”, “coragem”, “brio”,
“dignidade“, “honra”, e agora finalmente “beleza”, com a entrada de raparigas. Era
um espaço que fervilhava de vida, vinte e quatro horas por dia, sete vezes por
semana, com atividades programadas pela instituição e outras dependentes do
livre arbítrio dos alunos, desde um Mini a cair na piscina vazia, passando por
banhos clandestinos noturnos, como o que ocorreu no dia 24 de maio de 1975, que
teve um fim alucinante quando apareceu o vigilante, com uma parte da rapaziada
a fugir para dentro do ginásio, onde aproveitou para exercitar números
arrojados de circo. O Miranda já tinha andado numa roda viva a tarde toda, com
o 191, o 125, o 124, o 151, o 601 escondidos em locais estratégicos da rua de
acesso ao picadeiro, atirando para o alcatrão, à medida que passava, latas da
Compal, cujo barulho o obrigava a investigar quais os responsáveis pelo delito;
passando por “tarzans” das janelas da primeira ou da segunda companhias para
cima de molhadas de colchões junto das peças de artilharia, ou “tunnings” com o
carro do capitão Caetano, cujos artistas acabaram por ficar detidos para
averiguações durante parte das férias grandes; ou atividades de sobrevivência,
como por exemplo conseguir chegar à primeira formatura do dia, após o toque da
corneta, onde os atrasados optavam sempre por fechar-se nas latrinas e simularem o parto de um valente cagalhão, com os restos do Amarelo do jantar do dia
anterior, mas de uma maneira geral não conseguiam enganar os graduados, que
davam pela falta dos petizes no pelotão e faziam de imediato revista aos
cagadouros, que nestas alturas pareciam estar sempre em hora de ponta, e tal como o algodão a água transparente não enganava,
davam ordem aos petizes para irem para a fila do pequeno almoço antecipado, um
abrunho entre os olhos para cada um.
As aulas decorriam
dentro da normalidade, neste dia onze de janeiro de 1973 quando o Ferrari,
professor de Português, apareceu mal disposto e por isso começou a fazer
perguntas pela turma, e como não obteve qualquer tipo de respostas aceitáveis,
descarregou a raiva no último, o Escalope, ao mesmo tempo que gritava:
- Mas porque é que
me esqueci da caderneta?
- Piu, piu, piu, és burro, - exclamava o
Falcão, professor de matemática, com a boca colada ao ouvido do Cão.
- O senhor é um xisto com pernas, -
classificava, já desesperado, o professor Perdigão com os olhos na cara
do Elefante.
- Ó moço, tás ta rir? – Perguntava o Semita
no laboratório de Química ao Esperma, que estava divertido com os erros do
ajudante, o Morais, também conhecido por Ruca. - Anda aqui à pedra…num sabes nada, bais pra casa com uma
bengala.
Numa sala de aula
em autogestão, cujo professor tardava em aparecer, e o oficial de dia ainda
não tomara uma decisão, jogava-se ao jogo das palavras, mais propriamente uma
guerra de dicionários de todos contra todos.
No ano de 1974 o
estaleiro das obras que decorriam para os lados do pavilhão de Ciências, transformou-se num espaço de atividades gímnicas não
curricularmente previstas, cujo grau de perigosidade estaria hoje a ser
comentado pela procuradora Joana, senhora de uma cara que fazia a mulher do
Patronilha parecer uma deusa, como um local com um ambiente que “favorece o
crime”, mas que naquele tempo servia para tornar a rapaziada rija e apta para
enfrentar com determinação o futuro. Por isso quando o 607, o 125, o 653 e o
191 resolveram saltar ao mesmo tempo para a rampa feita de restos de madeiras,
cujos trabalhadores usavam para subir com os carrinhos de mão e despejar o
entulho num monte, esperando com isso uma reação do material que os colocasse
no telhado do pavilhão de Desenho, com queda direta sobre o Pina Lopes, não
estavam à espera que as tábuas se partissem com estrondo, atirando os petizes
de pantanas, uns para cima de pedras, e outros para junto de madeiras que
pareciam pertencer a faquires, semeadas de enormes pregos com as pontas viradas
para cima. Durante meses os intervalos eram tomados de assalto por jovens
cheios de energia, que agora seriam classificados como “hiperativos”, e em vez
de haver somente nos cacifos das camaratas os frascos com o pó amarelo para
acalmar as bexigas noturnas dos mijões, estariam cheias de xaropes de
“Ritalina”, a droga legal da atualidade, que torna os putos toxicodependentes
desde o berço. Nestes tempos idos dos anos setenta para resolver os problemas
de comportamento existiam as apresentações à alvorada, as firmezas e outros
miminhos reservados para a última formatura do dia. No Colégio Militar um acontecimento
fortuito poderia marcar alguém para sempre, que o diga o Alves que em 1936
para lá entrou como soldado durante o serviço militar obrigatório, começando
por ser o corneteiro de serviço, nunca tendo conseguido chegar aos calcanhares
do magistral cabo Estrela que, segundo a lenda, soprava no instrumento como ninguém, a quem o 15
insistia em tapar a saída de ar de cada vez o maçarico se preparava para soprar
na corneta para mandar levantar a rapaziada, ação esta feita com a carícia que
caracterizava o espaço educacional, que ameaçava todas as vezes fazer-lhe saltar o
corta palha, que já levara um coice de raspão quando tentara limpar
a cama dum antepassado do Cabeça de Mula, que lhe tinha posto o nariz à banda.
Em 17 de Novembro de 1943 casou-se definitivamente com os Meninos da Luz, e
quinze anos depois ganhou a alcunha de “Mirna Loy” devido ao tratamento aos
olhos que teve de fazer, cujos pingos davam a sensação de que o soldado
passara a pintar os olhos, mania inconcebível para um estabelecimento de ensino
que só admitia nas suas fileiras futuros candidatos a cobridores, e não
rapaziada que gostasse de pegar de empurrão. Como o destino queria que o
soldado ficasse para sempre lado a lado com o marechal, e Ele escreve sempre
torto com linhas direitas, uma porta encravada na terceira companhia em 1958 só
abriu quando o soldado Alves utilizou, como último recurso, a cabeça em forma
de bigorna, ganhando com esse gesto de bravura a alcunha definitiva. E a fama era tanta que em 1994
no Porto, durante um desfile militar com a presença dos Meninos da Luz, o
senhor Cândido foi reconhecido pelos antigos alunos, tendo sido obrigado a sair
do anonimato onde o tentaram pôr, e acenar para a multidão de camaradas que o
saudavam efusivamente:
- Moca, Moca,
Moca! (Camarada Choco & Comandante Guélas: O Moca)
No refeitório o
Horrível acabara de ser intercetado pelo oficial de dia, o tenente Mota, que
estava desesperado à procura daqueles que insistiam em imitar o barulho de um
peidociclo de cada vez que se afastava, por ter sido visto a rir-se, e como
tal ser, por convicção, uma prática diária hoje em dia nos tribunais quando se
tenta arranjar um bode expiatório, culpado pelo “ruído de vizinhança”,
acusando-o de ostentar um cabelo que se encontrava fora das condições prescritas pelo
regulamento, sendo por isso intimidado a apresentar-se ao Ramalho:
- Mas o cabelo não
está a tocar nas orelhas, - protestou o aluno pondo-se de pé em sentido, ao
mesmo tempo que se apercebia dos risos maliciosos dos colegas.
Mas o estado
psicológico do tenente não permitia argumentos desviantes, por isso agarrou,
como contra prova, na trunfa que povoava o coco do Horrível, dando-lhe o aspeto
de uma cabeça com o formato de um ananás, transitando a pena de imediato em julgado:
- Só sais com um
pente zero!
Escovinha? Com o fim de semana à porta e as fêmeas
a fazerem fila para serem degustadas pelo maior cobridor da capital? Mas, como
um Menino da Luz prevenido valia sempre por dois, neste caso dois cartões de
identidade, o que estava na vitrine, exposta nos dias de saída, e de acesso só autorizado
pelo comandante da companhia oficial, ou alguém com os poderes delegados, após
revista à farda, e o clandestino, que era usado nestas ocasiões, e que isentava
da comparência na formatura, com saída imediata após as aulas de manhã de
sábado, bastando para isso mostrar a segunda via na portaria, com saída imediata
para a…cobrição, antevendo-se já para o Horrível um qualquer prémio colegial futuro pelos
vários filhos, netos, clandestinos e afins! Mas nada se assemelhava ao mustache do 144/1888, o Pinto dos
Bigodes que, quando foi abatido ao batalhão colegial, levou consigo um bigode
tipo piaçaba, cujo uso, por ser moda na sociedade, era autorizado no Colégio
Militar, e por isso nenhum Mota o poderia pôr em causa. Enfim, modernices
impensáveis nos anos setenta, em que a moda piava mais baixinha, no primeiro
ciclo o comprimento do cabelo não podia ser superior aos dois centímetros,
limite que passava no segundo ciclo para os quatro centímetros e no ciclo
complementar para os seis. Por isso, para sobreviver no sistema usava-se toda a criatividade!
2 comments:
Peidão, isso é que é escrever, ein?!
Abraço, pá.
148/63 do "assassinado" IO - registos que me fazem lembrar o meu tempo no Instituto mas, obviamente, em versão feminina. Adorei!!!!
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