Comandante Guélas
Série Colégio Militar
No colégio todos tinham um número, a que a maioria
acrescentava uma alcunha, mas aquele era grátis caso conseguissem passar nas
provas de admissão, enquanto que esta só aparecia após algum empenho. O tema da
aula era o Antigo testamento, o comportamento da turma estava, como
habitualmente, próximo do caos, e o padre gritava:
- Silêncio, silêncio…muita atenção, só faço a
pergunta uma vez - e continuou. – Quem é que nasceu em Belém?
Um silêncio profundo abateu-se sobre a turma,
ninguém ousava responder, sentia-se a tensão no ar, tudo podia explodir a
qualquer momento, até que:
- Foi o Zacarias!
O padre gorducho olhou para o pupilo que estava no
fundo da sala e gritou furioso, apontando para a porta:
- Zacarias, rua.
Entrou 666 e saiu com uma alcunha, cuja versão atual
equivale a uma tatuagem! Nas pinturas de 1975 houve uma novidade, o aluno 361
foi pintado de branco, contrariando a clássica cor preta usada para decorar todos
os outros colegas. Sissé trouxe assim outro tom para o caucasiano Colégio
Militar, tínhamos agora um camarada mano. Cedo revelou ter uma fixação por
Parkers, iniciando logo ali uma coleção, que começou com a dele e foi
enriquecida com a dos outros. Diziam ser filho de um “Flecha Negra”, as tropas
especiais do 33 na Guiné, que chegaram a marchar com o Batalhão Colegial, na
altura em que lhe deram a GOTE, numa cerimónia que decorreu no campo de
futebol, sob um sol tórrido, e muitos desmaios a condizer. O camarada-mano 361
trazia consigo um conjunto de mitos, dizia-se que o pai era um colecionador
compulsivo, não de canetas como o filho, mas das orelhas dos inimigos. Cedo
revelou ter algumas dificuldades de adaptação ao método de ensino colegial, mas
nisso não era o único, que levavam os professores à beira de um ataque de
nervos:
- Eh pá, este desenho está mais feio do que a
ponta da teta de uma preta, - disse o Alcatrão, já perto do fim da aula,
acendendo o décimo cigarro com a beata do anterior, que alinhou com as outras
na parte da frente da secretária.
- Moçooo, sabes o que é um Jericoacéfalo? É o que
tu és, um burro sem cérebro, - e o Semita deixou cair o ponteiro no coco do
mano, tradição colegial da justiça sumária que castigava sempre bem, pouco e no
princípio, para nunca se ter de castigar mal, muito e no fim, como nos tempos
que correm.
- Bai-te lá sentar, -
gritou o Menau, - tu és a desonra dos valores essenciais da república
portuguesa, um atentado à razão.
Até o pacífico professor Perdigão, cuja frase
preferida era “quanto mais sei, mais sei que nada sei”, e que todos os dias
desafiava as leis da física com o seu Datsun 120Y cheio de mossas, ia aos arames
com a ignorância do Sissé:
- Explica à turma os efeitos visuais do caroteno.
O 361
levantou-se, como mandavam as regras, e disse:
- Quando a minha mãe põe os tomates ao sol, - foi interrompido pelo riso geral da turma, e a
sentença do docente:
- És um calhau com olhos!
O Sissé era um aluno pacífico, mas dizia o bom
senso para não se meterem com ele. Numa sexta-feira à noite a vontade dos
colegas para jogar uma peladinha foi tão grande, mas bola, nem vê-la. E como no Colégio Militar não havia propriedade privada, depois de
uma busca organizada deram de caras com a do camarada-mano, e apropriaram-se
imediatamente do esférico, uma tradição que contrariava o discurso oficial de
que naquele espaço educativo para eleitos, “furto” era uma palavra que não
pertencia ao léxico colegial, porque como os gatunos eram de
boas famílias não roubavam, descaminhavam-se, por isso no Colégio Militar
somente nos descaminhávamos, à grande e à francesa, daí a razão para a
existência das firmezas, a banalidade do mal. Porque o plástico do
esférico tinha uma consistência chinesa, a dita do Sissé só durou uma ínfima parte
da esgalhação. Devolveram-na em farrapos ao local do crime e foram dormir
alegremente. O 361 ficou no colégio durante o fim de semana, e quando quis ir
brincar com o que era seu, deu de caras com um objeto disforme, sentindo de
imediato o fluxo sanguíneo dilatar-lhe as veias, os movimentos cardíacos e
respiratórios acelerarem, os músculos contraírem-se, a boca entreabrir-se, o
rosto ruborizar-se, mesmo sendo incapaz de ver o fenómeno no reflexo do espelho,
e os dedos grandes dos pés revirarem-se. Nessa noite quando fechou os olhos foi
assaltado por encantamentos, feitiços e êxtases, perdeu a noção do tempo e do
espaço, prenuncio de que algo muito sério iria acontecer. Rolariam orelhas? Na segunda-feira
todas as bolas da primeira companhia tinham as marcas de um canivete, exceto a
dele que transpirava saúde.
http://camaradachoco.blogspot.com/2020/07/o-hipnotizador.html
5 comments:
Eu era amigo do Sissé. Que será feito dele? Era um tipo impecável. Uma vez um graduado hipnotizou-o e ele passou-se, coitado. Era fim de semana e acabou por levar uma grande chapada do oficial de dia por fazer disparates. Diga-se de passagem que foi merecida e fez-lhe bem para quebrar a hipnose, que já ia longa de mais. Rui Rebelo(422/74)
Essa cena do hipnotismo, foi muito marada, o Sissé passou-se completamente da cabeça, parecia estar possuído sei lá pelo quê.
Não me lembro é do nome do gajo que andava para lá a hipnotizar o pessoal a torto e a direito!
Kikas (26/72)
O Sissé era um miúdo porreiro.Fui graduado dele na primeira no meu sexto ano e sentei-o mais minha mesa pois ele era um miúdo com muito bom fundo, sempre a sorrir bem disposto
Anos mais tarde já depois de ter saído do colégio ainda se me dirigiu na linha de Cascais com o seu sempre rasgado sorriso
Era muito bom tipo e bom camarada
O Sissé era da minha turma do 5-A. Ele era o 361 e eu o 392. O que acontecia nas aulas de Português e Francês dadas pelo Prof Cruz Pinto era para mim um terror. Porquê? Porque o Prof. quando perguntava qualquer coisa ao Sissé e este não sabia, peidava-se. E eu na carteira de trás sofria a bom sofrer, desejando que naquelas aulas o Cruz Pinto, não lhe perguntasse nada. E quando isso acontecia, passei a sussurrar-lhe resposta correta. Mas o 361 era um gajo porreiro, sempre protetor de quem o ajudava. Estórias que recordo.
Lembro-me do Sissé num ‘despeneiranço’ para a escolta a cavalo. No final, e depois de muitas cangochas coices e quedas na teia, o velho Coronel Gabriel Dores deu uma instrução de descanso a todos: ‘Rédeas no pescoço.’ Foi uma gargalhada épica quando o Sissé pôs as rédeas do seu cavalo no seu próprio pescoço. :)
Inesquecível.
Sempre gostei muito dele. Soube há uns anos através de uma noticia no Correio da Manhã, que caiu num poço e faleceu. Paz à sua alma.
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