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315 estórias

Friday, December 07, 2012

A Rosa da Luz






Comandante Guélas

Série Colégio Militar



O Colégio Militar deu-nos tudo em demasia, até o amanhã. No trajeto entre a Parada Marechal Teixeira Rebelo e a Parada Marechal Serpa Pinto, passando pela Enfermaria, muita coisa podia acontecer. No pavilhão de Química a aula do Semita estava ao rubro, o engenheiro distribuía bordoada com o ponteiro ao mesmo tempo que gritava:
 - É gado, é gado!
 Dava notas:
- Levas uma “bengala” para casa e o teu colega uma “bicicleta"!
 Oferecia conselhos pedagógicos:
 -  Esta disciplina não é uma cadeira, é uma chaise long onde o aluno se estende à vontade! 
Fazia diagnósticos:
- Moçooo, sabes o que é um Jericoacéfalo? É o que tu és….um burro sem cérebro!
Dissertava:
 - Nesta turma uns dormem de olhos fechados, outros de olhos abertos!
Distribuia miminhos:
- Psché moço, num monte de esterco, fazes nódoa!
Um dia o Minhoca explodiu e o engenheiro Grijó sofreu um atentado:
- Espero que morras, assim não tenho de ir estudar Física - gritou, atirando-lhe um limão e escondendo-se atrás da sebe da Enferma. 
E havia mais docentes a lecionar:
- Piu, piu, piu, és burro, - gritou o Falcão, professor de matemática, com a boca colada ao ouvido do Cão.
- O senhor é um xisto com pernas, - classificou, já desesperado, o professor Perdigão com os olhos na cara do Elefante.
O pequeno chalé foi morada da musa do batalhão de rebarbados dos anos cinquenta do século passado, que nunca nenhum menino a viu mas sentia-lhe o cheiro, e com ele imaginava-a num corpo feminino com uma boa tranca, pandeireta de sonho, uma prateleira que os punha sem freios à noite nas camaratas, com as camas a ranger e as almofadas a gemer, por isso gritavam sempre pelo seu nome de cada vez que regressavam em formatura: “Oh Elsa!”, e sentiam um gostinho. Nos anos setenta a musa tinha o nome de Rosa e era de carne e osso, e deu origem a uma estranha e intensa relação, ela era uma rapariga sem raízes e sempre em fuga, num paraíso onde não pertencia a nenhum, mas estava nos sonhos de todos. A Rosa e os Meninos da Luz tinham sido destinados a olharem-se e a divergirem de todas as tentações, que os levavam muitas vezes a cruzarem-se como dois ponteiros de um mostrador de um relógio ao meio-dia. Foi uma relação extraordinária, num tempo e numa parte do mundo complicada. Por isso o local onde viviam era contraditório de luz, paixão, confusão e caos, estava ligado a uma marginalidade que, apesar de tudo, tinha os seus princípios. Havia também a Lisete, senhora de uma testa imprópria para devaneios, também conhecida por Listete, ou a mulher do Patronilha, que não tinham direito a participar nos sonhos destes adolescentes que estavam fardados de cotim de domingo à noite até sábado à tarde. Antes destas musas os pensamentos iam para as meninas do reformatório vizinho, que os obrigavam a inscrever-se em ações de caridade, e tudo isto à conta da Conferência de São Vicente de Paulo, de quem o colégio era membro, para assim lhes poderem sentir o cheiro a maresia quando tinham autorização para sair fardados de terylene. O levantamento das necessidades era feito pelos capelães civil e militar, que mandavam entregar o dinheiro e os géneros às pessoas referenciadas de Carnide. E um dos alcoólicos, perdão, acólitos, tinha o número 95 e um dia, desesperado para ir fazer uma boa ação, antecipou-se e abdicou da aula do Carioca, um padre com uma personalidade pouco espaçosa, cujas aulas de música decorriam sempre sob tremenda pressão, onde se desintegrava com facilidade. Mas como no Colégio Militar as penas eram instantâneas, sem direito a recurso, o Comandante do Corpo de Alunos oficial, o Maneta, condenou o aluno o Coiote a uma chapada, uma carecada e uma privação de ida ao cinema. O 120, o 125 e o 191 como não cantavam, tiveram ainda tempo, depois de distribuído o produto, de irem fazer uma visita de cortesia ao minimercado, para se abastecerem de Bolama, metade comprada e a outra metade escondida na boina, que estava presa ao blusão. Mas voltemos à nossa rosa, que era vista com regularidade num gabinete junto aos claustros, para gáudio da rapaziada, que aproveitava para arregalar o olho de dia e esgalhar o frango à noite. O pai chamava-se Nunes e era o hortelão do colégio, deslocava-se sempre num trator, que costumava levar várias camadas de alunos pendurados, que o obrigavam a parar várias vezes para os enxotar com palavrões e à pedrada. O “Amor” também era muitas vezes o tema da última formatura, que se seguia ao jantar, juntamente com outras atividades lúdicas, como por exemplo as “Firmezas”. Na altura da distribuição do correio, carta mais amaricada era de imediato aberta, e lida em voz alta para toda a Companhia, que o diga o camarada Coiote quando a namorada, uma Menina de Odivelas descoberta num Chá Dançante, lhe enviou a declaração de amor num envelope às florzinhas e perfumada. A relação foi assim posta em risco porque o pai da donzela, administrador da Shell, fazia um controle apertado à filha, principalmente se lhe cheirasse que atrás das suas saias andava um Menino da Luz, com as hormonas aos saltos e uma semana inteirinha fechada no colégio. Felizmente o “Todos por Um, Um por Todos” também dizia respeito aos funcionários, que neste caso tinha o apelido de Domingos, e fazia umas horinhas extras na empresa do papá da menina. A pedido do Coiote passou a trazer as cartas entregues pela menina, e a levar as escritas pelo 95, sem haver necessidade de passar pelo Geral da Companhia. Mas um dia os limites foram forçados e alguns foram longe de mais e resolveram fazer uma surpresa à Rosa a caminho do ginásio, durante o tempo de exames, mascarados de múmias, depois de terem desviado ligaduras da enfermaria, e de intensos treinos durante meses. Uma das versões conta que o namorado, fã dos filmes do Bruce Lee, tentou proteger a sua Rosa da Luz, mas não se saiu lá muito bem; a outra refere o irmão, que ficou instantaneamente chéché com a paulada que levou, tendo os gritos da diva chamado a atenção dum vigilante, que veio de imediato a correr em seu auxílio, provocando a debandada das múmias e o despertar do mano, que o atacou com um biqueiro nos queixos, pondo-os à banda. Foi decretado o “Alerta Vermelho” e o galanteador alferes Felício conduziu os interrogatórios, tendo entregue ao Sub Oliveira, para impressionar a Rosa, por quem arrastava a asa, uma lista com os nomes dos arguidos, incluindo um que estava de baixa na enfermaria com um traumatismo no coco. O colégio estava à beira de um ataque de nervos, o Galo via atrevidos em todas as esquinas, ameaçando de imediato com cargas de cavalaria, e a Rosa gritava de cada vez que um Menino da Luz se aproximava um pouco mais, violando a distância de segurança. Com a imediata “prisão domiciliária” dos mais velhos, os índios fizeram jus aos seus pergaminhos e deram um passo em frente. Só um não o fez porque tinha ido à missa, talvez confessar-se, e quando tomou a decisão já era tarde de mais, tinha-se atingido a data definida pela chefia, que ditou de imediato a pena: uma expulsão e várias desgraduações! Quanto à Rosa, depressa foi ultrapassada pela Maria João da biblioteca, também com boa tranca, pandeireta de sonho, e uma prateleira com o dobro do tamanho que fez com que a rapaziada passasse a dedicar-se mais ao estudo. Com o tempo o encanto desvaneceu-se, o Colégio Militar, antes exclusivo para machos, foi inundado de saias e com isso desapareceu o fruto proibido.

3 comments:

Mongiardim Saraiva said...

Lamento o "desaparecimento do fruto proibido"...Afinal, uma rosa bem cuidada,plantada e regada, poderia ter permanecido por muitos anos como uma rosa,apesar dos espinhos, dolorosos e fatais...Parabéns pelo texto !!! ex-110(68).

António Miguel Miranda said...

Obrigado Carlos. Devia ser atribuído à Rosa um número honorário e um ano de entrada!

Rui Jorge said...

Espetacular e genial texto, parabéns. Só mesmo quem viveu o CM de 74-76 percebe o que foram aqueles tempos. Lembro-me da Rosa e dos sonhos com ela. Digamos que foi o meu 1º amor.Não se esquece facilmente o 1º amor! Que será feito dela? Rui Rebelo(422/74)