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315 estórias

Monday, April 21, 2014

Meninos da Luz / Meninas de Odivelas


Comandante Guélas

Série Colégio Militar



“Não somos nós que decidimos a forma das coisas; mas as coisas em nós que decidem a sua própria forma” – Espinosa.

Estas estórias tornam o colégio ao mesmo tempo enigmático, límpido, silencioso e imenso. As nossas memórias são muito mais feitas de emoções do que realidades objetivas. Por isso o professor de Educação Física Isménio Tadeu contava sempre aos seus alunos que deixava o eléctrico arrancar para depois ir a correr apanhá-lo.
O calendário indicava vinte e cinco de abril do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e quinze quando o ministro Alguidar e a Dona Berta entraram numa Chaimite no Colégio Militar, para a inauguração do edifício que iria albergar meninas, a já batizada “Torre do Pecado”, que tinha custado o dobro do inicialmente previsto, e o tamanho era menor do que o planeado, sinal de que parte do dinheiro tinha ido parar ao bolso de alguém. Iam tensos, amedrontados, pois tinham ousado mexer no que de mais sagrado havia para os Meninos da Luz: as Meninas de Odivelas! Que tipo de meninas seriam estas? Continuavam a ser as musas de antigamente, mas mais perto, ou passariam a ser as Meninas da Luz? Pelo caminho deram de caras com um cartaz que dizia “ Aberta vais levar um Ramalho”, assinado pelo temido “Grupo Zacatraz”, agora na posse de um suporte informático capaz de convocar todos os Meninos da Luz (alunos, professores e funcionários) desde a fundação do Colégio Militar. O Alguidar sabia que iria deixar de ter proteção especial, o governo estava de saída, vinham aí as eleições, e com elas a vinda do Inseguro, que nem uma palavra dissera sobre estes dois lendários colégios de Lisboa. À sua espera no porto estava o 281, o Tofa, pronto para lhe dar mais um apertão. Quanto à Dona Berta, regressaria aos esquemas antigos nas ilhas do Atlântico, escondendo-se uns tempos na Graciosa para deixar assentar a poeira. Mal ela sabia que na ilha estava o 502! Quando iam a passar junto ao campo de futebol uma nova faixa dava-lhes as boas-vindas: “Meninas só existem umas, as de Odivelas e mais nenhumas”. E era verdade, os elos que ligavam estes seres ultrapassavam todas as ideologias, e já eram património da Humanidade. Em 1964 o Comandante de Batalhão, o 8, tinha ido ajoelhar-se, em traje de gala, em frente à diretora do Instituto de Odivelas, pedindo desculpas pela invasão do ano anterior, vésperas da comunhão, quando um dos inúmeros grupos expedicionários de Meninos da Luz, a coberto das trevas, e aparecendo não se sabe de onde, talvez do túnel, um tesouro imaterial do Colégio Militar, tinha atirado pedras às janelas das meninas, a convidá-las para o pecado, dando origem a um acontecimento semelhante ao da independência do Brasil: “O grito da Fernanda”! O susto da Dona Deolinda foi tal, que chamou de imediato a GNR:
- E tragam cães com coleiras cheias de alhos, tenho a quinta infestada de demónios, e quero que as meninas continuem puras para a cerimónia de amanhã!
Mas não foi preciso a presença das autoridades, os cavaleiros tinham feito questão de deixar os números escritos nas paredes do dormitório. Um telefonema para o oficial de dia bastou para que o Colégio Militar preparasse a cela aos fugitivos, pois o “bom filho à casa torna”. No dia seguinte a Comunhão das Meninas de Odivelas foi marcada pela ausência dos Meninos da Luz na guarda de honra junto ao altar, tendo sido substituídos pelos Pupilos do Exército.
- Sentimos a falta do Penacho empinado dos nossos cavaleiros, - confessou mais tarde uma das alunas, desabafando - "tivessem os meninos vindo à nossa camarata que nós não gritávamos!".
- O dos pilões é só pêlo! – Retorquiu outra.
O presente do Alguidar era uma pálida amostra do negrume do futuro que se aproximava. Por isso vacilou:
- Berta, achas que estamos seguros aqui?
- Fizemos um erro, mas agora temos de seguir em frente, - respondeu-lhe a açoriana, espreitando pela vigia.
A “Torre do Pecado” era vista como uma cápsula do futuro, enquanto o decreto que extinguia o Instituto de Odivelas não fosse revogado. Até lá os Meninos da Luz guardariam com todo o amor e carinho as suas musas, até ao dia D, em que elas regressariam à origem, com a Escolta a Cavalo e os Penachos verdes empinados. Até lá romanceava-se o futuro:


A especificidade do Colégio Militar, uma escola onde a ordem unida tinha carácter obrigatório, transformara-se no novo século numa escola inclusiva que não era igualitária, por isso tinha agora de ter respostas diferenciadas para aquilo que era diferente. E as opções não podiam ser redutoras. A aluna 923, a Boca Louca, acabava de confidenciar às suas camaradas que o teste de gravidez dera positivo.


- E quem é o pai, o Esperma? – Perguntou o Cu Justo.

- Sei lá, tanto pode ser ele, como o Tarado, o Punhetas, o Andorinha…sei lá, perdi-lhes a conta!

- O Cu de Senhora? É impossível, ele joga noutro campeonato.

- Ele enganou-se, estávamos a brincar à sala de leitura escura na quarta companhia, e confundiu os rabos.

- E agora, o que é que vais fazer?

- Nada!

- Nada? Não vais contar aos teus pais?

- Se contar eles tiram-me daqui e eu quero acabar o curso, já só faltam uns meses!

- Uns meses? Daqui a algum tempo a barriga vai-se notar!

- E depois, o ministro bem disse que no colégio não há discriminação, as alunas também podem ser obesas!

A vida no Colégio Militar estava metodicamente organizada, o tempo era cuidadosamente repartido, regular, apesar de para uns representar uma solidão e para outros a liberdade. Quando o Diretor do Colégio Militar abriu a pasta, nem queria acreditar! O mês de janeiro de 2025 ainda mal começara e já tinha mais um caso de difícil resolução: uma aluna grávida! Olhou para a frase escrita no papel afixado na parede, “aqueles que preferem ser simpáticos não passam de lambe botas que nunca serão respeitados”, e sorriu. O caso do aluno 889, o Cláudio, que mudara de sexo durante as férias de verão e apresentara-se como aluna, a Palmira, no ano letivo seguinte, abanara a instituição militar, mas o “politicamente correto” nestes tempos em que as histéricas dominavam, depressa resolvera o imbróglio através da atribuição de um novo número, o 991, para assim não traumatizar a rapariga. E até de alcunha mudou, passou de “Quatropatas” para “Mamalhuda”! O 790 também quis ser Tânia Vanessa, mas mantendo intactas as características do Gonçalo, o que obrigou à intervenção do ministro da Defesa, cujos assaltos aos paióis de Tancos eram agora uma tradição, com direito a subsídio cultural e tudo, daí as prioridades serem outras:

- Por este andar vamos a caminho de um novo instituto feminino!

O problema que a aluna 923 agora levantava dizia respeito ao filho. Teria de ser dado um número ao rebento, o equivalente à nacionalidade portuguesa aos que nascem em território nacional?

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