Comandante Guélas
Série Colégio Militar
A memória molda-se muitas vezes
ao que gostaríamos que tivesse acontecido, mais do que aos factos reais. O
Colégio Militar é um espaço sem tempo com uma luz suave, por isso esta estória
passa-se num futuro próximo não tão longínquo do presente. Digamos que estamos
num depois de amanhã onde todos os Meninos da Luz estão ligados em permanência
numa grande rede. Estes tempos medíocres, viscosos, sujos, feitos de uma degradação
transversal e endémica, onde apenas se valida o que é mensurável, que puseram à
venda a alma dum colégio com 210 anos, obrigaram à tomada de medidas
excepcionais.
- Perdi-me, mas reencontrei –
disse o último convidado da reunião a chegar ao bar, estendendo os ossos ao
colega mais próximo.
- O Marechal teria dado um bom
ator, - retorquiu o 155 de 1912.
- Nunca iria chegar aos teus
calcanhares.
A reunião no Speliking - Bar & Bistro decorreu
num ambiente de grande confraternização, todos tinham vindo de longe, de muito
longe, a pedido do fundador. Vieram por uma boa causa, tentar salvar o que se
tinha construído durante longos e penosos anos.
- Todos compreenderam? –
Perguntou o chefe com uma voz grave e sonora. – Pertencemos à “reserva de força
moral” a que o 178 de 1894 sempre se referia de cada vez que falava do colégio.
- Uma Boiada na capital, e das
grandes, ao bimbo do Alguidar e à pirosa da Berta, - gritou o 24/1882.
- Berta não, (A)berta, como
costumam escrever nas paredes os putos da Brigada Zacatraz.
- Nós podemos, agora somos
omnipresentes, e quem se mete com o Colégio militar…,
-…obviamente leva, - exclamou o
398/1917, atirando um copo para o chão.
- PJ, - gritaram, ao mesmo tempo
que uma figura apressada se materializava à frente de todos, desaparecendo de
imediato de encontro a uma das paredes.
- Pensava que o Zé Pereira me ia
apresentar a folha branca.
- A tecnologia não é perfeita, a
programação tem erros. Mas já é bom estarmos aqui reunidos.
O menu tinha sido o eterno
“Amarelo”, uma receita única de um local especial.
- O sabor melhorou a partir do
momento em que as galinhas do pai da Rosa dos anos 70 passaram a pôr ovos mais
saborosos. Atiravam-lhes semanalmente com o éter gamado ao Valentim,
obrigando-as a uma sesta alentejana, - explicou o 178/1894.
- Na boiada que fizemos ao
Alguidar no Porto, a figura do Moca teve um “bug” e a cabeça bateu-lhe na
perna, - explicou o 266/1904.
- Mas mesmo assim partiu-lhe o
perónio, - reforçou o 158/1846.
E não só, o ministro fora alvo de
chacota no hospital que o recebera, porque dizia peremptoriamente no inquérito
policial que alguém lhe gritara, “lava com água fria que isso passa”! O
programa tinha sido melhorado, ia ser o fim dos governantes. A primeira data
escolhida fora o 1º de dezembro de 2013, nos claustros, onde o ministro iria
ser lançado do primeiro andar pelo Patronilha e esposa, tal como era anualmente
o Miguel de Vasconcelos, mas o Alguidar andava com medo dos ratas do 1º ciclo e
das Meninas de Odivelas, por isso limitou-se a aparecer na véspera à noite para
beber um chá de camomila com o director, tornando-se assim no primeiro
governante em 210 anos do Colégio Militar a não presidir às cerimónias.
Sabia-se agora que os dois estavam reunidos no Forte de S. Julião da Barra, a
pedido da Berta, perdão, (A)berta, depois do Tribunal de Contas ter condenado a
senhora a devolver os vinte mil euros que desviara do dinheiro do povo,
provavelmente destinado ao Colégio Militar, ao apresentar senhas de presença
enquanto presidente de Câmara de Ponta Delgada. O espaço era conhecido de
muitos Meninos da Luz, pois tinham frequentado a piscina durante as férias
grandes na Feitoria, no século passado, onde puderam exibir os calções curtos
de cor preta e listas brancas de cada um dos lados. Mas como refeição de
antigos alunos não é autêntica se não se falar do passado colegial, a tradição
manteve-se, desta vez através das novas tecnologias. Todos estavam agora na
Enfermaria de olhos postos nos enfermeiros Valério e Valentim, distribuindo as
doses de vacinas pelos alunos alinhados. O primeiro espetava as agulhas, à
medida que as tirava da parede, e ainda hoje há quem diga que após o jantar do
3 de março quem entrar no espaço sente o cheiro do éter no ar e ouve a voz do
sargento:
- Não te mexas, vou ter que
endireita-la, senão o líquido não entra.
A experiência era um posto.
- Qual é o teu nome?
- Bazuca, - atirou o Penico de
rajada.
- Basílio Horta, - respondeu o
144.
No Colégio Militar uma alcunha
estava geralmente ligada a um acontecimento, e neste caso não era excepção. O
Bazuca quase que ia destruindo a sala de Química, devido a uma experiência,
digamos, um pouco exagerada!
Nos Claustros ouvia-se, no meio
da penumbra, os gritos de contentamento dos alunos ao receberem a notícia de
que o Pequito partira um pé, por isso tinham feito planos para os furos da
tarde. Furos? Os alunos do 3º tempo da manhã nem queriam acreditar quando, após
o toque da corneta a anunciar o início da aula, apareceu o urubu do professor
de Francês a subir as escadas de muletas. Na Sala da Santa viu-se o Madiura a
ser apanhado pelo Galo a apalpar a senhora, que há muito tempo contempla com
orgulho o Largo da Luz. No Pátio dos Fâmulos o condutor do Diretor, o Barnabé,
alinhava os carros usados, para venda. E o negócio era tão eficaz que o número
de telefone do stand coincidia com o da Central do Colégio Militar, cujo
operador tinha indicações para chamar o dono caso fosse algum cliente. Na
biblioteca o 279 impunha o ritmo do
andar bamboleante da funcionária.
- Metro e vinte, metro e
dez…metro e vinte, metro e dez…
Mas…
- O seu comportamento é indigno
de um Menino da Luz, - disse o oficial de dia, que acabara de entrar. – Vai
imediatamente comigo.
Quando o tenente-Coronel
Guerreiro, ex-aluno, foi posto ao corrente da situação, sentiu o fluxo sanguíneo
dilatar as veias, os movimentos cardíacos e respiratórios aceleraram-se, os
músculos contraíram-se, a boca entreabriu-se, o rosto ruborizou-se e os dedos
grandes dos pés reviraram-se. Agarrou no telefone e gritou:
- Vou telefonar ao teu tio e
dizer-lhe para vir aqui imediatamente. Mereces levar uma sova tão grande que te
ponha coxo como a rapariga, para ver se gostas.
- Camaradas, podíamos ficar aqui
eternamente a deliciar-nos com estas aventuras, mas o dever chama-nos –
interrompeu o professor Alcatrão, colocando a vigésima beata no canto da mesa.
- Espero por vocês na Azinhaga da Fonte!
Quando o Ford Escort Amarelo do
tenente Frade, recuperado graças às novas tecnologias, parou junto a dois
vultos sentados no passeio, todos reconheceram o senhor Cândido e o professor
Tadeu.
A “Garoupa na Telha à moda do
Porto”, que o Alguidar resolvera oferecer à (A)berta, foi trocada nas cozinhas
do forte pelo Semita, que lhe pôs um colorido “Peixe Celeste”, confecionado com
muito amor pelo Pintado.
- Vão afogar-se na própria merda!
- A Janis Joplin, que substituiu
por pouco tempo a corneta depois do 25 de abril de 1974, vai ser a senha para
avançarmos.
O resto da estória ficará à
imaginação de cada um, mas para a dupla virulenta o fim será sempre trágico!
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