Comandante Guélas
Série Colégio Militar
As estórias vêm dos fragmentos da memória coletiva, e na memória coletiva
se consomem, porque só assim se pode ir mais longe e mais fundo nesta vida. Por
isso a tradicional “Falca” não poderia passar despercebida. Quando o Cebola
soube que o Peida Gorda estava de baixa na Enfermaria, e por isso iria safar-se
das marchas e do teste do Semita, jurou ir fazer-lhe companhia:
- Como é que ele conseguiu arranjar Papeira?
Já tentara os métodos tradicionais, esfregara toda a pasta de dentes do
Texugo nos sovacos, mas o termómetro não passara dos 38,5, e isso só dera
para uma misera aspirina; simulara uma fratura na ginástica, quando viu o osso
do Trabuco a espreitar na perna, mas o Tadeu deu a ambos o mesmo
tratamento:
- Esfreguem com água fria que isso passa!
Abanara freneticamente o termómetro
de pernas para o ar, mas só conseguiu uma alucinação:
- Moço sabes o que é um Jericoacéfalo? É o que tu és…um burro sem cérebro!
Recorrera aos alhos dos bifes da testa do almoço, mas só conseguira uma
apresentação à alvorada por falta de higiene. Estava desesperado, por isso
corria agora com capote à volta do campo de futebol, debaixo de um sol
abrasador.
- 42?!! – Gritou o sargento Valentim, olhando para o jovem com cor de tomate
e para as aspirinas que estavam empilhadas como Legos. – Vais ter que passar
aqui a noite.
Menos sorte teve o Gordini quando apareceu com o garfo do Becas enterrado na mão, depois de um assalto de florete durante a hora de almoço, :
- Toma estes Sais de Fruto que amanhã o buraco está tapado !
Quando o Cebola chegou ao quarto, já o Peida Gorda estava aconchegado às
pantufas e à revista “Gina”, cujas suecas o mantinham a ele e aos outros dois
em “ponto-de-rebuçado”. Estavam agora todos num quarto virado para a Estrada da
Luz, cujas janelas estremeciam de cada vez que passava um elétrico, condições
inaceitáveis para que pudessem recuperar condignamente do frágil estado de
saúde. Por isso resolveram atacar o problema de frente, não fossem eles uns
soberbos Meninos da Luz. Juntaram duas vassouras, escancararam as janelas e,
depois de várias tentativas, conseguiram pôr os traillers dos eléctricos fora
da calha. Naquela noite não houve amarelos para ninguém, e as queixas caíram em
catadupa na secretária do Oficial de Dia, que não conseguiu pregar olho, como
era habitual. No Colégio Militar não se desperdiçava o tempo, porque todos
desfrutavam de uma invejável liberdade selvagem, com a errância limitada à
distância entre o Picadeiro e a Porta de Armas, onde se construiu durante
longos anos uma ética e uma moral exclusivas daquele espaço educativo. E
qualquer contradição entre ambas era de imediato resolvida com uma “Firmeza”,
ou com uma “Apresentação à Alvorada”, ou uma “Sessão de Abrunhos” em frente à
Companhia. Foi por isso que finda a comissão de serviço na “Falca” estes quatro
artistas foram contemplados com dois magníficos dias de detenção, que hoje em
dia só de pensar já é crime para a Associação de Pais.
No comments:
Post a Comment