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315 estórias

Sunday, August 30, 2015

24 horas colegiais

Comandante Guélas

Série Colégio Militar



O Colégio Militar era o dono do nosso tempo, por isso só quem lá viveu é que poderá compreender esta partilha de fragmentos de nós, que nos dão um caráter único que continua vivo nas nossas memórias. E porque há memórias que nos acompanham desde muito novos, criámos uma memória que se confunde com o real. Na mística abundam as palavras “bondade”, “senso”, “equilíbrio”, “determinação”, “coragem”, “brio”, “dignidade“, “honra”, e agora finalmente “beleza”, com a entrada de raparigas. Era um espaço que fervilhava de vida, vinte e quatro horas por dia, sete vezes por semana, com atividades programadas pela instituição e outras dependentes do livre arbítrio dos alunos, desde um Mini a cair na piscina vazia, passando por banhos clandestinos noturnos, como o que ocorreu no dia 24 de maio de 1975, que teve um fim alucinante quando apareceu o vigilante, com uma parte da rapaziada a fugir para dentro do ginásio, onde aproveitou para exercitar números arrojados de circo. O Miranda já tinha andado numa roda viva a tarde toda, com o 191, o 125, o 124, o 151, o 601 escondidos em locais estratégicos da rua de acesso ao picadeiro, atirando para o alcatrão, à medida que passava, latas da Compal, cujo barulho o obrigava a investigar quais os responsáveis pelo delito; passando por “tarzans” das janelas da primeira ou da segunda companhias para cima de molhadas de colchões junto das peças de artilharia, ou “tunnings” com o carro do capitão Caetano, cujos artistas acabaram por ficar detidos para averiguações durante parte das férias grandes; ou atividades de sobrevivência, como por exemplo conseguir chegar à primeira formatura do dia, após o toque da corneta, onde os atrasados optavam sempre por fechar-se nas latrinas e simularem o parto de um valente cagalhão, com os restos do Amarelo do jantar do dia anterior, mas de uma maneira geral não conseguiam enganar os graduados, que davam pela falta dos petizes no pelotão e faziam de imediato revista aos cagadouros, que nestas alturas pareciam estar sempre em hora de ponta, e tal como o algodão a água transparente não enganava, davam ordem aos petizes para irem para a fila do pequeno almoço antecipado, um abrunho entre os olhos para cada um.
As aulas decorriam dentro da normalidade, neste dia onze de janeiro de 1973 quando o Ferrari, professor de Português, apareceu mal disposto e por isso começou a fazer perguntas pela turma, e como não obteve qualquer tipo de respostas aceitáveis, descarregou a raiva no último, o Escalope, ao mesmo tempo que gritava:
- Mas porque é que me esqueci da caderneta?
- Piu, piu, piu, és burro, - exclamava o Falcão, professor de matemática, com a boca colada ao ouvido do Cão.
- O senhor é um xisto com pernas, - classificava, já desesperado, o professor Perdigão com os olhos na cara do Elefante.
- Ó moço, tás ta rir? – Perguntava o Semita no laboratório de Química ao Esperma, que estava divertido com os erros do ajudante, o Morais, também conhecido por Ruca. - Anda aqui à pedra…num sabes nada, bais pra casa com uma bengala.
Numa sala de aula em autogestão, cujo professor tardava em aparecer, e o oficial de dia ainda não tomara uma decisão, jogava-se ao jogo das palavras, mais propriamente uma guerra de dicionários de todos contra todos.
No ano de 1974 o estaleiro das obras que decorriam para os lados do pavilhão de Ciências, transformou-se num espaço de atividades gímnicas não curricularmente previstas, cujo grau de perigosidade estaria hoje a ser comentado pela procuradora Joana, senhora de uma cara que fazia a mulher do Patronilha parecer uma deusa, como um local com um ambiente que “favorece o crime”, mas que naquele tempo servia para tornar a rapaziada rija e apta para enfrentar com determinação o futuro. Por isso quando o 607, o 125, o 653 e o 191 resolveram saltar ao mesmo tempo para a rampa feita de restos de madeiras, cujos trabalhadores usavam para subir com os carrinhos de mão e despejar o entulho num monte, esperando com isso uma reação do material que os colocasse no telhado do pavilhão de Desenho, com queda direta sobre o Pina Lopes, não estavam à espera que as tábuas se partissem com estrondo, atirando os petizes de pantanas, uns para cima de pedras, e outros para junto de madeiras que pareciam pertencer a faquires, semeadas de enormes pregos com as pontas viradas para cima. Durante meses os intervalos eram tomados de assalto por jovens cheios de energia, que agora seriam classificados como “hiperativos”, e em vez de haver somente nos cacifos das camaratas os frascos com o pó amarelo para acalmar as bexigas noturnas dos mijões, estariam cheias de xaropes de “Ritalina”, a droga legal da atualidade, que torna os putos toxicodependentes desde o berço. Nestes tempos idos dos anos setenta para resolver os problemas de comportamento existiam as apresentações à alvorada, as firmezas e outros miminhos reservados para a última formatura do dia. No Colégio Militar um acontecimento fortuito poderia marcar alguém para sempre, que o diga o Alves que em 1936 para lá entrou como soldado durante o serviço militar obrigatório, começando por ser o corneteiro de serviço, nunca tendo conseguido chegar aos calcanhares do magistral cabo Estrela que, segundo a lenda, soprava no instrumento como ninguém, a quem o 15 insistia em tapar a saída de ar de cada vez o maçarico se preparava para soprar na corneta para mandar levantar a rapaziada, ação esta feita com a carícia que caracterizava o espaço educacional, que ameaçava todas as vezes fazer-lhe saltar o corta palha, que já levara um coice de raspão quando tentara limpar a cama dum antepassado do Cabeça de Mula, que lhe tinha posto o nariz à banda. Em 17 de Novembro de 1943 casou-se definitivamente com os Meninos da Luz, e quinze anos depois ganhou a alcunha de “Mirna Loy” devido ao tratamento aos olhos que teve de fazer, cujos pingos davam a sensação de que o soldado passara a pintar os olhos, mania inconcebível para um estabelecimento de ensino que só admitia nas suas fileiras futuros candidatos a cobridores, e não rapaziada que gostasse de pegar de empurrão. Como o destino queria que o soldado ficasse para sempre lado a lado com o marechal, e Ele escreve sempre torto com linhas direitas, uma porta encravada na terceira companhia em 1958 só abriu quando o soldado Alves utilizou, como último recurso, a cabeça em forma de bigorna, ganhando com esse gesto de bravura a alcunha definitiva. E a fama era tanta que em 1994 no Porto, durante um desfile militar com a presença dos Meninos da Luz, o senhor Cândido foi reconhecido pelos antigos alunos, tendo sido obrigado a sair do anonimato onde o tentaram pôr, e acenar para a multidão de camaradas que o saudavam efusivamente:
No refeitório o Horrível acabara de ser intercetado pelo oficial de dia, o tenente Mota, que estava desesperado à procura daqueles que insistiam em imitar o barulho de um peidociclo de cada vez que se afastava, por ter sido visto a rir-se, e como tal ser, por convicção, uma prática diária hoje em dia nos tribunais quando se tenta arranjar um bode expiatório, culpado pelo “ruído de vizinhança”, acusando-o de ostentar um cabelo que se encontrava fora das condições prescritas pelo regulamento, sendo por isso intimidado a apresentar-se ao Ramalho:
- Mas o cabelo não está a tocar nas orelhas, - protestou o aluno pondo-se de pé em sentido, ao mesmo tempo que se apercebia dos risos maliciosos dos colegas.
Mas o estado psicológico do tenente não permitia argumentos desviantes, por isso agarrou, como contra prova, na trunfa que povoava o coco do Horrível, dando-lhe o aspeto de uma cabeça com o formato de um ananás, transitando a pena de imediato em julgado:
- Só sais com um pente zero!
Escovinha? Com o fim de semana à porta e as fêmeas a fazerem fila para serem degustadas pelo maior cobridor da capital? Mas, como um Menino da Luz prevenido valia sempre por dois, neste caso dois cartões de identidade, o que estava na vitrine, exposta nos dias de saída, e de acesso só autorizado pelo comandante da companhia oficial, ou alguém com os poderes delegados, após revista à farda, e o clandestino, que era usado nestas ocasiões, e que isentava da comparência na formatura, com saída imediata após as aulas de manhã de sábado, bastando para isso mostrar a segunda via na portaria, com saída imediata para a…cobrição, antevendo-se já para o Horrível um qualquer prémio colegial futuro pelos vários filhos, netos, clandestinos e afins! Mas nada se assemelhava ao mustache do 144/1888, o Pinto dos Bigodes que, quando foi abatido ao batalhão colegial, levou consigo um bigode tipo piaçaba, cujo uso, por ser moda na sociedade, era autorizado no Colégio Militar, e por isso nenhum Mota o poderia pôr em causa. Enfim, modernices impensáveis nos anos setenta, em que a moda piava mais baixinha, no primeiro ciclo o comprimento do cabelo não podia ser superior aos dois centímetros, limite que passava no segundo ciclo para os quatro centímetros e no ciclo complementar para os seis. Por isso, para sobreviver no sistema usava-se toda a criatividade! 



2 comments:

Anonymous said...

Peidão, isso é que é escrever, ein?!
Abraço, pá.

Anonymous said...

148/63 do "assassinado" IO - registos que me fazem lembrar o meu tempo no Instituto mas, obviamente, em versão feminina. Adorei!!!!